O Estado de S. Paulo
Nos últimos anos, um fenômeno novo surgiu no Brasil. A crítica mais contundente contra a Justiça tem vindo da direita
Tradicionalmente, o Judiciário sempre foi
alvo da crítica – e da ira – da esquerda. Avesso às demandas sociais e pouco
representativo da diversidade da população, era visto como elemento do sistema
de controle social e de manutenção do status quo. O campo progressista sempre
acusou as decisões judiciais de refletirem uma compreensão específica de
sociedade, a reforçar, entre outros danos, a desigualdade, o racismo e a
misoginia.
Nos últimos anos, um fenômeno novo surgiu
no Brasil. A crítica mais contundente contra a Justiça tem vindo da direita. Há
uma campanha para mudar a percepção da população sobre a Justiça. Escândalos
pontuais envolvendo juízes – às vezes, meras acusações sem fundamento – são
ampliados, de forma a afetar a credibilidade de todo o sistema de Justiça.
O foco da campanha não é apenas a retidão dos juízes. Busca-se alterar a recepção das decisões judiciais pela população – o que representa abandonar um dos grandes cânones conservadores liberais, o do respeito às instituições. Diante do que se viu nos últimos dois anos, pode-se dizer que a direita brasileira almeja implodir a presunção de legitimidade e de legalidade das decisões judiciais. Quer que o cidadão comum questione, de forma habitual e espontânea, a lisura da magistratura e a correção de suas decisões. Trata-se de mudança significativa de postura, cujos efeitos já são vistos em muitos setores da sociedade, mas estão longe de serem conhecidos em toda a sua extensão.
A direita não esconde o objetivo da
estratégia. Sua cruzada é para controlar o Judiciário. Insatisfeita com o
equilíbrio atual do sistema de freios e contrapesos instaurado pela
Constituição de 1988, ela quer mais domínio sobre as decisões judiciais.
A bandeira contra o Judiciário – em
concreto, contra o Supremo Tribunal Federal (STF) – foi muito usada nas
eleições passadas; especialmente, na disputa de vagas para o Senado. A direita
prometeu ampliar o controle do Legislativo e do Executivo sobre o Judiciário.
Ou seja, deseja que a política tenha maior domínio sobre a justiça, sobre o
direito. Há aqui outra mudança histórica. O campo conservador-liberal sempre
sustentou a existência de uma diferença essencial entre direito e política. Em
sua visão, o direito não seria simples fruto do poder. Agora, pelo que se vê, a
direita – ou, ao menos, parte significativa dela – busca destituir o direito de
sua específica dimensão, deixando-o inteiramente submisso à política.
Talvez alguém possa questionar: a direita
não quer ir tão longe assim, ela só está defendendo suas causas – que não têm
recebido no STF o mesmo acolhimento que antes recebiam – e os direitos de seus
aliados – que têm sido alvo de ações do sistema de justiça penal como nunca
havia ocorrido. O Judiciário parece ter virado à esquerda, dizem, e é preciso
conter essa tendência.
Diante desses argumentos, a provocação
brota fácil. Mas como é suscetível a direita! Apanharam tão pouco e já querem
mudar o sistema. Não parecem conservadores. A esquerda, que apanha há tanto
tempo da Justiça, sempre foi mais comedida no intento de controlar e submeter o
Judiciário a suas vontades. Lula questionou e desautorizou a ordem de prisão
expedida contra ele, mas a obedeceu. No 7 de Setembro de 2021, na Avenida
Paulista, sob aplausos de apoiadores, Jair Bolsonaro assegurou que não
respeitaria eventual ordem de prisão contra ele. A disparidade de atitudes é
evidente.
À parte das provocações, o fato é que a
campanha da direita contra o Judiciário vai muito além da defesa de suas causas
e dos direitos de seus membros. Querem nada mais nada menos que alterar o
equilíbrio entre os Poderes e mudar a percepção da população sobre o
Judiciário, o que tem efeitos de curto, médio e longo prazos. Não é possível
alegar desconhecimento. Por exemplo, uma campanha eleitoral que fomenta o
desprezo pela Justiça nunca é simples pedido de votos. Suas consequências vão
muito além das urnas.
Eis o que se constata. Mesmo numa sociedade
anestesiada, que tolera situações intoleráveis, o sentimento de injustiça
continua sendo capaz de engajar as pessoas. Habitualmente utilizado pela
esquerda, é agora também manejado pela direita em suas causas. O problema é que
esse uso político, eficiente em gerar resultados imediatos, traz sérios riscos
para a sociedade e para as instituições, especialmente quando está atrelado à
desinformação. Ainda que cite a liberdade, a manipulação afetiva coletiva nunca
é autonomia. Sempre é jugo.
Para aprimorar o Judiciário – tarefa de
sempre –, em vez de dominá-lo politicamente, é preciso prover as condições para
um sistema de justiça técnico, independente e plural, com autoridade para atuar
contramajoritariamente e com regras equilibradas que preservem as garantias
fundamentais, como a presunção de inocência e a imparcialidade do juiz.
Infelizmente, tanto a direita quanto a esquerda parecem trilhar muitas vezes o
caminho contrário. O resultado é um só: os dois lados sentem-se profundamente
maltratados pela Justiça. Vale a pena insistir nesta via?
*Advogado
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