Correio Braziliense
Com a ultrapassagem da sociedade industrial,
na qual era administrado e prejudicava os mais pobres, o risco é transversal a
todas as classes sociais. O risco de uma ventania pôr em colapso a cidade era
previsível
Os sintomas já estavam em toda parte, os mais
gritantes na Cracolândia, no centro de São Paulo, e na multidão de moradores de
rua, na violência cotidiana nas periferias e no trânsito cada vez mais caótico,
mas foi o apagão provocado pela tempestade deste fim de semana que tornou esse
assunto um tema central no debate eleitoral de São Paulo: o risco de colapso
urbano existe. Tanto que o prefeito Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição,
e o candidato de oposição, Guilherme Boulos (PSol), se digladiaram na tevê e
trocaram acusações mútuas sobre as responsabilidades pelo colapso do sistema de
distribuição de energia, que veio abaixo com as árvores derrubadas pelo vento.
Foi uma tempestade perfeita. De acordo com a
Defesa Civil, as rajadas de vento chegaram aos 87 quilômetros por hora na
estação meteorológica da Lapa e Vila Leopoldina, na zona oeste da cidade, na
noite de sábado. O aeroporto de Congonhas teve as operações de pousos e
decolagens suspensas das 19h53 às 20h12. O “evento extremo” numa cidade como
São Paulo mostrou uma nova realidade: bairros como Morumbi, Butantã, Vila
Maria, Pinheiros, Perdizes, Barra Funda e Bela Vista ficaram sem energia, não
foi apenas a periferia. A mesma coisa aconteceu nas cidades da Grande São
Paulo. Milhares de residências continua sem energia, os prejuízos econômicos
são imensos.
São Paulo não está preparada para eventos
extremos, tanto quando Porto Alegre durante as enchentes do Rio Grande Sul. A
prefeitura não faz a poda de árvores (deve existir um contrato para isso a ser
fiscalizado); a Enel, a distribuidora de energia, não tinha um plano de
contingência e não fez os investimentos que deveria em infraestrutura
(provavelmente seus transformadores, sobrecarregados, entraram em colapso); a
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) não cumpriu seu papel
fiscalizador. O governo federal é responsável pela concessão. Trocando em
miúdos, todos têm alguma culpa no cartório e os cidadãos paulistas estão se
dando conta de que a vivem numa “sociedade de risco”.
Esse conceito surgiu com a publicação do livro Risikogesellschaft, de Ulrich Beck, em 1986, alguns meses antes do acidente nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, que viria a dar dimensão factual ao texto. Mesmo assim, no Brasil, somente foi publicado 20 anos depois, sob o título Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade (Editora 34). A gravidade do que ocorreu àquela época na usina nuclear colocou em xeque a “guerra fria” entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética e levou o líder comunista Mikhail Gorbatchov a pôr fim à corrida nuclear. Ganhou o Nobel da Paz de 1990.
O fenômeno se repetiu por ocasião do tsunami
de 11 de março de 2011, no Japão, que sofreu sua maior catástrofe desde as
bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945. Um terremoto
fortíssimo no Oceano Pacífico provocou um tsunami também devastador, contra o
qual mesmo as sólidas defesas japonesas não tiveram chance. A fúria do mar, por
sua vez, provocou um acidente nuclear na usina de Fukushima, 260 quilômetros ao
norte de Tóquio. Mais de 18 mil pessoas foram mortas pelo tsunami, e o acidente
em Fukushima forçou a retirada de 160 mil pessoas que moravam nas imediações.
Perda de controle
Na concepção de Beck, perigos são fabricados
de forma industrial, exteriorizados economicamente, individualizados no plano
jurídico, legitimados no plano das ciências exatas e minimizados no plano
político. Seu ponto de partida é a modernização reflexiva: as consequências do
desenvolvimento científico, industrial e tecnológico implicam riscos que não
podem ser contidos espacial ou temporalmente. Mais ainda: como a riqueza, esses
riscos são distribuídos socialmente. Na sociedade industrial, até poderiam ser administrados
de acordo com as relações de poder.
Com a ultrapassagem da sociedade industrial,
na qual os riscos eram administrados e, geralmente, prejudicavam os mais
pobres, agora o risco é transversal a todas as classes sociais. A pandemia de
covid-19 é um exemplo. Grosso modo, riscos são administrados de cima para
baixo, de acordo com análises de cientistas e peritos, e administrados
politicamente, de acordo com a posição econômica e social. Não é mais assim.
O desenvolvimento científico e tecnológico
perdeu o controle sobre os riscos ambientais, biológicos, químicos e nucleares.
A percepção e a consciência dos riscos pelos cidadãos comuns, porém, não são
irracionais ou desinformadas, mas produtos de processos complexos que definem o
que é aceitável, o que é digno, o que está de acordo com as suas maneiras de
ser, pensar e agir. Precisam ser levados em conta, daí a importância do debate
eleitoral que ocorre em São Paulo.
Ter uma cultura de risco implica possuir
conhecimentos que permitem a prevenção de situações de risco e a autoproteção
em caso de perigo. O risco está cada vez mais presente no nosso cotidiano. O
que mais impressiona na crise atual de São Paulo é que o risco de uma ventania
pôr em colapso a cidade era previsível desde o primeiro apagão provocado pela
queda de árvores.
Um comentário:
Sim,as árvores caem.
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