Judiciário menos volúvel garante a força da democracia
O Globo
Decisões recentes do Supremo têm confirmado
a máxima segundo a qual, no Brasil, até o passado é incerto
Na análise da primeira leva de denunciados
pela invasão das sedes dos Três Poderes, o Supremo
Tribunal Federal (STF) tornou réus os cem acusados. Punir os
executores e autores intelectuais dos ataques golpistas do 8 de Janeiro é
prioritário e imprescindível. Só assim se evitarão novas ameaças à democracia
brasileira. Há, porém, riscos que a Corte precisa evitar. O maior é deixar-se
levar pelas circunstâncias políticas, como tem ocorrido com frequência.
No exemplo mais recente, um julgamento em
andamento no Supremo poderá alterar um dos pilares da última reforma
trabalhista. Em fevereiro de 2017, o plenário julgou inconstitucional que
empregados não sindicalizados fossem obrigados a pagar contribuição a
sindicatos. Seis anos depois, tudo pode mudar. Cinco ministros votaram em favor
da reviravolta — entre eles o relator, ministro Gilmar Mendes —, mas o ministro
Alexandre de Moraes pediu vista nesta semana, interrompendo o julgamento.
Outro caso de revisão de decisão anterior tramita no Superior Tribunal de Justiça (STJ), para determinar se benefícios fiscais concedidos por estados às empresas no pagamento do ICMS devem estar sujeitos à incidência de outros dois impostos (IRPJ e CSLL). Pelo critério em vigor, a União não pode cobrá-los, mas tudo pode mudar. “Mesmo depois dessa primeira decisão do STJ, muitas empresas foram autuadas, o que gerou incontáveis contenciosos judiciais”, escreveu o ex-ministro Maílson da Nóbrega em artigo ontem no GLOBO. Agora, a depender da nova decisão, o custo para as empresas poderá chegar a R$ 65 bilhões anuais.
Esse tipo de vaivém, como destacou o
colunista do GLOBO Merval Pereira, tem se repetido com mais frequência que o
razoável. O resultado é insegurança econômica e jurídica. Em 2016, Gilmar
apoiou a execução de penas depois da condenação do réu pela segunda instância,
como na maioria dos países. Tempos depois, voltou atrás, defendendo que réus só
podem ser punido quando estiverem encerrados todos os recursos à disposição,
situação conhecida como “trânsito em julgado”.
A mudança virou o placar no Supremo e
permitiu a libertação de centenas de condenados, em particular alvos da
Operação Lava-Jato. A ministra Cármen Lúcia também mudou de opinião em
processos da Lava-Jato. Seus votos ajudaram a invalidar acusações contra o hoje
presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Guarujá (SP). O ministro Edson Fachin
deu meia-volta similar.
Não é proibido que os ministros de
tribunais superiores revisem suas decisões, seguindo a máxima atribuída ao
economista John Maynard Keynes: “Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião”. O
preocupante é que, no caso da Justiça brasileira, as reviravoltas parecem
seguir não os fatos, mas apenas a lógica da opinião pública ou a necessidade
política. Outra citação atribuída ao ex-ministro Pedro Malan parece mais
oportuna nos casos recentes: “No Brasil, até o passado é incerto”.
É recomendável aos ministros do STF
refletir sobre esse comportamento de “biruta ao vento” agora que se debruçam
sobre os indiciados e réus do 8 de Janeiro. A condenação dos responsáveis pelo
maior ataque à democracia brasileira deve ser célere, mas precisa ter base
jurídica sólida. Excessos estimulados pelo clamor das ruas precisam ser
evitados. Um Supremo menos volúvel contribuirá para garantir a força da
democracia brasileira.
Não basta liberar vacina bivalente contra
Covid para qualquer adulto
O Globo
Governo precisa garantir que milhões de
doses sejam aplicadas para deter o vírus e evitar ainda mais desperdício
É oportuna a decisão do Ministério da Saúde
de liberar a vacina bivalente contra a Covid-19 para toda a população adulta.
Não só porque tende a aumentar os índices insatisfatórios de cobertura no país,
mas também por combater o desperdício de doses, jogadas com frequência no lixo
por não serem usadas no prazo recomendado.
Aplicada como reforço, a bivalente é a
versão atualizada da vacina original contra a Covid-19 da Pfizer que protege
contra sublinhagens da Ômicron, variante predominante no país e no mundo. Até
segunda-feira, quando a decisão foi anunciada, era recomendada para maiores de
60 anos, profissionais de saúde, gestantes, puérperas, imunossuprimidos com
mais de 12 anos e residentes em abrigos. Esse público soma 63,4 milhões de
brasileiros. Agora, outros 97 milhões estarão aptos a tomá-la, desde que já
tenham recebido pelo menos duas doses de outras vacinas.
Como lamentavelmente tem sido frequente, a
vacinação com a bivalente avança a passos lentos. Em dois meses, apenas 16% do
público-alvo foi vacinado, um desempenho decepcionante, especialmente por se
tratar do grupo mais vulnerável. Desinformação nas redes sociais, problemas
logísticos (dificuldade de acesso e horário de funcionamento dos postos),
insuficiência de campanhas de conscientização e o próprio relaxamento da
população diante da melhoria do cenário epidemiológico contribuem para o
encalhe das doses. É preciso reconhecer que a Covid-19 só está sob controle
graças à vacinação em massa. O vírus não foi embora. Por isso, não se pode
relaxar. É fundamental seguir o esquema de vacinação recomendado pelo
Ministério da Saúde.
Em dezembro, o governo assinou um contrato
para compra de mais 50 milhões de doses da bivalente. Com as compradas antes, o
total chega a 150 milhões. Estima-se que ainda existam 138 milhões de doses
disponíveis, situação que contrasta com 2021, quando havia demanda e faltavam
vacinas.
A baixa procura e a incompetência dos
governos para usar as doses têm levado a um desperdício inaceitável. Em março,
o Ministério da Saúde informou que, desde 2021, já foram descartados 39 milhões
de doses de vacinas contra a Covid-19, a maior parte (27 milhões) nos primeiros
meses deste ano. A incúria causou um prejuízo de R$ 2 bilhões aos cofres
públicos. Outros estoques, não só da vacina contra a Covid-19, estão prestes a
expirar, e o governo cogita doá-los a outros países.
Ao ampliar a vacinação com a bivalente, pelo menos se reduz a chance de descarte. Mas não bastará oferecê-la a um público maior se a procura continuar abaixo do esperado. Ministério, estados e prefeituras precisam sair da inércia e buscar formas eficazes de elevar os índices de imunização. O governo federal, pródigo na propaganda, deveria aproveitar o tempo para incentivar a vacina e combater a desinformação. Jogar no lixo vacinas que salvam vidas é um acinte à memória dos mais de 700 mil brasileiros que morreram de Covid-19, muitos sem a chance de tomar uma única dose.
Há metas e metas
Folha de S. Paulo
Compromissos claros na política monetária
deveriam inspirar regra fiscal
O presidente do Banco Central, Roberto
Campos Neto, decerto frustrou grande parte do mundo político ao declarar nesta
terça-feira (25) que não tem como prever um prazo para o início do corte dos
juros da instituição, hoje em elevadíssimos 13,75% ao ano.
O motivo apontado pelo executivo é simples
e verificável por qualquer pessoa —a inflação do país continua em patamares
perigosos. O IPCA registrou variação de 4,65% em 12 meses, e as expectativas
para este 2023 estão em alta desde novembro passado, atingindo 6%, bem acima da
meta de 3,25%.
À Comissão de Assuntos Econômicos do
Senado, Campos Neto disse o que deveria ser óbvio para todos os governantes e
legisladores —que o descontrole
de preços é uma tragédia social, como o demonstra o aumento
dramático da fome, da pobreza e da desigualdade na vizinha Argentina.
Note-se que o BC não pretende cumprir a
ferro e fogo a meta deste ano, o que exigiria juros ainda mais altos. Mas a
instituição precisa demonstrar que faz o necessário para restabelecer a
normalidade em prazo hábil. É o que sustenta a credibilidade do regime de
metas, prestes a completar 24 anos.
O esforço requer prestação de contas
permanente, por meio de comunicados, atas e relatórios periódicos que detalham
os parâmetros seguidos pela política monetária, que, mais recentemente, foi
reforçada pela autonomia do BC.
O Brasil não conseguiu se aproximar de tal
sucesso no controle das contas públicas, provavelmente porque as consequências
da imprudência orçamentária, embora reais e graves, não são tão perceptíveis de
imediato para o eleitorado.
Diferentes normas foram fixadas e
desrespeitadas. A seguida por mais tempo foi a de metas de superávit primário,
iniciada também em 1999 e desvirtuada sob a petista Dilma Rousseff (2011-16),
quando o Tesouro se tornou deficitário.
A perseverança, a transparência e os
compromissos claros da política monetária deveriam servir de inspiração para a
nova regra fiscal proposta por Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Prometem-se
limites para a expansão das despesas e prevê-se a volta dos superávits, mas os
objetivos são pouco realistas.
Pior, o governo cuidou de estabelecer
que o descumprimento das metas não será considerado infração e
que a área econômica estará desobrigada de bloquear gastos para obter os saldos
previstos.
Não se trata aqui de pregar a
criminalização da política fiscal, para usar um termo do ministro Fernando
Haddad, da Fazenda. Entretanto a credibilidade da regra depende da indicação de
que as metas não serão deixadas de lado na primeira dificuldade —como muitos
pressionam hoje o BC a fazer.
À beira da guerra civil
Folha de S. Paulo
Sudão vive conflito sangrento que pode
afetar a conturbada vizinhança africana
Terceiro maior país da África, o Sudão se vê
novamente imerso em um conflito militar, algo comum em sua história.
Desta vez, os protagonistas são as forças leais ao governo ditatorial e uma
milícia rival.
Ao completar duas semanas, o impasse entre
os antigos aliados Fatah al-Burhan, homem forte do regime, e Mohamed Hamdan
Dagalo, conhecido como Hemedti, que comanda as Forças de Apoio Rápido, já
deixou quase 500 mortos.
Sem solução à vista, o confronto, até agora
concentrado nas ruas da capital Cartum, ameaça degringolar para uma guerra
civil.
Desenrolar ainda pior seria a crise
atravessar as fronteiras e desestabilizar uma região estratégica e populosa,
rica em petróleo e berço de grupos radicais islâmicos.
O Sudão sofre há décadas os efeitos da
presença desproporcional das Forças Armadas na vida do país, que teve raros
períodos de democracia desde que conquistou a independência, em 1956. Conflitos
de fundo étnico, amplificados pelo aumento da desertificação causado pelo
aquecimento global, trouxeram ainda mais turbulência.
Um arremedo de estabilidade só ocorreu
durante o período do general Omar al-Bashir, que governou por 30 anos em aliança
com grupos islâmicos. Em 2019, pressionado pela deterioração econômica e
desmoralizado após a independência do Sudão do Sul, ele foi
derrubado por um levante popular.
Mas sua queda não resultou em governo civil
e eleições. Ao contrário, abriu as portas para que facções militares se
apoderassem do Estado e lutassem pelo espólio.
Por seu tamanho e localização, na fronteira
entre a África subsaariana e o mundo árabe, o Sudão é crucial para a
estabilidade regional.
A depender da intensidade e da duração do
embate, ondas de refugiados podem afetar países como a Etiópia, que viveu sua
própria guerra civil até 2022, e o Egito, outra ditadura em perene crise
econômica. Grupelhos armados de países vizinhos podem interferir no confronto,
como já ocorreu em grandes guerras africanas.
O único modo de encerrar o conflito é a
partir de intensa pressão de países ricos, interessados em seus investimentos
no setor de petróleo, e de vizinhos do continente.
Uma solução duradoura, contudo, depende de calendário sólido de eleições e da transferência do poder a civis. Mas o Sudão, afetado pelas pragas da militarização, do tribalismo e do radicalismo islâmico, parece distante desse cenário.
A necessária coerência do STF
O Estado de S. Paulo
Denúncias do 8 de Janeiro impõem múltiplos
desafios à Justiça. O STF tem o dever de aplicar a lei e ser coerente com sua
jurisprudência, sem buscar aplausos de quem quer que seja
No início do ano, a pedido da
Procuradoria-Geral da República (PGR), foram instaurados no Supremo Tribunal
Federal (STF) diversos inquéritos relativos ao 8 de Janeiro. Além de
investigações sobre os executores – muitos deles foram presos em flagrante –,
abriram-se inquéritos para apurar a responsabilidade dos autores intelectuais,
dos financiadores, dos partícipes por auxílio material e das pessoas que
instigaram os atos criminosos.
Agora, o STF começou a analisar as
denúncias apresentadas pela PGR com base nas investigações feitas. Na
segunda-feira, a Corte decidiu pela admissibilidade do primeiro conjunto de
acusações contra 100 pessoas. No dia seguinte, iniciou-se a sessão virtual para
a apreciação de mais de duas centenas de denúncias. Essa sessão se encerra no
dia 2 de maio, mas é apenas o início de um longo trabalho. Até o momento, a PGR
denunciou 1.390 pessoas pelos atos do 8 de Janeiro, envolvendo tipos penais que
vão desde incitação ao crime e deterioração de patrimônio tombado até
associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito
e golpe de Estado.
O julgamento desses casos impõe múltiplos
desafios ao Judiciário, a começar pelo grande número de pessoas envolvidas. É
um trabalho imenso, que sobrecarrega ainda mais a já sobrecarregada estrutura
da Justiça. Basta pensar que o STF, além de todas as denúncias do 8 de Janeiro,
que podem se transformar em ações penais, com suas várias fases, tem muitas
outras tarefas como Corte constitucional.
Mas as questões operacionais, como o grande
volume de trabalho, são apenas uma parte – nem sequer é a principal – dos
desafios suscitados pelo 8 de Janeiro. O grande tema é o respeito à legalidade,
com a aplicação da lei penal e processual penal em circunstâncias tão
excepcionais. Caminhos extralegais poderiam não apenas suscitar nulidades e
impunidades – o que seria extremamente prejudicial ao País –, mas gerar uma
perda de autoridade e de legitimidade da Justiça, com o risco de autores de
crimes gravíssimos serem transformados em vítimas ou mesmo em heróis nacionais.
Sobre os cuidados que o STF deve ter,
destacam-se alguns pontos. Até aqui, por força das próprias circunstâncias,
houve acentuado protagonismo do ministro Alexandre de Moraes. Ainda que possam
ser feitos reparos em sua atuação à frente dessas investigações – não existe
perfeição na vida pública –, é inegável sua contribuição, por meio de diligente
exercício jurisdicional, na defesa do Estado Democrático de Direito. No
entanto, é chegada a hora de esse protagonismo individual diminuir.
É preciso que toda a atividade do STF
relacionada aos atos do 8 de Janeiro esteja revestida do caráter colegiado da
Corte, o que tem duas consequências práticas. Em primeiro lugar, o trabalho
jurisdicional envolvendo os inquéritos e as denúncias sobre os atos
antidemocráticos deve estar apoiado solidamente na lei e na jurisprudência do
Supremo. Nos últimos anos, a Corte fez um trabalho de grande importância a
respeito da Operação Lava Jato; entre outros temas, corrigiu excessos e
recordou regras de competência e de imparcialidade. Toda essa jurisprudência –
verdadeiro aprendizado civilizatório – não pode ser agora ignorada.
A segunda consequência diz respeito à
atuação dos outros ministros do STF. A defesa em uníssono do Estado Democrático
de Direito não significa concordar com tudo o que é feito ou proposto pelo
ministro Alexandre de Moraes. Unanimidades baseadas em circunstâncias, e não em
rigorosas avaliações jurídicas, podem ser muito perigosas, ao possibilitar
transigências com a lei e com a jurisprudência da Corte.
Pode parecer que, com os casos do 8 de
Janeiro, o STF tem uma tarefa impossível a realizar: num contexto de
acirramento político, apurar de forma isenta as diversas responsabilidades
jurídicas. Mas a missão é viável. Basta que cada ministro viva o que se pede a
todo juiz: a coerência de aplicar a lei, sem preferências e sem animosidades,
com a valentia de desagradar, se assim for preciso, à opinião pública.
A conta salgada do mau jornalismo
O Estado de S. Paulo
O caso da Fox, que teve de pagar quase US$
800 mi a empresa vítima de suas campanhas de desinformação, mostra que há
limites para esse modelo de negócios baseado em mentiras
O bom jornalismo custa caro, mas o mau
jornalismo custa mais caro ainda. O caso da Fox News, pivô de um processo que
envolvia desinformação sobre a eleição presidencial de 2020 nos Estados Unidos,
mostra que a difusão de falsidades travestidas de jornalismo, malgrado atraia
imensa audiência, cedo ou tarde resulta em imenso prejuízo para quem as produz.
Há alguns dias, a Fox Corporation fechou um
acordo com a empresa Dominion Voting Systems para indenizála em US$ 787,5
milhões (cerca de R$ 4 bilhões) por tê-la acusado sistematicamente de ter
ajudado a fraudar a eleição presidencial de 2020 de modo a impedir a reeleição
do então presidente Donald Trump. A Dominion pleiteava indenização de US$ 1,6
bilhão, mas aceitou reduzir a pedida e encerrou o caso, para frustração de
muitos – afinal, se o processo fosse adiante, provavelmente o dono da Fox, o
magnata Rupert Murdoch, seria chamado a depor e teria que explicar por que
permitiu que a campanha contra a Dominion prosseguisse mesmo que vários
jornalistas e executivos na Fox soubessem que se tratava de uma falsa acusação,
como atestam comunicações internas da emissora incluídas como provas. O próprio
Murdoch, mostra um dos documentos, qualificou a acusação contra a Dominion de
“realmente louca”.
Entre as mensagens anexadas como provas
estão e-mails trocados entre o então principal âncora da Fox, Tucker Carlson, e
a direção da empresa, nos quais admitem que, ao contrário do que diziam no ar,
não houve manipulação nenhuma do resultado da eleição. Usando seu enorme poder
na emissora, Carlson ainda pressionou executivos da Fox News pela demissão
sumária – “tipo esta noite”, como ele escreveu em uma das mensagens – de
jornalistas da própria casa que ousaram contestar a alegação de que a eleição
fora fraudada, em vista da absoluta falta de provas de que as urnas eletrônicas
tinham sido adulteradas.
Principal usina de fake news sobre a
eleição presidencial de 2020, em particular sobre o caso da Dominion, o
programa de Carlson era uma espécie de centro difusor dos medos, preconceitos e
ódios que animam a extrema direita norte-americana, tornando-o líder de
audiência entre todos os canais de TV por assinatura nos Estados Unidos. Na
esteira do caso, a Fox afinal demitiu Carlson, desfazendose de seu reluzente anel
para preservar os dedos.
Ao longo do caso, a Fox argumentou que o
processo movido pela Dominion violava a liberdade de imprensa prevista na
Constituição americana, porque, segue o raciocínio, a emissora estava sendo
perseguida por ter simplesmente reproduzido a opinião de diversas
personalidades, inclusive o presidente Trump. Ou seja, a Fox, como é habitual
entre os que lucram com mentiras, escorou-se em proteções constitucionais
básicas para legitimar o sistemático envenenamento da democracia.
Felizmente, mesmo num país que trata a
liberdade de expressão como um direito sagrado, a desculpa não colou, ante a
enxurrada de provas de que se tratava de difamação intencional.
Seria ingênuo supor que a Fox não esteja
gestando outro Tucker Carlson para apresentá-lo em momento oportuno; afinal,
não foi Carlson quem fez a Fox, antes pelo contrário – esse jornalista, que
desonra a profissão, foi durante um bom tempo um produto cuidadosamente
manufaturado pelos executivos da emissora para atiçar os instintos mais primitivos
de uma audiência progressivamente incapaz de pensar por si mesma. Há todo um
nicho de negócios que se criou em torno do negacionismo e da desinformação,
bastante explorado por maus jornalistas e vitaminado pela irresponsabilidade
das redes sociais, que desafia as leis, a ética e a democracia em todo o mundo.
Para todos os efeitos, contudo, o desfecho
do caso da Dominion contra a Fox serve para mostrar que felizmente há um
limite, pecuniário e reputacional, para os que insistem em fazer da desinformação
um modelo de negócios.
Perigo na Avenida Paulista
O Estado de S. Paulo
Paulistano é obrigado a adotar estratégias
de guerra para não ser roubado na avenida-símbolo de SP
Andar pelas ruas de São Paulo é hoje um ato
de coragem, e os paulistanos que encaram esse desafio diariamente se cercam de
estratégias de guerra. Falar ao celular, infelizmente, deixou de ser um direito
dos transeuntes na maior metrópole do País, sob pena de ter o aparelho levado a
qualquer hora do dia, em qualquer lugar. Roubos de carteiras, joias ou mesmo
bijuterias, entre outros pertences, também são ameaças constantes. Uma das
saídas acaba sendo esconder objetos até nas meias. Como se fosse normal viver
assim.
Chama especial atenção o fato de que essa
violência ganhou contornos de epidemia na Avenida Paulista − uma das vias
públicas mais vigiadas na região central de São Paulo. Como revelou o Estadão,
a avenida-símbolo da capital registrou no ano passado o maior número de roubos
dos últimos dez anos: 1.106, média de três ocorrências por dia. Houve aumento
também de furtos, atingindo o segundo maior patamar do período, com mais de 6
mil casos denunciados à polícia.
Ora, se a situação chegou a esse ponto na
Paulista, é assustador imaginar o que pode estar ocorrendo em outras áreas da
cidade. A propósito, vale lembrar que a Pinacoteca de São Paulo, no centro,
recentemente colocou um aviso na calçada para alertar seus frequentadores
quanto ao risco de usar celular nas imediações do prédio − algo que hotéis na
região da Paulista também fazem.
As estatísticas de roubos e furtos foram
obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e são reveladoras da
dinâmica dessas formas de crime. Conforme informou o Estadão, 42,3% dos casos
se deram nos arredores do Museu de Arte de São Paulo (Masp), num raio de 350
metros. Por outro lado, domingo, quando a avenida é fechada para carros, foi o
dia da semana com maior quantidade de furtos e roubos − 34,7% −, seguido por
sábado, com 14,2%. Em outras palavras, quase metade das ocorrências
concentrouse nos fins de semana ou numa área específica – o que, em tese,
deveria facilitar a prevenção e a repressão.
Eis um ponto de partida para o efetivo
combate a esse tipo de violência. Para isso, é essencial que as forças
policiais façam uso adequado dos dados. Mais que respostas protocolares sobre
reforço do policiamento ostensivo − iniciativa necessária, mas insuficiente −,
o que se espera são ações coordenadas de inteligência para mapear e prevenir
riscos. O mesmo vale para a Guarda Civil Metropolitana sob o comando da
Prefeitura. A rigor, essa mesma atitude deve orientar o policiamento em toda a
cidade e não somente na Avenida Paulista.
Lamentavelmente, a situação na avenida mais paulista de São Paulo é sintoma de uma onda de violência que se espalha pelas ruas. Ao tirar os pés de casa, o paulistano se vê forçado a encarar um campo de batalha. Roubos a transeuntes, como se sabe, afetam diretamente a percepção sobre segurança pública, o que tende a ter dramático impacto econômico e social. Sem a preservação do direito de ir e vir, prevalecem a desconfiança, o medo e o trauma. Não se faz uma cidade saudável assim.
Contribuição assistencial obrigatória é um
retrocesso
Valor Econômico
A contribuição será obrigatória para
trabalhadores não sindicalizados, desde que aprovada em acordos ou convenções
coletivas
A contribuição assistencial para os
sindicatos de trabalhadores poderá voltar a ser obrigatória - deixou de sê-lo
com a reforma trabalhista de 2017 -, após inesperada mudança de entendimento
dos ministro Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes. A inconstância do Supremo
parece ter se acelerado no tempo. Tanto em 2017 quanto em 2018 o tribunal se
debruçara sobre a questão do fim do imposto sindical e da cobrança da
contribuição, decidindo por manter a extinção do primeiro e tornar voluntária
para não sindicalizados a contribuição.
Gilmar Mendes e Barroso alegaram o
estrangulamento financeiro dos sindicatos com a queda das receitas - previsível
e abrupta. Não se estabeleceu na reforma trabalhista, nem nos julgamentos
envolvendo pontos polêmicos dela nos tribunais, um período de transição para o
fim do imposto. Os números variam um pouco, mas a redução dos recursos para os
sindicatos foi superior a 90% em um par de anos. O bolo dos recursos para
centrais, confederações, federações e sindicatos encolheu de R$ 3,5 bilhões em
2017, antes da reforma, para R$ 128,3 milhões em 2019.
O fator principal da redução foi o fim do
imposto sindical, criado na era Vargas, cujos efeitos atingiram com a mesma
intensidade os sindicatos patronais. Suas receitas cativas saíram de R$ 564
milhões em 2017 para R$ 31,4 milhões. A diferença é que as entidades empresariais
têm outras fontes de recursos, igualmente compulsórias, como as contribuições
do sistema S, da ordem de R$ 17 bilhões em 2021.
O ministro Alexandre Moraes pediu vistas do
processo que reintroduz a contribuição assistencial obrigatória. Falta apenas
um voto para que o STF a aprove, tendo já se manifestado favorável a ela, além
de Barroso e Mendes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli e Edson Fachin. Aprovada, a
contribuição será obrigatória para trabalhadores não sindicalizados, desde que
aprovada em acordos ou convenções coletivas. Foi garantido o direito de
oposição - o trabalhador terá que formalmente manifestar que não quer pagá-la.
A diferença é enorme em relação à regra
atual, que exige o consentimento expresso dos trabalhadores não sindicalizados
para a cobrança. No primeiro caso, os sindicatos têm de fazer um intenso
trabalho de convencimento para aumentar suas receitas. No segundo, é o
interessado, o trabalhador não sindicalizado, que terá de tomar providências
para não ser cobrado. Como os não sindicalizados, a enorme maioria, não
participam da vida associativa, a contribuição acabará sendo cobrada por
omissão.
O imposto sindical garantia vida
confortável aos sindicatos, que financeiramente eram como repartições do
Estado. A capacidade de arregimentação não influia na receita, era indiferente
buscá-la. Por isso a representação sindical definhou e segue caindo. Ela se
reduziu de 16,1% em 2012 para 14,4% em 2017, antes da reforma, e diminuiu para
11,2% em 2019, segundo dados do Diap. No setor privado, ela é ainda menor: 8%.
Por outro lado, como representantes
obrigatórios nos acordos coletivos, o que os sindicatos obtivessem nas
negociações era válido para toda a categoria. Pelo serviço, os trabalhadores
pagavam um dia de trabalho, o imposto sindical.
A contribuição compulsória traz vários
problemas. Um, que começou a surgir com o fim do imposto sindical, foi o de que
seu valor, fixado em assembleias em geral pouco representativas, chegava a
superar o do imposto sindical para atender à conveniência das burocracias das
entidades, fossem elas ativas ou acomodadas. A autorização formal que passou a
ser exigida pode refrear a demanda por recursos dentro de limites razoáveis,
sob pena de fracasso. Estimula também as entidades a consultas amplas de não
sindicalizados e campanhas de filiação, tornando-as necessárias, e não mais
dispensáveis, como na época do imposto. O trabalhador que objeta a cobrança não
tem de se deslocar até a sede do sindicato em horário comercial, como vários
exigiram, para protocolar sua discordância.
Por outro lado, os sindicatos perderam o
imposto mas não a unicidade, que veta mais de uma entidade representativa por
categoria por região ou cidade. Isso impede fusões horizontais, que reduziria
custos e daria mais eficiência às campanhas salariais. Esse problema não se
resolve com a obrigatoriedade da contribuição de não-sindicalizados, um
evidente retrocesso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário