O Estado de S. Paulo
Saúde é só uma das áreas devastadas pela irresponsabilidade e pela incompetência
A nova façanha do presidente Jair Bolsonaro pode valer um bolo de dez velinhas, uma para cada ponto da inflação. Os bens e serviços consumidos pelas famílias, ou consumidos quando cabem no orçamento apertado, subiram 10,05% em 12 meses, segundo o IPCA-15 de setembro. Mais uma vez o mundo se curva diante deste país. Pressões inflacionárias têm afetado a produção e o consumo em dezenas de países, mas com efeitos menos vistosos. Só dois países do Grupo dos 20, Argentina e Turquia, devem fechar 2021 com inflação maior que a brasileira, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Brasil estará no pódio, com a medalha de bronze do desarranjo monetário. Prévia da inflação é o nome popular do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – 15, apurado entre a metade de um mês e a metade do seguinte.
Com a inflação batendo em 10%, o presidente
Jair Bolsonaro está quase empatado com a petista Dilma Rousseff, ao menos nesse
quesito, mas nem seria preciso tanto esforço. Segundo juristas consultados pela
CPI da Covid, ele já fez muito mais que a antecessora para merecer um processo
de impeachment. Coordenada pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior, a
comissão apontou “fartos elementos probatórios” de crime de responsabilidade,
crimes contra a saúde pública, crimes contra a administração e crimes contra a
humanidade. Entre os atentados à saúde pública figuram, além de outros, a
prática de charlatanismo e a infração de medida sanitária preventiva. O
relatório também menciona indícios de corrupção passiva.
O reiterado e significativo silêncio dos
depoentes, vários deles suspeitos de participar de casos de corrupção, tem
marcado o exame desse tema pela CPI. Esses depoentes têm sido autorizados pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) a ficar em silêncio quando a resposta puder ser
autoincriminatória. Parece razoável, portanto, entender como incriminadora a
decisão de fugir da resposta. Um dos depoentes negou-se até a indicar as
atividades da própria empresa, embora se trate de companhia regularmente
registrada.
A CPI continua apurando e expondo uma enorme sucessão de desmandos, mas os fatos analisados pela comissão de juristas já bastariam, segundo seu parecer, para fundamentar um processo de cassação e “diversas ações penais”. Tudo isso seria suficiente para garantir ao presidente Jair Bolsonaro, ou ao seu clã, um lugar especial na história política brasileira. Mas os dados da CPI, juntamente com o “material probatório” citado pela comissão, compõem apenas um retrato parcial do presidente e de seus feitos na chefia do Executivo.
Cada pormenor adicionado ao retrato, como o
desastre inflacionário, o torna mais feio. É preciso olhar essa imagem mais ampla
para ter uma visão mais precisa da catástrofe ocorrida no País a partir de
2019.
As barbaridades praticadas no enfrentamento
da covid19 têm a mesma natureza de outros erros e desmandos cometidos no
exercício da Presidência. A parte mais impressionante, naturalmente, é o
conjunto de ações e omissões diante da pandemia. Milhares de mortes teriam sido
certamente evitadas, se o presidente, levando a sério a covid, tivesse
estimulado cuidados sanitários e negociado a compra de vacinas desde as
primeiras ofertas. Quem se esqueceu do episódio de Manaus, com pacientes
morrendo sem oxigênio enquanto o Ministério da Saúde propagandeava terapias
inúteis?
Mas a saúde é só uma das áreas em que o
Executivo esbanjou incompetência e irresponsabilidade. A economia é outro setor
marcado pelo fracasso. O Brasil entrou e saiu de 2020 com desemprego muito
superior à média dos demais emergentes e dos países avançados. No segundo
trimestre deste ano os desempregados eram 14,1% da força de trabalho, mais que
o dobro da média da OCDE, cerca de 6,5%. Sem ocupação, sem renda regular e sem
ajuda emergencial no primeiro trimestre, milhões afundaram na miséria e
dependeram de campanhas de apoio para comer. A ajuda foi retomada em abril, mas
de forma limitada e insuficiente.
Às péssimas condições do mercado de
trabalho somouse a inflação crescente, alimentada no início pelas cotações
internacionais de matérias-primas, agravada depois pelos danos causados pela
seca e turbinada, sempre, pela instabilidade cambial. O dólar supervalorizado, fonte
constante de pressão sobre os preços internos, é efeito da insegurança causada
pelos desmandos do presidente – ataques a outros Poderes, falas golpistas,
distribuição de benesses a seus apoiadores e exigência de aumento de gastos
eleitoreiros.
O resumo desta história envolve novamente o
Ministério da Saúde. Reagindo com um gesto obsceno a um grupo de manifestantes
em Nova York, o ministro Marcelo Queiroga dirigiu-se de fato, em nome do
Executivo, a todos os brasileiros. Com sua mão, ofereceu a interpretação
bolsonariana das frases latinas in medio virtus e in medio veritas, como se a
velha sabedoria se referisse ao dedo médio. É uma questão de nível. Que mais se
poderia esperar de um obediente servidor de Bolsonaro?
*Jornalista
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