Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O acordão de Bolsonaro com o sistema
político só nos distancia de um futuro melhor para além de 2022
Três desfechos foram previstos para as
manifestações do dia 7 de Setembro: golpe, impeachment ou acordão de Bolsonaro
com o sistema político. Os dois primeiros não têm chances de ocorrer no curto
prazo. O terceiro tipo de desenlace já havia ocorrido em 18 de junho de 2020,
quando Fabrício Queiroz, acusado de corrupção e envolvido com a família
presidencial, fora preso. Naquele momento, o bolsonarismo iniciou seu namoro
com o Centrão, salvando a pele do presidente da República. Muitos acreditam que
essa saída prevalecerá e que nos levará a um porto seguro. Sinto informar que
há muitas incertezas pela frente, pelo menos até o dia da eleição presidencial
em 2022. Esse período promete ser o principal teste para a democracia
brasileira desde o fim do regime militar.
As incertezas começam pelo fato de que o
golpe e o impeachment não podem ser completamente descartados. O espírito
autoritário do presidente e do seu grupo mais fiel apareceu claramente nas
manifestações do Sete de Setembro. Bolsonaro xingou - o verbo é este mesmo -
dois ministros do STF, chamando um deles de canalha. Mais: o presidente ameaçou
não cumprir ordens judiciais que não o agradem - ou que ultrapassem as quatro
linhas da Constituição que ele inventou para si mesmo. Isso é um golpe contra a
democracia. Mas o bolsonarismo não tem no momento capacidade de quebrar a ordem
democrática sem ir junto para o ralo.
Embora exista uma pequena probabilidade de quebra democrática no futuro próximo, até porque a loucura do bolsonarismo não tem paralelo com outros movimentos golpistas da história do país, as maiores chances são de deterioração gradativa da estrutura institucional e de padrões de políticas públicas construídos nos últimos 30 anos, tal como tem ocorrido desde o início do mandato. Claro que alguém poderá gritar, a cada crise, que fomos salvos pelas instituições. Mas o ambiente democrático não é saudável quando impera a chantagem institucional, como nos casos do presidente da Câmara ou do procurador-geral da República, que negam os fatos em nome da pura manutenção do poder.
Outro desenlace imaginado foi o do
impeachment, algo que também ainda tem chances de ocorrer, principalmente por
duas razões: porque não é impossível encontrar novos escândalos envolvendo o
bolsonarismo e, sobretudo, em razão de o presidente poder escorregar em novos
atos autoritários, geralmente como reação à possibilidade de punição de sua
família e correligionários mais fiéis. A gravidade dos fatos pode empurrar para
esse desfecho. Porém, se isso não gerar uma grande mobilização da sociedade e
uma redução da popularidade presidencial para abaixo dos 20%, dificilmente o
Congresso atuará neste sentido.
Fatos mais graves envolvendo Bolsonaro têm
grandes chances de ocorrer até a eleição, só que há menores possibilidades de
os vários grupos antibolsonaristas se unirem. Não é impossível, mas é um
arranjo complicado por duas razões. A primeira é que as feridas do impeachment
de Dilma não curaram e os atores que lideram os dois lados dessa questão têm
sido incapazes de olhar para frente e definir a manutenção da democracia como
algo que precede a disputa eleitoral. O cenário político terá que piorar muito
para que eles se transformem num bloco ao estilo Diretas-Já.
O que atrapalha mais uma articulação
pró-impeachment é que o Centrão não se vê, por ora, pressionado a abandonar sua
estratégia de sugar ao máximo todos os recursos financeiros e de poder obtidos
junto ao presidente Bolsonaro. O Orçamento de 2022, a joia da Coroa, só será
aprovado no apagar das luzes de 2021 e aí faltará muito pouco tempo para se
instalar um processo de impedimento presidencial. Claro, tal como na
possibilidade de união de todos os grupos antibolsonaristas, há chances de
acontecimentos muito graves gerarem um “bang bang” político a partir do qual
nem o Centrão seria capaz de resistir ao impeachment.
Por enquanto, todavia, o desfecho mais
provável é o acordão com o sistema político (e econômico, em menor grau). Só
que desta vez Bolsonaro teve de mudar muito mais drasticamente o seu discurso
do que no episódio envolvendo a prisão de Fabrício Queiroz. O presidente não só
pediu desculpas e alegou ter se excedido. Ele publicou uma carta de escusas que
foi escrita por um ex-presidente, o que enfraqueceu sua condição de liderança
política da nação. De todo modo, essa foi a única maneira possível para que o
poder presidencial não entrasse num processo de entropia que, mantido por
algumas semanas, geraria a abertura do processo de impeachment.
O novo acordão escrito por Temer enfraquece
a liderança real e simbólica do presidente, mas não lhe tira a capacidade de
voltar a criar problemas com o sistema político e de impulsionar a crise
econômica e social que assola o país. Um cenário turbulento ocorrerá, em maior
ou menor grau, até a eleição. Haverá três travessias que o país terá de fazer,
superando os obstáculos que o presidente Bolsonaro colocará no meio do caminho.
A primeira travessia diz respeito à forma
como Bolsonaro reagirá às decisões negativas dos outros Poderes que
provavelmente acontecerão nos próximos meses. A lista é grande e podem ser
citados aqui os casos mais ruidosos. O relatório da CPI da Covid-19 será muito
negativo ao governo, incriminando vários de seus membros, incluindo o próprio presidente
da República. Neste episódio, a marca da corrupção afetou fortemente a imagem
governamental. O inquérito relativo aos ataques ao Supremo deverá,
provavelmente, levar alguns bolsonaristas à prisão. Os escândalos de rachadinha
envolvendo os filhos 01 e 02 vão permanecer nos noticiários por muito tempo,
havendo sempre a possibilidade de alguma decisão judicial contrária a eles. O
STF deve derrubar, até o fim de 2021, o decreto sobre as armas, o marco
temporal para a demarcação de terras indígenas e até mesmo o modelo de
Orçamento secreto. Por fim, as chances de aprovação da PEC dos Precatórios no
Senado, no formato proposto pelo ministro Paulo Guedes, são pequenas.
O que fará Bolsonaro diante de tantas
decisões negativas contra o bolsonarismo e seu governo? Chamará uma nova
manifestação golpista para o Dia da Bandeira (19 de novembro)? Aumentará o
ataque virtual contra seus inimigos e incitará seus líderes nas redes sociais a
realizar desobediência civil frente a decisões judiciais? Ou então chamará Temer
para escrever uma nova carta? Mais importante: se a temperatura política
aumentar muito, com o risco maior de descumprimento de medidas legais, o que
farão os outros Poderes? Serão feitos apenas pronunciamentos dando puxões de
orelha no presidente da República? Qual é o limite deste tipo de ação
institucional? Alguma forma de violência mais explicita?
A segunda travessia pela qual o país terá
de passar relaciona-se à crise econômica e social que por ora parece ser o
caminho mais provável até a eleição. A crise hídrica e, consequentemente, do
setor elétrico, tende a ser muito forte. Os juros vão ter de aumentar para
combater a inflação. Isso reduzirá o crescimento econômico de 2022. A situação
social, mesmo com algum tipo de Bolsa Família vitaminado, ainda será marcada
por grande miséria e desemprego muito alto. A desorganização das principais
políticas públicas, culpa principalmente do atual governo federal, vai piorar o
humor da população.
Frente a tantas notícias ruins, Bolsonaro
tomará decisões eleitoreiras ou vai pensar nas questões estruturais do país? O
presidente quebrará sorrateiramente as regras fiscais, jogando o problema para
frente, guiando-se pelo lema quercista de “quebrar o Estado, mas ganhar a
eleição”? A tendência é que haja uma queda de braço entre setores políticos,
econômicos e sociais com o bolsonarismo, que tentará manter-se no poder a todo
custo. Nesta disputa, dificilmente o país sairá vencedor.
A travessia mais difícil será a do período
eleitoral. Mesmo com a carta de Temer, Bolsonaro não parou de criticar o TSE.
Esse tom vai ficar mais forte nos meses próximos da eleição. E se estiver
perdendo a disputa presidencial, o bolsonarismo tende a realizar atos de
violência, algo que a democracia brasileira ainda não enfrentou. Manter o acordão
acreditando que essa paz seja duradoura é pura ilusão.
Para além das três travessias, é
fundamental lembrar que o vencedor da eleição presidencial lidará com um país
em frangalhos. O desastre na educação e na ciência e tecnologia terá efeitos
negativos por muitos anos, pois perdemos capital humano e talentos que seriam
fundamentais para ter um Brasil melhor e mais justo. O aumento da desigualdade
não será estancado rapidamente e um boom de crescimento econômico não está no
horizonte. O maior ativo brasileiro de longo prazo, que é a questão ambiental,
teve sua política pública destruída pelo bolsonarismo. Parcela da sociedade e
das lideranças políticas, sob o comando de Bolsonaro, têm incentivado
comportamentos antidemocráticos que podem fincar raízes mais duradouras.
O enfrentamento destes graves problemas,
para não citar as sequelas sociais da pandemia, vai exigir um governante cuja
meta principal será a reconstrução nacional. Um presidente capaz de dialogar
com todos e pensar no longo prazo. Neste sentido, o acordão só nos distancia de
um futuro melhor para além de 2022.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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