Esta
coluna é dedicada aos brasileiros assassinados na favela do Jacarezinho, Rio de
Janeiro, na última quinta-feira, dia 6. Seus CPFs, ou suas “folhas corridas”,
não são condições prévias para que se defenda seu direito à vida. No Brasil,
nem a Justiça pode decretar pena de morte. Menos ainda uma operação policial,
embora essa prática nefasta seja banal no mundo que existe fora da lei. Mundos
paralelos, os dos justiceiros e o da lei, não se pode ignorar nem um nem outro,
o primeiro, porque precisa ser identificado, para que possa virar passado, o
segundo, porque precisa ser valorizado, como a única possibilidade de um futuro
mais civilizado para o nosso país.
Voltando
a Jacarezinho, se parte, ou mesmo a maioria das vítimas, cometera algum crime
antes, essa mesma palavra é que exprime o que a polícia civil do Rio cometeu.
Execução e massacre são crimes, em qualquer hipótese. E o são mais ainda no
contexto de uma operação subversiva, como foi aquela, feita em flagrante
desobediência a uma proibição do STF. O tom desafiador da operação, salientado
por uma entrevista coletiva insolente de um delegado, é fato singular. Como tal
precisa ser encarado, não como se fosse apenas “mais do mesmo”, parte da violência
corriqueira de prepostos do Estado que, em nome do combate a criminosos, promovem
terror contra cidadãos indefesos. Não é corriqueiro um funcionário público
policial usar posição de comando numa operação letal para desafiar dessa forma
um poder da República. Muito grave, tanto o que ele disse, como a situação que
permitiu que dissesse.
É
inaceitável, do ponto de vista social, que quem, diariamente, em ônibus ou em
trens de metrôs, se expõe à pandemia para ganhar a vida corra o risco de perdê-la
por comportamento miliciano de uma corporação de Estado que tem como missão garantir
o oposto. E inaceitável, também, do ponto de vista institucional, que o desafio
verbalizado por esse delegado passe batido. Se instâncias administrativas da
cúpula da segurança o acobertam, cabe ao ministério público e à sociedade civil
provocar instâncias judiciárias e, a essas, agir com presteza, de modo especial
o STF que, a rigor, tendo sido flagrantemente desafiado, nem precisa ser mais
provocado. Precisa ser apoiado, sem
ressalvas, no seu esperado agir.
Inaceitável, por fim, do ponto de vista político, que autoridades eleitas não tomem providências que enquadrem as cúpulas policiais na linha da segurança pública, para que a população não se veja abandonada. E que, ao contrário, o governador do estado onde ocorreu o massacre adote, como adotou, o discurso policial, sendo nisso abertamente avalizado pelo vice-presidente da República. Aliás, o abandono, pelo General Mourão, ao falar dessa ação policial, da pele de cordeiro e das meias palavras que costuma usar sobre todos os demais assuntos, é politicamente pedagógico. Mostra o quão ilusório é o impeachment como solução estabilizadora, nas circunstâncias dramáticas do Brasil atual.
Fecho
parênteses para retomar o fio do argumento sobre o modo com que a política
lidou, até aqui, com esse fato indicador de uma escalada subversiva gradual e
não de um mero episódio isolado, muito menos de um “equívoco” da inteligência
policial. Em contraste com a omissão, ou responsabilidade ativa do governador na
operação policial subversiva, registra-se movimentos da oposição fluminense no
sentido de fazer desse assunto de alto interesse público um ponto prioritário
da sua agenda, bom passo para uma mobilização conjunta de instituições e
movimentos e possível cimento também de uma ampla frente democrática naquele
Estado. Isso reverte, inclusive, a impressão de pusilanimidade, dada por uma
declaração do prefeito da capital do Rio, parecendo se colocar num ponto equidistante
entre a ação de supostos “malucos” e um também suposto (pelo delegado
insolente) “liberou geral” do STF.
Universos
paralelos: uma leitura política de Jacarezinho, para além do Rio
Todos
os aspectos que abordei até aqui contribuem para qualificar como política a
violência inaudita da operação policial que banhou Jacarezinho de sangue. Mais
relevante que todos eles, é, no entanto, aquele fator que leva o fio do
argumento a transcender a dramática situação do Rio de Janeiro e se concentrar
num perigoso paralelismo que ameaça acometer a política brasileira. A coalizão de
forças reacionárias que chegou ao governo com Bolsonaro perde amplitude e força
na política institucional enquanto o presidente se ampara nas suas facções mais
extremadas para deslocar às ruas o confronto que provocou (e perde) no âmbito
do sistema político e no seu relacionamento com o Judiciário. Fracasso
cumulativo, que não cessa de provocar fissuras no arranjo político-miliciano,
bem como em suas conexões com o mundo da economia e com interesses de grupos
sociais abençoadores da coalizão. É dos efeitos desse evidente fracasso que ele
tenta, obstinadamente, blindar – até aqui com sucesso - a sua popularidade. Para
segurar esses dedos, abandona, um a um, os anéis do governo e aposta no quanto
pior, melhor. Incapaz de vencer na política, quer vencer a política insuflando
o povo contra ela. Dispensa mediações, cria uma arena paralela e direta de
operação política e a elege como seu universo.
É
a partir desse universo que Bolsonaro tenta desviar a pauta nacional ou, não podendo
fazer isso, deslegitimar, perante o eleitorado, as instituições políticas e
judiciais (no limite as próprias eleições), os partidos e a sociedade civil que,
gradativamente, se articulam para lhe impor uma pauta indigesta, qual seja a da
responsabilização de seu não-governo pela crise e a de governar o país para
tirá-lo dela. A crise que, há um ano, era adivinhada por ele como temida
adversária, a ponto de lhe incutir paranoia, hoje é realidade que precisa se converter
em caos para que o presidente sobreviva politicamente.
São
dois universos paralelos. Num, a política democrática avança, escancara a
natureza do retrocesso político, administrativo, cultural e moral em que o país
mergulhou. Exorciza perigos, isola o extremismo, produz alguma política pública
para situações emergenciais, busca saídas e fabrica alternativas, inclusive
eleitorais, colocando obstáculos a que a aventura bolsonarista se renove pelas
urnas. Noutro universo, a estratégia desestabilizadora do presidente volta a se
radicalizar, em comícios e em suas lives. Repõe ameaças ao STF, aos
governadores, às eleições; menciona, possessivamente, as três armas como cúmplices
de suas ambições autocráticas e faz novas sabotagens à vacinação. A sensação de
perigo retorna porque a desenvoltura do ator sugere que as amarras
institucionais que aqui e ali bloqueiam seu ímpeto destrutivo estão mais
frouxas do que há semanas atrás.
Tanto
quanto os da polícia legal e da polícia fora da lei, esses dois universos políticos
são reais. A crise sanitária, social e econômica é o pano de fundo que sustenta
esse paralelismo. Nenhuma avaliação ponderada considerará inexorável o
derretimento político do presidente hostil, nem superestimará sua capacidade de
revogar aquele universo político que visivelmente acumula forças para
derrotá-lo. Da mesma forma que não se pode – confiando no que vem ocorrendo no
universo da política sistêmica – considerar seu universo paralelo como delírio
e deixá-lo solto como se fosse cachorro quase morto que sangrará até a eleição,
pelas garras duvidosas da CPI, também não se pode ir atrás do canto de sereia
de sua estratégia, cedendo ao combate aberto nas ruas, como opção ao institucional,
no qual ele patina.
Sinalizações
subversivas do universo bolsonarista
De
fato, não é puro delírio, nem se explica como desespero, o que Bolsonaro tem
dito nas lives e em palanques armados país afora. Em primeiro lugar, o discurso
não apenas tem repetido os mantras de sempre, mas os tem requalificado também,
com boas doses de racionalidade. O discurso do comício de Rondônia,
especialmente, mostra uma inflexão importante. Ali não estava mais o autocrata
vítima de uma conspiração do sistema e limitado, por uma Constituição hostil à
sua vontade, no cumprimento de promessas que fez ao seu povo. Agora ele não se
limita a reclamar e a ameaçar reagir contra o Judiciário que estaria lhe empurrando
a Carta pela goela. Declara-se agora dono efetivo da prerrogativa - que, no
universo republicano, é conferida ao STF - de defensor e intérprete positivo da
Carta, plenipotenciário senhor do destino do isolamento social, das
prerrogativas de cada instituição e do próprio processo eleitoral, aí querendo
ocupar também o lugar do TSE. Em segundo lugar, tem dado passos concretos para
obter, dos indivíduos despoticamente livres do “seu povo”, o “eu autorizo” para
implementar sua pauta. Não é sensato ignorar que levou muita gente à rua no
domingo passado, além de estar armando milícias. Quem deu atenção ao clima do
discurso da deputada Carla Zambelli, naquele insólito primeiro de maio, não viu
desespero, mas celebração confiante de uma aparente decisão bolsonarista de
avançar e tomar posse da Constituição como se fosse coisa sua. Como no dizer do
professor Miguel Pereira, “não se trata mais de destruí-la, mas sim de preenchê-la
com novo conteúdo, mantendo a forma”.
É
na moldura desse universo político paralelo, que busca antagonizar o das
instituições do Estado e movimentos da sociedade civil, que Jacarezinho adquire
conteúdo político e dimensão nacional. A provocação policial ao STF, presente na
acintosa coletiva após a chacina, consiste em insinuar que todos os gênios
sairão das garrafas, inclusive algum que possa dirigir ao seu alvo o jipe do
zero três. Assinalando essa relação, não
me vem à mente a ideia de que corramos, nessa conjuntura complicada, risco de
golpe, ditadura ou algo assim. Vontade
não falta ao presidente paralelo, o que lhe falta é como fazer da bravata
realidade. Mas sua aposta perene em que anomia fabrique caos social não pode
sair do radar democrático. A expansão da
energia destrutiva pode abrir caminho a um imponderável e não são poucas as
analogias que se lê com o que se tornaram Colômbia e México a partir de conjunturas
críticas. E uma vez admitida a possibilidade de incremento da violência
política, daqui a 2022, é forçoso não afastar, no rastro da fala de Mourão, uma
“solução” que iniba e mutile a democracia de modo mais sério.
O
universo paralelo que Bolsonaro agita contra o “sistema” assusta, impacienta
e/ou planta ceticismo em muitas consciências “centristas”, ou de
centro-esquerda, que não se identificam com o PT. Exigir uma Justiça ainda mais
ativa, ao mesmo tempo contra Bolsonaro e contra as “incoerências” e o “toma lá,
dá cá” dos políticos é aí uma pregação frequente que, por vezes, adquire um tom
apostolar e desatento à imprescindibilidade democrática do mundo real da
política. Por outro lado, a mesma agitação bolsonarista apressa certo pensamento
assumidamente voluntarista, situado “à esquerda” da oposição de esquerda, a
deduzir daí a ineficácia da Justiça e a complacência do sistema político, denunciando
a inadequação de nossas instituições republicanas e liberal-democráticas para a
necessária defesa contra o perigo. Enfrentar o fascismo com “luta popular” nas
ruas e superar os “limites” do universalismo da democracia representativa são
duas diferentes facetas de uma mesma ideia iliberal de fundação de uma
república para os “de baixo”, através de uma democracia com maior
“intensidade”.
Duas
conclusões fatalistas resultam dessas variadas percepções que tendem a
construir seus próprios universos paralelos. Elas não são eleitoralmente
significativas, mas têm influência cultural e intelectual inibidora de
convergências democráticas na política institucional. As de “centro
radicalizado” percebem a polarização entre Bolsonaro e Lula como inevitável, tendendo
a antecipar um alinhamento por gravidade, para evitar o pior. As da “esquerda
crítica” são céticas, quase distópicas, face a qualquer política de frente. Apelam
a um discurso de oposição com teor antissistêmico simetricamente oposto ao do bolsonarismo,
no qual eleição é instrumento de arregimentação ideológica e não de solução
política.
Sinalizações
democráticas do universo da política e da sociedade civil
O
argumento final aqui - reiterando um ponto que marca esta coluna desde a sua
inauguração - vai na direção oposta, de salientar a realidade e vitalidade
simultâneas do universo da “política dos políticos” e da rede de movimentos e
outras organizações da sociedade civil. Quando nesse universo predominam
consensos amplos ou conflitos civilizados, a qualidade da democracia e das
relações sociais tende a melhorar, dando-se o oposto quando esse universo trava
por polarizações extremas e, por isso, estéreis. A observação continuada do
processo político no interior desse universo revela um processo lento, marcado
por avanços e recuos, mas ainda assim contínuo, na direção da passagem de uma
situação de polarização disfuncional (entre 2013 e 2018) para uma de agregações
parciais, transição benigna ligada à experiência traumática de defrontamento comum com
o pathos destrutivo do bolsonarismo, variável em grau de intensidade, mas
compartilhada com todas as instituições e todos os atores (mesmo aqueles que a
ele se aliaram), desse universo sistêmico animado pela representação política.
No
interior desse universo duas agregações estão em marcha, conforme comentei,
nesta mesma coluna, três sábados atrás (“Pautas das oposições”, em 17.04.21).
Uma delas em torno do nome do ex-presidente Lula, outra, ainda sem nome, por
tentativas de aproximação de partidos e personalidades que, no ponto de
partida, situam-se entre os campos de atração de Lula e de Bolsonaro. Coloco
aqui uma objeção a análises que se suponham cientes, ou videntes, quanto aos respectivos
pontos de chegada desses dois subcampos. São ainda ignorados, tanto os limites
de agregação de cada um, quanto as entonações políticas que assumirão, por
conta dessas mesmas agregações e de tendências que serão, a seu tempo, detectáveis
no eleitorado (e que reverberam também a partir do que se dê no universo
paralelo, assim como podem afetá-lo). As projeções possíveis de cenários
precisam ser recebidas com a imprescindível cautela de quem está ciente do
material perecível de que se compõem. Isso inclui as que farei, no próximo
sábado, sobre o campo de agregação alternativo ao de Lula, já que a esse último
dediquei outra recente coluna (“Lula não é para amadores”, em 24.04.21). Antecipo
que, na mão oposta à de previsões fatalistas, vejo se dar, no universo da
política sistêmica, uma aceleração de movimentos de convergência para oferecer,
às forças que se despregam, ou podem se despregar, do combo bolsonarista, uma
alternativa eleitoral que não as afaste do eleitorado afim ao seu
posicionamento político, o qual, na falta de termo mais preciso, chamarei, por
ora, de liberal, ou de centro-direita.
A
possibilidade dessa lógica de agregação do campo democrático afetar e
desconstruir o universo paralelo que Bolsonaro construiu para movimentar suas
hostes não depende de uma convocação afoita de uma militância oposta para
guerrear com ele e suas falanges nas ruas infestadas de coronavírus. Dependem
mais da capacidade e do compromisso da política das instituições e partidos, em
especial de governadores e prefeitos, tomar a si a responsabilidade por
milhares de jacarezinhos que têm seus gritos abafados pelo terror das milícias
do Rio e de suas congêneres espalhadas pelo Brasil. Essa empreitada não terá
nada de passeio. Embora não se saiba ao certo (ao menos em público) até que
ponto essa reprodução de células malignas já avançou sobre a área de segurança
pública da União e dos Estados, é certo que não se pode mais adiar um freio de
arrumação “nisso aí”, seguido de um programa de reconstrução institucional e de
regeneração moral que sinalize aos cidadãos que eles não estão sós.
O desafio de fazer isso contando com o boicote e
a sabotagem do governo federal e com a violência retaliativa que emergirá dos
porões com a complacência, estímulo e apoio de representantes organizados em
bancada no interior das instituições legislativas propicia compreensíveis
raciocínios céticos. Mas não há outra atitude a cobrar da representação
política, ainda que ao custo de conflitos que compliquem os movimentos de
agregação acima mencionados. Além de cerrar fileiras em apoio ao STF, ela
precisa assumir, como sua missão, fazer da sorte dos jacarezinhos uma causa
nacional. Assim como os poderes da República buscam, com a luta pela vacina,
fazer, apesar do presidente, os brasileiros todos virarem jacarés, é preciso
buscar que os jacarés defendam os direitos violados dos jacarezinhos. Essa é
uma construção cultural inadiável e de importância política decisiva, a ser
feita no campo específico do Estado e no campo aberto da sociedade civil. Sem
querer calar céticos e ouvindo as notícias verazes que trarão, dirijo-lhes o
argumento final. Além desse dever de dirigentes do Estado não ser um passeio,
ele nada terá de altruísmo. Deter a escalada de terror miliciano é condição
para haver, em 2022, eleições capazes de lhes conferir mandatos. Nessa medida é
um desafio que fala também ao seu interesse vital.
*Cientista político e professor da UFBa.
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