Folha de S. Paulo
Sem clareza quanto ao destino dos recursos,
é difícil imaginar futuro melhor
Em aula magna proferida em janeiro no
encontro anual da Associação Americana de Economia (e publicado em periódico),
o professor Emanuel Saez (UC Berkeley) apresentou graficamente a evolução a
partir de 1870 da carga tributária para alguns países da Europa e para os
Estados Unidos. Apresentou também, para um agrupamento de países da Europa, uma
decomposição do gasto público por categoria, ambos como porcentagem do PIB e
extraídos do livro “Ideologia e Capital”, de
Thomas Piketty.
Os dados apresentados consolidam os gastos
do Estado como um todo, ou seja, incluem os três Poderes e os governos central,
estaduais e municipais. Na Europa, até o início do século 20 as receitas
tributárias não chegavam a 10% do PIB e bancavam o que ele denomina de Estado
“real” —no sentido de realeza ou soberano.
Os gastos desse Estado “mínimo” incluíam itens administrativos, lei e ordem, defesa e infraestrutura. Não cobriam gastos sociais, sendo, portanto, um Estado pequeno.
No início do século 20 os gastos públicos
começaram a crescer e com eles a carga tributária. Foi o nascimento do Estado
social, ou do bem-estar social. Por volta de 1970 o gasto público médio na
Europa subira para algo em torno de 45% do PIB, sendo de 40% no Reino Unido e
mais do que 50% na Suécia e na França. Interessante notar que nos Estados
Unidos esse número ficou em torno de 30%. Desde então essas porcentagens pouco
mudaram.
Nas palavras de Saez: “O crescimento do
governo no século 20 é quase que totalmente explicado pelo crescimento do
Estado social, que provê educação, apoio ao cuidado com as crianças, saúde para
os doentes, aposentadoria para os velhos e rendas para deficientes,
desempregados e pobres”.
Entre suas origens incluem-se voto e voz
para mais e mais gente, a percepção da seguridade social como instrumento
eficiente de compartilhamento de riscos e um desejo de maior mobilidade social,
todos tendo o “véu da ignorância” de
Rawls como princípio de convivência e organização social (pense na
pergunta: como você desenharia as regras de distribuição do Estado social se
não soubesse em que família nasceria?).
A dispersão no tamanho do Estado entre os
países avançados é bastante relevante e espelha diferenças culturais e
históricas. Por exemplo, os Estados Unidos desde sempre exibiram um certo grau
de desconfiança com relação ao Estado. Não surpreende, portanto, que sejam hoje
o único país avançado que não oferece cobertura universal de saúde (falta
incluir uns 10% da população).
Economistas e outros cientistas sociais se
dividem quanto às origens e consequências do Estado social para o nível de
renda de cada país. Saez argumenta de forma convincente que os europeus optaram
por trabalhar menos.
Outros estudos mostram que a produtividade
por hora trabalhada na Europa é semelhante à americana. De um jeito ou de
outro, todos atingiram padrões de vida elevados, o que sugere que em cada caso
o sistema político produziu um Estado eficaz e, para padrões históricos,
grande.
Como se encaixa o Brasil nesse contexto? Na
Constituição de 1988 foi feita uma clara opção pelo Estado social. Avanços
importantes ocorreram desde então.
O
gasto público cresceu bastante e está em torno de 35% do PIB, um nível
elevado para um país de renda média. No entanto, há cerca de 40 anos nossa
renda per capita parou de se aproximar daquela dos países mais avançados, e a
desigualdade segue muito elevada e bem maior do que a deles. Há muito a fazer,
mas o debate público atual não dá margem a esperança.
Tenho defendido aqui que o Estado
brasileiro tem muito espaço para aumentar a sua produtividade. Indício disso é
que quase 80% do gasto público vai para a folha de pagamento e para a
Previdência, porcentagem bem superior à de países comparáveis ao Brasil.
Nosso Estado é de tamanho médio para
grande, mas não parece ser mínimo no sentido estrito da palavra, por não ser o
menor possível para cumprir seu papel. Uma boa reforma do RH do Estado é
urgente e imprescindível, mas pelo visto vai ficar para mais adiante.
Há espaço adicional para economias no sistema
previdenciário assim como através da eliminação dos relevantes
aspectos regressivos da tributação.
Uma vez obtidas as economias, seria
desejável e possível redefinir prioridades para o gasto público. Para tanto,
não bastaria levar em conta apenas as verbas alocadas nos ministérios —seria
necessário considerar também os gastos
das demais unidades da federação.
Saez apresenta uma decomposição do gasto do
Estado consolidado europeu em grandes categorias. Faz falta algo assim para o
Brasil. O mais próximo que encontrei (graças a Pedro Herculano de Souza, a quem
sou grato) foi o valioso Balanço do Setor Público Nacional (Secretaria do
Tesouro Nacional, ano base 2019), que tem limitações, mas dá uma ideia das
magnitudes.
Com base nos dados lá obtidos (p. 22),
recriei para o Brasil as principais categorias, que listo a seguir, com o valor
de seus respectivos gastos, em pontos de porcentagem do PIB.
Gasto total 35, Estado mínimo 9, Educação
5, Saúde 5, Previdência 13, Gastos e transferências sociais 3. Uma decomposição
como essa, um pouco mais detalhada, deveria informar o desenho de uma
estratégia de desenvolvimento digna do nome.
Além da definição de prioridades para o
gasto, o exercício esbarra em questões ligadas à arquitetura da federação e ao
tamanho do Estado. Muito assunto para um artigo curto, mas fica o registro.
Sem clareza quanto ao destino dos recursos
públicos, que explicite as escolhas que necessariamente têm de ser feitas, é
difícil imaginar um futuro melhor para o país.
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