Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Os que têm mais clareza intuem que, virada
do avesso, a economia brasileira já não é propriamente capitalista, e o
dinheiro se tornou apenas fetiche
Todos nós julgamos compartilhar a mesma
concepção de dinheiro. A mesma dos economistas, dos governantes, dos
banqueiros, do pipoqueiro da praça, de quem recebe esmola e de quem recebe
salário.
Num país como este, a coisa é bem mais
complicada. Discurso para explicar ao povo o sobe e desce da economia, que mais
desce do que sobe, chega-lhe reinterpretado pela diversidade de concepções
desencontradas do que o dinheiro é. Quem não fala a língua dos mistérios do
dinheiro não legitima orientações da economia.
Há muitos anos, fiz ampla pesquisa sobre a expansão da nossa fronteira econômica, na região amazônica, que em pouquíssimo tempo foi invadida por uma nova mentalidade, associada ao dinheiro. O dinheiro e seus mistérios.
Como a desvalorização dos seres humanos,
não mais vistos na perspectiva de valores como a honra, a palavra, a lealdade,
a amizade, a honestidade, o caráter, a dedicação ao trabalho, a solidariedade
comunitária. Tudo desmoronou. Ficou como referência o dinheiro, que quase
ninguém tinha, a expressão do poder da apocalíptica besta-fera, como me
explicou um caboclo do Norte do Mato Grosso.
Sábios do dinheiro intuem que essas
qualidades, que o vulgo define como diabólicas, estão na força que o dinheiro
tem para tomar conta de quem o possui.
Em 1922, o economista Dennis Robertson
(1890-1963) publicou “Money”, livro que seria traduzido para o português e
publicado no Brasil em 1960, pela Zahar, com o título de “A moeda”. Ele foi uma
das grandes mentes da Universidade de Cambridge, membro do Trinity College, da
linhagem dos economistas que naquela universidade preocupavam-se com as
consequências sociais irracionais da economia e do fetichismo do dinheiro.
Foi interlocutor de John Maynard Keynes
(1883-1946), que desenvolvera a teoria da renda e do emprego, cuja formulação
sintética atualizo: sem renda não há emprego, com renda sem emprego não há
consumo e sem consumo o capital se condena à morte. A economia fulgura, mas
agoniza.
Seus biógrafos destacam nessa sua obra o
uso de epígrafes extraídas de dois livros referenciais de Lewis Carroll
(1832-1898), “Alice no país das maravilhas” e “Alice do outro lado do espelho”.
Como o pai de Robertson, Carroll era um eclesiástico, professor de matemática
na Universidade de Oxford, membro no Christ College. Era excelente fotógrafo.
As inspiradoras epígrafes de Carroll na
obra de Robertson foram motivadas pelo nonsense que este último identificava no
dinheiro e a vida própria que adquiria em sua circulação, cumprindo nela a
função de avesso da economia.
O economista inspirava-se na lógica
constitutiva da sociedade imaginária que Lewis Carroll construíra. O dinheiro
como autor da realidade, e não como criatura e instrumento do que os seres
humanos acreditam estar fazendo. O dinheiro como dono de seu dono.
Como na conversa entre Alice e a Rainha, em
o “Outro lado do espelho”: “‘Bem, é que no nosso país’, disse Alice, ainda um
pouco ofegante, ‘o mais certo seria chegar a outro lugar - depois de correr
tanto como nós fizemos’. (...) ‘Um país muito lento!’, retorquiu a Rainha.
‘Não, aqui, como você vê, é preciso correr o mais que se pode para ficar no
mesmo lugar’.” E, em outro ponto, esclarece: “‘É a consequência de se viver
para trás’... ‘Ao princípio fica-se um pouco entontecido’.”
Agora mesmo, neste cenário de crise
econômica e política, os que têm mais clareza intuem que, virada do avesso, a
economia brasileira já não é uma economia propriamente capitalista. Corrompida
em suas estruturas básicas de reprodução e desenvolvimento, teve destruída as
bases de sua dinâmica. Libertou o avesso gerado dentro de si mesma.
Como adverte Carrol, “uma das coisas mais
graves que podem acontecer numa batalha é ficar sem cabeça”. Ao que parece, foi
o que aconteceu aqui. Carroll tem a solução: “Então, o melhor é tentar o
sentido oposto”.
Ainda nestes dias de outubro de 2021, o
papa Francisco, ao falar no IV Encontro dos Movimentos Populares, apontou o que
pode ser a poética criativa do sentido oposto. Ressaltou a necessidade urgente
de reformas econômicas e sociais profundas que restaurem a precedência do bem
comum na economia do mundo.
Desde a redução possível e viável da
jornada de trabalho, a criação de emprego e a correção consciente e responsável
das anomalias de comunicação que vitimam a própria condição humana, em
particular as novas gerações.
O cenário de avessos em que estamos vivendo
aqui no Brasil situa-se nessa ordem enlouquecida. O governo foi desempossado em
1º de janeiro de 2019 para que o Brasil fosse governado pelo fetiche de uma
coisa desencarnada e sem vida, que segue seu próprio rumo de coisa, na
esterilização da função social do dinheiro.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp).
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