Sinais ambíguos de Lula trazem prejuízo à economia
O Globo
Para resgatar credibilidade, presidente deve
apoiar o plano de controle de gastos da equipe econômica
São ambíguos os sinais relativos à política
econômica que emanam do Planalto. De um lado, o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva voltou a falar, em entrevista à rádio O Povo/CBN, de Fortaleza, na
proposta demagógica de elevar o patamar de isenção de Imposto de Renda até R$ 5
mil mensais — nível que alcançaria a classe média e deixaria quase 70% dos
possíveis contribuintes livres de imposto. De outro, o ministro da
Fazenda, Fernando
Haddad, afirmou que apresentará uma proposta para controle de gastos
logo depois da eleição municipal e deu a entender que Lula está disposto a
apoiá-la se levar à reconquista do grau de investimento para papéis da dívida
brasileira.
A elevação da nota de crédito do Brasil pela agência Moody’s teve efeito aparentemente positivo sobre Lula, que vislumbrou um caminho para reeditar uma das maiores conquistas de seus primeiros governos. Por isso, num momento em que o governo vem perdendo credibilidade diante do mercado financeiro e dos agentes econômicos em razão da percepção de descompromisso com o equilíbrio fiscal, é fundamental que ele desfaça qualquer sombra de ambiguidade nos sinais que transmite: deve apoiar de modo enfático os planos de controle de gastos apresentados por Haddad e esquecer o populismo sem base na realidade que cerca a revisão do Imposto de Renda.
Pelas informações disponíveis, o plano de
Haddad deverá prever cortes nos supersalários do funcionalismo — pagos acima do
teto constitucional —, o fim da indexação ao salário mínimo do Benefício de
Prestação Continuada (BPC) — concedido a idosos de baixa renda ou a deficientes
— e o aumento na idade de concessão, além de mudança de critérios de acesso ao
abono salarial. Tais medidas evitariam o crescimento desproporcional dos
gastos, sem prejudicar o rendimento dos mais necessitados, já que os benefícios
seriam corrigidos pela inflação. Aliadas ao pente-fino noutros benefícios, como
seguro-desemprego, seguro defeso e auxílio-doença, trariam um horizonte mais
crível para o equilíbrio fiscal e contribuiriam para resgatar algo da
credibilidade perdida.
Quanto à revisão do Imposto de Renda, é
meritória a iniciativa de tornar a cobrança mais progressiva e mais justa. Mas
isso não deve ser feito isentando boa parte da classe média e imaginando que o
buraco aberto nas contas públicas — estimado em até R$ 60 bilhões — poderá ser
coberto com abstrações genéricas e populistas como “taxar milionários” ou os
“especuladores”.
Dezenas de distorções e isenções de eficácia
duvidosa beneficiam grupos específicos. As renúncias tributárias no Orçamento
de 2025 somam R$ 544 bilhões, ou 4,4% do PIB. É fundamental revê-las para
apresentar um plano consistente ao Congresso. Mas, com a reforma tributária dos
impostos sobre consumo em curso, à espera de regulamentação ainda neste ano, a
tentativa de criar de improviso mais uma isenção sobre a renda só contribuirá
para semear confusão. Essa é uma discussão que precisa amadurecer com base em estudos
e análises fundamentados, não no mero desejo de Lula.
O presidente faria bem se entendesse algo simples, que já está claro há muito tempo para sua própria equipe econômica: o mais crítico para o êxito de seu governo nessa área é um plano exequível de controle de gastos e ajuste fiscal, única medida capaz de resgatar a credibilidade do próprio Lula.
Extinção das penas pelo massacre do Carandiru
é inadmissível
O Globo
Em razão da lentidão da Justiça, até hoje
nenhum dos 74 policiais condenados ficou preso um dia sequer
Passados 32 anos da rebelião sufocada pela PM
no presídio do Carandiru, em São Paulo, o caso ainda não está encerrado na
Justiça, e nenhum dos 74 policiais militares condenados pelo massacre de 77
presos cumpriu um dia sequer da pena. Exemplo eloquente da lentidão do
Judiciário, o processo enfrenta mais um percalço com a decisão tomada pela 4ª
Câmara do Direito Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) paulista de extinguir as
penas dos policiais — distribuídas entre 48 e 624 anos de prisão — sem ouvir o
Ministério Público (MP) de São Paulo. O MP, com toda razão, recorreu contra a
sentença.
No centro da discussão está o decreto de
indulto de Natal editado pelo ainda presidente Jair Bolsonaro no fim do seu
governo, em 2022. O texto do decreto foi redigido sob medida para beneficiar os
policiais condenados ao estender o indulto a condenados por “fato praticado há
mais de 30 anos”, quando o crime “não era considerado hediondo no momento de
sua prática”.
A legislação proíbe que o presidente indulte
crimes hediondos. Há mais de três décadas, o homicídio qualificado não era
considerado hediondo. Isso só viria a ocorrer dois anos depois do massacre— a
motivação, em parte, foi a barbárie cometida pelos policiais que entraram no
presídio fortemente armados, levando cachorros adestrados. Foram mortos 111
presos. As evidências comprovaram a execução de 77 pelos policiais. Os presos
estavam sob a custódia do Estado, depois de julgados e condenados, e foram executados
por agentes públicos que deveriam dar o exemplo no cumprimento da lei. A
dimensão e as características do crime desde o primeiro momento o qualificavam
como uma barbárie inaceitável num Estado Democrático de Direito.
Depois de muita protelação, os réus foram
enfim julgados e condenados em 2013, mas a sentença foi anulada na segunda
instância. Só em 2022 o Supremo Tribunal Federal (STF) a confirmou. Em seguida
veio o decreto de Bolsonaro . Ele era tão absurdo que levou o então
procurador-geral da República, Augusto Aras, conhecido pelo alinhamento com o
Planalto, a recorrer ao Supremo. Em janeiro de 2023, a ministra Rosa Weber
suspendeu de forma liminar o trecho do indulto que beneficiava os policiais. O
MP ajuizou uma ação de arguição de inconstitucionalidade, que começou a ser
julgada em abril de 2023 pelo Órgão Especial do TJ. Mas a Corte resolveu
esperar pelo julgamento do processo no STF. Em junho passado, o ministro Luiz
Fux, relator do processo, decidiu que a Justiça de São Paulo poderia continuar
seu julgamento. O resultado agora foi a extinção das penas.
Além de a Constituição impedir indultos em
crimes hediondos, entidades de defesa dos direitos humanos ressaltaram que
indulto de Natal não pode beneficiar um grupo específico, como os policiais. O
decreto de Bolsonaro desconsidera a brutalidade com que os presos foram mortos.
Um novo pronunciamento das Cortes superiores reforçaria os direitos
constitucionais e contribuiria para desfazer a imagem de ineficácia da Justiça
brasileira na punição aos criminosos.
Com rigor fiscal, governo colherá trunfos
políticos e econômicos
Valor Econômico
Haddad terá de convencer o presidente e o
núcleo palaciano de que essa é a coisa certa a fazer, mas não é certo que
consiga
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
apontou a saída para o rápido endividamento fiscal: sem conter as despesas o
novo regime não para em pé. A descrença nas regras fiscais levou os
investidores a apostarem em juros futuros cada vez mais - até 13,5% diante de
uma inflação de 4,5%. Há crescimento robusto, mas à custa de estímulos que
tornam a inflação mais resistente, o real mais depreciado e o déficit fiscal
bem maior do que o previsto no início do governo Lula. “Temos agora que
resolver a reestruturação da despesa. Isso vem na frente de qualquer coisa”,
disse Haddad (Folha de S. Paulo, ontem), em atitude promissora que visa a
retirar o regime fiscal da zona de incredulidade.
A ordem dos fatores foi alterada. A
preparação de uma mal planejada e inconveniente isenção do Imposto de Renda até
R$ 5 mil foi adiada até segunda ordem, provavelmente para 2025. A insistência
na mudança pelo presidente Lula provocou nova rodada de desconfiança dos
mercados sobre a solidez do regime fiscal e novo disparo dos juros e do dólar.
Haddad, com bom senso, e sem entrar no mérito da proposta - para a qual sua
equipe estuda um leque de alternativas -, parece ter convencido o presidente de
que a política econômica tem uma outra sequência necessária de passos. Antes de
mexer na tributação da renda, é necessário que a tributação do consumo, via
reforma tributária, nas mãos do Senado, seja aprovada.
Tudo indica que Haddad percebeu o que a
burocracia do Planalto, e Lula com ela, não se deram conta, ou desdenham. Os
gastos obrigatórios estão crescendo muito além do previsto, como já fora
alertado pela Fazenda e pelo Planejamento, e o governo pode entrar em um apagão
em 2027, ou antes. Se a perspectiva política do presidente é a de se reeleger,
de nada servirá legar a si próprio uma bomba fiscal - aliás, duas. O próximo
governo estreará com a obrigação de os precatórios voltarem a contar para a
meta fiscal, uma carga de mais de R$ 40 bilhões anuais que hoje está fora dela.
A trajetória fiscal, como os mercados sinalizam, é insustentável, embora o
limiar da insolvência esteja ainda a uma boa distância.
Em entrevista, Haddad sugeriu que o
presidente “conhece o contexto e está atento” ao que a equipe econômica anda
elaborando para revisão de gastos. De forma imediata, a correção das despesas
com o Benefício de Prestação Continuada, o abono salarial e o seguro-desemprego,
que acompanham a variação do salário mínimo acima da inflação, pressiona o
regime fiscal e tende a inviabilizar a obtenção da meta. Como são despesas
obrigatórias, empurram as discricionárias, onde entram custeio e investimentos,
para uma contração absoluta ao longo do tempo, com o potencial de paralisar a
máquina federal.
Essa é a uma das maiores inconsistências do
novo regime, mas não a única. É, porém, a mais fácil de ser resolvida, porque
basta uma decisão política para modificá-la. Não há impedimento constitucional
para desvincular essas despesas do salário mínimo, e muito menos para
readequá-las a um arranjo melhor para as contas públicas. Há uma sobreposição
ineficaz e custosa de mecanismos destinados a amparar o desempregado, em
especial o seguro, que, paradoxalmente, tanto mais cresce quanto maior é o
nível de ocupação.
A dificuldade política é gigantesca em
relação à mudança na maior despesa da União, a com aposentadorias e pensões,
cujo piso, vinculado ao salário mínimo, tem apoio constitucional, e removê-la
poderia levar a uma batalha judicial de anos, com perspectiva bastante duvidosa
de vitória para a União. Seria mais fácil retirar a correção real do salário
mínimo pela evolução do PIB de dois anos anteriores, mas essa parece ser uma
marca registrada dos governos Lula da qual o presidente não demonstra interesse
em abdicar, apesar de ser um dos fatores mais relevantes para o avanço dos
gastos obrigatórios.
Outra questão difícil de resolver, mas que
precisa ser equacionada, pois contradiz a lógica do regime fiscal, é a
indexação dos gastos de saúde e educação à evolução das receitas líquidas -
isto é, quanto maior a arrecadação, mais crescerão as despesas com esses
setores. A vinculação também é constitucional, e modificá-la exigirá grande
costura política, supondo que o presidente Lula queira fazer esse esforço, algo
que até agora não demonstrou.
O ministro da Fazenda não desistirá de buscar
mais receitas para a União, mas a ênfase agora, pelo menos na intenção, é
conter despesas, o flanco vulnerável do ajuste fiscal. Haddad reconheceu como
legítima a preocupação com o avanço das despesas, e a intenção de revisar os
gastos ganhou prioridade e vai na direção certa. Se de alguma forma as despesas
obrigatórias forem desaceleradas, as contas públicas poderão apresentar
superávit primário em curto prazo, como o governo previu quando o novo regime
fiscal foi concebido. Haddad terá de convencer o presidente e o núcleo
palaciano de que essa é a coisa certa a fazer, e que as recompensas - queda dos
juros, desafogo fiscal, maior crescimento e a obtenção do grau de investimento
pelas agências de rating da dívida - permitirão ao governo colher trunfos
políticos e econômicos. Não é certo que consiga.
Política econômica crível demanda mais que
palavras
Folha de S. Paulo
Haddad prega medidas necessárias para conter
gastos, mas Lula faz o oposto; temores podem elevar dólar, inflação e juros
É notável o equilibrismo do ministro Fernando
Haddad, que, em entrevista
à Folha, apresenta um diagnóstico razoável do cenário econômico
e prega as medidas necessárias para sustar a escalada dos gastos públicos, mas
sem melindrar nem expor o chefe de governo, Luiz Inácio Lula da
Silva (PT),
que diz e faz o oposto.
O titular da Fazenda se esforça para vender
uma leitura mais otimista da conjuntura atual, o que é até certo ponto
compreensível —desde, claro, que ele não creia piamente no que afirma.
Haddad celebra a taxa surpreendente de 3% de
crescimento do Produto Interno Bruto e a atribui a méritos insondáveis da
administração petista, não ao
aumento desmesurado da despesa do Tesouro. Nesse caso, conviria
explicar por que o PIB cresceu
os mesmos 3% em 2022, sob a farra eleitoral de Jair
Bolsonaro (PL).
Mais ainda, por que o Banco Central teve
de iniciar
um novo ciclo de alta dos juros, já elevadíssimos, em razão do
expansionismo orçamentário que alimenta a inflação e
a dívida pública.
Tampouco é prudente amparar-se na tese de que
a meta fiscal deste ano está sendo cumprida. O objetivo anunciado era déficit
zero, e o governo busca de fato um déficit na casa dos R$ 28 bilhões, no limite
da margem permitida por lei —e, ainda assim, tirando uma série de gastos da
conta.
De melhor, Haddad admite sem meias palavras
que o programa de ajuste das contas públicas não funcionará sem um controle da
expansão de grandes despesas, aí citadas educação, saúde e as decorrentes dos
reajustes do salário mínimo acima da inflação.
Embora trate-se do óbvio para quem tem acesso
aos dados e não faz parte das hostes petistas e assemelhadas, o reconhecimento
por parte do ministro preserva a sensatez no debate. Para além disso, tudo
ainda é incerto.
Acredite quem quiser que Lula, carente de
popularidade e com a reeleição na mira dentro de dois anos, estará disposto a
rever regras criadas por seu próprio governo. Se vier a fazê-lo, será somente
sob ameaça de uma crise financeira grave e imediata.
Haddad relata que a necessidade de conter
gastos é tema frequente e prioritário de suas conversas com o presidente da
República. Resta claro, no entanto, que as tentativas de convencimento em nada
resultaram até o momento —embora expectativas de que algo será feito sejam
semeadas sempre que há turbulências no mercado, como agora.
Sem providências palpáveis contra a elevação
contínua da dívida pública, meras palavras tendem a ter eficácia decrescente
ante temores que levam à alta das cotações do dólar e dificultam ainda mais a
gestão da economia.
O ministro tem assumido com habilidade o
papel de defensor solitário da responsabilidade orçamentária em Brasília, mas é
um quadro do partido que segue fielmente a liderança de Lula. É do Palácio do
Planalto, portanto, que precisam vir mostras de endosso às diretrizes da
Fazenda.
SP tem Orçamento recorde e atraso de gestão a
superar
Folha de S. Paulo
Em 2025, prefeito deve ter finanças mais
favoráveis que as de antecessores; margem para investimentos ainda é estreita
Por muitos anos, especialmente no início
deste século, a gestão da prefeitura paulistana parecia inviabilizada pela
penúria orçamentária.
A dívida do município, impulsionada sob Paulo Maluf (1993-96)
e Celso Pitta (1997-2000), chegou a corresponder a mais de 200% da receita
anual, segundo os critérios da Lei de Responsabilidade Fiscal, que impõe teto
de 120% para o indicador. Sem crédito nem boa capacidade de investimento,
a maior cidade do país derrubava reputações de prefeitos.
A situação só começou a mudar a partir de
2016, quando o governo federal, principal credor, promoveu mais uma
renegociação de dívidas dos entes federativos. Outro passo decisivo foi dado em
2022, com o acordo para a devolução do Aeroporto Campo de Marte à União em
troca de uma indenização bilionária.
O cofre paulistano, ademais, foi reforçado
durante a pandemia, quando o Congresso aprovou um pacote de socorro a estados e
municípios que se mostrou superior ao necessário. Passado o pior da crise
sanitária, as receitas aumentaram com a recuperação surpreendente da economia.
Em consequência, a dívida da prefeitura ronda
hoje não mais que R$ 22 bilhões, menos que os R$ 25,6 bilhões contabilizados no
caixa em agosto último —e o projeto de Orçamento para o próximo ano bate
novo recorde de despesas autorizadas, de R$ 122,7 bilhões, como
mostra uma série de reportagens da Folha.
Trata-se de montante superior ao previsto na
quase totalidade dos estados do país, exceções feitas a São Paulo (R$
372,5 bilhões) e Minas Gerais (R$ 133,8 bilhões) —no Rio, o valor orçado é
muito semelhante (R$ 122,2 bilhões).
A situação financeira favorável não
significa, entretanto, que há dinheiro sobrando. Gastos
correntes, de caráter continuado e no mais das vezes obrigatórios,
consomem perto de 95% das principais receitas. Estreita-se, assim, a margem
para investimentos e novos programas.
As principais áreas finalísticas no município
são educação, saúde,
urbanismo (manutenção e obras) e transporte. Com a adição dos inescapáveis
encargos previdenciários, chega-se perto de 80% dos desembolsos totais.
Seja Ricardo Nunes (MDB), caso reeleito, seja Guilherme Boulos (PSOL), o prefeito que assumir no próximo ano deverá ter pela frente, de todo modo, um mandato inteiro de condições orçamentárias bem melhores que as enfrentadas pelos antecessores. Sua responsabilidade será evitar tentações perdulárias e superar os múltiplos atrasos na gestão da cidade mais rica do país.
Está difícil defender o Supremo
O Estado de S. Paulo
Crise de confiança no STF deveria ser
resolvida por autocontenção dos ministros. Mas não se pode esperar por
autocontenção quando os próprios ministros não admitem que erram
Está muito difícil defender o Supremo
Tribunal Federal (STF) ultimamente. O Estadão, recorde-se, esteve na
vanguarda do apoio ao Supremo quando a Corte, de modo destemido, ajudou a
desbaratar o golpismo que foi urdido pelos inconformados com a democracia
durante o tenebroso mandato de Jair Bolsonaro na Presidência. Mas hoje já não
há mais ameaça que justifique a excepcionalidade hermenêutica e moral que
alguns dos ministros parecem reivindicar, pairando, como os deuses olímpicos,
acima do bem e do mal. E isso, obviamente, é indefensável para os que, como
este jornal, prezam os princípios mais comezinhos da República.
Tome-se o exemplo de recente declaração do
presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, a propósito da presença
dele e de seus colegas de Corte em eventos empresariais privados mundo afora.
Para o sr. Barroso, não há nenhum problema moral ou institucional quando ele e
o ministro Dias Toffoli aceitam participar de um convescote para “discutir o
Brasil” confortavelmente em Roma sob o patrocínio da JBS, empresa dos irmãos
Joesley e Wesley Batista – que inclusive integrou um dos painéis como palestrante.
Além do fato de a mulher do sr. Toffoli, Roberta Rangel, advogar para a holding
J&F, controladora da JBS, o próprio ministro exarou inesquecíveis decisões
monocráticas que beneficiaram diretamente os irmãos Batista, em particular a
que anulou uma multa de R$ 10,3 bilhões estabelecida no acordo de leniência
firmado pelo grupo empresarial com o Ministério Público Federal. É esse tipo de
comportamento que de fato torna urgente “discutir o Brasil” – e não precisa ser
em Roma ou alhures, pode ser aqui mesmo.
Pois para o sr. Barroso, quem critica sua
presença e a de seu colega Toffoli no evento de Roma ou em qualquer outro do
gênero, que lamentavelmente já se tornaram comuns, é movido por “preconceito
contra a iniciativa privada”. Ora, este jornal, como sabem todos, é entusiasta
da iniciativa privada desde sua fundação, lá se vão quase 150 anos. Ao mesmo
tempo, contudo, é empedernido defensor da distinção entre o público e o
privado, exatamente para que não haja contaminação de interesses privados na
tomada pública de decisões, especialmente no terreno jurídico, como se espera
no Estado Democrático de Direito. Por essa razão, repudiamos a presença de
ministros do Supremo em eventos privados que têm, entre seus propósitos
subjacentes, aproximar empresários com causas no Judiciário e juízes que podem
vir a julgá-las.
A fala do sr. Barroso recenderia a cinismo
não fosse mais uma mostra de quão descolado o presidente do STF parece estar da
realidade do País e, principalmente, daquilo que a sociedade espera do chefe do
Poder Judiciário. À guisa de defesa, Barroso tornou a dizer que “conversa” com
os mais variados setores da sociedade, demonstrando não ver problema algum em
também “conversar”, ora vejam, com grandes empresários que têm total interesse
em decisões do STF que afetam diretamente os seus negócios. Numa leitura eivada
de autoritarismo das justas críticas que o STF tem recebido pela abertura que
dá à desconfiança dos cidadãos, Barroso, na prática, espera que os brasileiros
simplesmente confiem na integridade e nas boas intenções dos ministros do STF –
afinal, é a instituição que, segundo suas palavras, haverá de “recivilizar” o
Brasil.
Basicamente, só há duas saídas para essa
crise de confiança por que passa o Supremo há mais tempo do que seria
suportável pela democracia brasileira. A primeira está em andamento no
Congresso e tem o objetivo de conter a atuação do STF por meio de Propostas de
Emenda à Constituição e projetos de lei. Não é a saída ideal, haja vista que
implica uma politização que pode levar a resultados muito distintos – e mais
perigosos – do que os esperados.
A outra saída é a tão ansiada autocontenção.
Mas, para que se autocontenham, é óbvio, primeiro os ministros do STF
precisariam admitir que erram. E por ora não há sinal de que Suas Excelências
deixaram de confundir a toga que vestem com a Égide de Atena.
Artilharia contra o alvo errado
O Estado de S. Paulo
Apagão em São Paulo é o mais novo pretexto do
ministro Silveira para fustigar a Aneel, contra a qual declarou guerra por se
recusar a aceitar a autonomia da agência reguladora
No mundo dos negócios, é comum repetir a
máxima de que toda crise pode se transformar em uma oportunidade.
Frequentemente, no entanto, situações adversas não se convertem em ocasiões de
melhoria ou aprendizado, mas em pretextos para arrivistas aproveitarem as
circunstâncias para fazer o que já queriam ter feito.
Vejamos o episódio que assola a maior cidade
do País desde a semana passada. Quase 300 mil residências paulistanas continuam
sem luz passados tantos dias da tempestade da noite de sexta-feira. Por pior
que tenha sido o temporal, não parece haver justificativa para a demora da Enel
São Paulo em restabelecer o fornecimento de energia na região.
Indícios, no entanto, precisam ser
comprovados, e de maneira técnica. Se houve incompetência, cabe à Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel) apurar os fatos em um processo próprio,
com base na legislação, nos regulamentos do setor e no contrato firmado entre a
empresa e a União. Ao fim desse processo, a Aneel pode até recomendar a
caducidade da concessão, mas a empresa deve ter assegurado o amplo direito à
defesa.
É o que a agência reguladora tem feito nos
últimos anos. Desde 2018, o órgão regulador aplicou multas que totalizaram R$
320 milhões à Enel-SP. É assim que funciona a regulação econômica no setor
elétrico. A Aneel estabelece uma tarifa capaz de atrair o setor privado e não
sobrecarregar em demasia o consumidor, premia as empresas que superam os
indicadores e pune aquelas que não cumprem o esperado – caso da concessionária
em questão.
Certamente há espaço para aperfeiçoamentos,
mas até mesmo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
atestou que a Aneel é um exemplo a ser seguido por outras agências reguladoras
brasileiras em termos de governança, transparência e qualidade técnica.
É incompreensível, portanto, o anúncio da
Controladoria-Geral da União (CGU) de que fará uma auditoria no processo de
fiscalização da Aneel sobre a Enel-SP. Segundo o ministro Vinicius Marques de
Carvalho, trata-se de um pedido do presidente Lula da Silva, que julga não
terem sido tomadas medidas suficientes para mitigar os danos do apagão de
novembro do ano passado.
Ora, em razão desse episódio, a Aneel emitiu
a maior penalidade de sua história à Enel-SP, de R$ 165,8 milhões. O motivo foi
justamente a leniência da empresa em restabelecer o fornecimento de energia.
Essa multa só não foi paga porque a distribuidora recorreu à Justiça para
suspender a cobrança até que o mérito da ação seja julgado – como, aliás, é seu
direito.
O ato da CGU parece ser apenas mais uma etapa
da guerra deflagrada pelo governo contra a Aneel. A artilharia é liderada pelo
ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que não perde a chance de
fustigar a agência.
Em sua saga, Silveira chegou a acusar os
diretores de serem bolsonaristas e boicotarem os interesses do País, embora ele
mesmo, enquanto senador, quase tenha se tornado líder do governo Bolsonaro na
Casa a convite da administração anterior.
Bem se sabe que a rusga de Silveira nada tem
a ver com convicções políticas. A exemplo de muitos integrantes do governo,
inclusive Lula da Silva, ele finge não entender o conceito de autonomia das
agências reguladoras. Embora esteja vinculada ao Ministério de Minas e Energia,
a Aneel não se subordina ao Executivo, como deseja o ministro.
A verdade é que as agências reguladoras são
pilares do modelo de privatizações de empresas estatais, algo que Lula da Silva
nunca apoiou. Para funcionarem bem, elas dependem de indicações técnicas, um
critério não raro relegado a segundo plano. Isso não significa que elas devam
ser atacadas, mas sim valorizadas e fortalecidas para cumprir sua função
enquanto instituições de Estado.
A tese dos vencedores do Prêmio Nobel de
Economia deste ano, Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, é a de que
países com instituições fortes, que protegem os direitos de propriedade e
permitem a participação econômica generalizada, tendem a ser mais ricos e
prósperos e menos desiguais. Quem sabe agora o governo Lula da Silva consiga
assimilar essa ideia.
Um Nobel à prosperidade
O Estado de S. Paulo
Premiação destaca papel de instituições
sólidas na indução do crescimento econômico
Os economistas Daron Acemoglu, Simon Johnson
e James Robinson receberam o prêmio de Ciências Econômicas concedido pelo Banco
Central da Suécia (mais conhecido como Nobel de Economia) deste ano por terem
“demonstrado a importância de instituições sociais para a prosperidade de um
país”. A premiação não poderia vir em melhor hora, uma vez que não apenas no
Brasil, mas no mundo, ataques ao Estado de Direito e às instituições
democráticas vivem uma escalada agressiva.
O tipo de instituição legado ao mundo pelos
colonizadores europeus tem tudo a ver, segundo Acemoglu, Johnson e Robinson,
com a prosperidade de uma nação. Como bem se sabe no Brasil, o objetivo da
colonização, em alguns países, era explorar a população nativa e extrair
recursos naturais em benefício dos colonizadores. Mas houve casos em que os
colonizadores também construíram sistemas políticos e econômicos inclusivos
para o benefício deles próprios, pois se estabeleceriam nesses novos destinos.
E é a diferença entre esses modelos que, afirmam os laureados, explica por que
20% dos países mais ricos do mundo são hoje 30 vezes mais ricos que os 20% mais
pobres, além de a diferença de renda entre nações mais ricas e mais pobres ser
persistente.
Países nos quais a colonização promoveu a
formação de instituições sólidas prosperaram, enquanto aqueles nos quais os
colonizadores buscaram primordialmente a exploração das populações e dos
recursos locais são mais pobres. Ainda que os países pobres também tenham se
tornado mais ricos, eles são hoje bem menos prósperos que aqueles cuja
colonização foi realizada num ambiente em que o colonizador reduziu o arbítrio
e fortaleceu a estabilidade e a previsibilidade.
De acordo com Acemoglu, Johnson e Robinson, é
o padrão de colonização – instituições fracas ou fortes – que explica a
prosperidade de uma nação, e não o tipo de colonizador. Aqui reside uma lição
importante para o Brasil, onde há certa crença de que a colonização anglo-saxã
seria “superior” à ibérica e que é por isso que nosso país não prospera. Ora,
nem toda nação colonizada por anglo-saxões é próspera. Os integrantes do antigo
Império Britânico são hoje um emaranhado de países completamente desigual, muitos
dos quais bem mais atrasados que o Brasil.
Posto que não se pode passar a vida a
lamentar o modelo de colonização que os portugueses empregaram no Brasil nem
seguir pela eternidade atado à crença infundada de que foi o colonizador em si,
não o modelo adotado, que nos trouxe até aqui, resta buscar fortalecer e
respeitar as instituições, aquelas que, segundo as evidências, são o alicerce
das nações prósperas, mas que vivem sob ataques cada vez mais constantes, à
esquerda e à direita.
A lição do Nobel é clara. Em vez de buscar aparelhar ou cooptar o Estado para dele extrair privilégios e proteger seus interesses privados em detrimento dos interesses públicos, a elite brasileira, tanto no setor público como no setor privado, deveria investir tempo e energia para fortalecer as instituições que garantem a estabilidade e a justiça, condições indispensáveis para a prosperidade sustentável de todos e de cada um dos cidadãos.
É preciso combater o machismo no futebol
brasileiro
Correio Braziliense
O cenário exige que os clubes e as
confederações tomem medidas duras para combater a violência contra a mulher no
futebol e, mais do que isso, conscientizem seus atletas sobre eventuais crimes
que se tornaram recorrentes no noticiário esportivo
Quando se fala sobre o mundo da bola, a maior
parte do debate público se volta ao que acontece dentro das quatro linhas.
Gols, passes, dribles, defesas marcantes e até erros de arbitragem ocupam o
imaginário popular com contornos de emoção. Nos últimos anos, porém, chama a
atenção a ainda limitada discussão sobre a violência contra a mulher no esporte
mais popular do país — situação que já colocou atrás das grades jogadores
renomados com passagens pela Seleção Brasileira, como Robinho e Daniel Alves.
Na Europa, veio à tona ontem uma investigação
do Ministério Público da Suécia que, segundo a imprensa internacional, pode
envolver o nome do atacante Kylian Mbappé, estrela do Real Madrid e da França,
um dos maiores craques da atualidade. Sua advogada garante a inocência
dele. Ainda na Espanha, circulou na imprensa mundial, no mês passado, um
"contrato de estupro acidental" que jogadores têm apresentado a
mulheres para evitar denúncias de crimes do tipo, diante da alta de casos
recentemente. O documento, além de frágil judicialmente, expõe a faceta mais
cruel do machismo no futebol. Os atletas invertem a lógica e querem, na
prática, ser tratados como uma parcela da sociedade acima do bem e do mal.
Todo esse contexto se soma ao que se vê nas
arquibancadas mundo afora. Quem frequenta estádios se depara com frequência com
músicas machistas, que objetificam a mulher para provocar um rival — sem contar
os olhares indesejados independentemente da roupa usada. O cenário exige que os
clubes e as confederações tomem medidas duras para combater a violência contra
a mulher no futebol e, mais do que isso, conscientizem seus atletas sobre
eventuais crimes que se tornaram recorrentes no noticiário esportivo.
Recentemente, Atlético, Cruzeiro e América
marcaram golaços ao divulgarem, entre seus funcionários, inclusive os atletas,
o protocolo Fale Agora, desenvolvido pela Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Social de Minas Gerais (Sedese-MG) para trabalhar a questão com
os departamentos de psicologia e pedagogia dos três principais clubes mineiros.
É papel dos clubes realizar medidas efetivas
para reduzir os casos de violência contra a mulher. Pouco adianta aderir a
campanhas educativas nos uniformes se, dentro do vestiário, posturas machistas
são aceitas sem problematização. Ou se atletas são contratados mesmo com
denúncias de crimes contra mulheres. Não se trata de caça às bruxas, mas é
preciso prudência para que aquele acusado só volte a ocupar uma posição de
destaque após a apuração completa do caso.
Parte desse combate também passa por maiores investimentos no futebol feminino — parcela essa que também cabe ao torcedor cobrar efetivamente seus dirigentes. Além disso, é preciso reconhecer a atribuição que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) tem nesse necessário combate. Sempre muito preocupada com a Seleção Brasileira, a CBF fecha os olhos para problemas recorrentes da modalidade no país — entre eles, a violência contra a mulher e o machismo abertamente vociferado com orgulho nas arquibancadas. Um problema não só do esporte, mas também dele.
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