Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A marca da “república do centrão
bolsonarista” que ficará para o futuro é a da falta de preocupação com o
destino coletivo de longo prazo da nação
Períodos históricos receberam nomes
diferentes no Brasil para realçar suas principais características. Assim, houve
a República Velha, fim de uma era atrasada, e a Nova República, esperança de um
novo tempo. Mais recentemente, o governo Itamar Franco foi chamado por alguns
como República do Pão de Queijo, o que ressaltava mais o regionalismo do que a
feição da liderança presidencial. Os anos FHC e o lulismo são termos mais
genéricos, e detratores sempre vão buscar nomes que lhes deem um sentido mais
negativo. Mas, e agora, como denominar o período Bolsonaro? Propõe-se aqui um
título que representa tanto o casamento de dois grupos como uma visão de mundo
em comum: a república do centrão bolsonarista.
O presidente Bolsonaro defende ideias de extrema-direita, relacionadas a um moralismo intolerante, ao negacionismo científico e à defesa de um capitalismo predatório, no qual vale mais a “liberdade dos mais fortes”, sejam os empreendedores sem peias como os garimpeiros ilegais, seja por meio da multiplicação das armas nas mãos da população. A essa ideologia somou-se originalmente uma forte visão antissistêmica contra tudo que pode representar o establishment, mas especialmente contra o sistema político. Embora o bolsonarismo ainda propague que é contra a velha política, o fato é que ele já entregou a maior parte da agenda e do cofre federal ao centrão, na nova versão comandada por Arthur Lira.
Desse modo, o governo Bolsonaro já não é
mais a sua versão inicial. Algumas figuras estratégicas abandonaram o barco ou
foram retiradas do esquema do poder. Ainda existem bolsões de
bolsonarismo-raiz, só que eles têm de conviver e, nas questões mais
estratégicas, se subordinar ao comando da Casa Civil, nas mãos de Ciro
Nogueira. Quem defendeu mais arduamente o voto bolsonarista em 2018 não
imaginaria essa cena.
É muito melhor para o país que um governo
minoritário no Congresso Nacional procure formar uma coalizão. Desde o início
da presidência Bolsonaro havia uma dificuldade para articular a agenda
congressual, por conta da postura isolacionista do Executivo federal. Vale
ressaltar que todos os governos, desde Sarney, precisaram de apoio de deputados
com base eleitoral e comportamento daquilo que intitulamos hoje de centrão. Os
que ignoraram esse tipo de parlamentar, como Collor nos seus dois primeiros
anos, ou brigaram com esse grupo, como Dilma em seu segundo mandato, tiveram
como cena final o impeachment.
Fica a pergunta: qual é a especificidade da
aliança de Bolsonaro com o centrão? O passado recente gera um contraponto importante
para entender o presente. Nos casos de FHC e Lula, eles construíram uma agenda
que era base para a conversa com o Congresso Nacional. Tais projetos eram
respaldados pelo voto, pelas interações constantes com parcelas da sociedade e
por um grupo de técnicos capazes de fazer o ideário transformar-se num desenho
de política pública. A partir desse primeiro passo, negociava-se com o centrão.
O protagonista era o Executivo e esse bloco centrista-fisiológico de
congressistas era secundário, embora fosse essencial para a aprovação de leis e
emendas constitucionais.
Muitos tucanos e petistas já disseram, em
tom de autocrítica, que não conseguiram modernizar por completo o país porque
aliaram-se estrategicamente ao atraso, mas não o venceram. Mais do que isso: não
transformaram o centrão e por vezes foram absorvidos pelas suas práticas
políticas, digamos, heterodoxas - que vão desde a corrupção até o adiamento ou
desvirtuamento de pautas fundamentais para modificar profundamente e para o
longo prazo o Brasil. De todo modo, mesmo que FHC e Lula nem sempre acertassem
nas propostas e evitassem algumas reformas fundamentais, ambos conseguiram
construir e comandar uma coalizão, com poucos episódios de perda do controle do
processo político, que não ficou sob a liderança do centrão.
A novidade trazida por Bolsonaro é a
centralidade do centrão no modus operandi do governo. Três fatos levaram o
presidente da República a adotar esse caminho de paulatino enfraquecimento do
Executivo. Tudo começou com a prisão de Fabrício Queiroz, em 18 de junho de
2020. O antigo assessor, que conhece por dentro todas as histórias de
“rachadinhas” e corrupção, tornara-se uma bomba ambulante em meio à pandemia e
a uma primeira perda de popularidade presidencial. Neste momento, Bolsonaro
iniciou o namoro com o centrão e trocou de bode expiatório: saiu a velha
política e entraram na lista o STF, os governadores e certas lideranças
políticas que se colocavam contra os interesses bolsonaristas.
Depois, veio a eleição da Câmara Federal no
início de 2021. Consagrou-se então a vitória de Arthur Lira, para quem fora
prometida ampla liberdade na agenda paroquial e, sobretudo, a chave do cofre,
com os recursos das emendas parlamentares, especialmente por meio do chamado
“orçamento secreto”. O golpe final na autonomia do Executivo federal se deu no
dia seguinte das manifestações bolsonaristas do dia 7 de Setembro. O fracasso
da estratégia golpista aumentou o poder do centrão, sob as lideranças de Lira e
Ciro Nogueira. A partir daí, tudo de importante que ocorre no governo e no
Congresso é definido não por Bolsonaro, mas pelo condomínio fisiológico que se
tornou hegemônico no comando do poder.
Essa inversão na lógica do presidencialismo
de coalizão só foi possível por quatro razões. Primeiro, porque Bolsonaro e seu
grupo evitaram buscar apoio originalmente, quando havia a lua de mel do voto, e
só foram bater às portas do Congresso com quando a crise chegou, primeiro com a
eclosão da pandemia de Covid-19 e, agora, com um cenário social e econômico
descontrolado. Essa demora em buscar uma maior interação com o Legislativo
aumentou o valor do passe e do poder repassado ao Centrão.
Um segundo ponto diferencia bem Bolsonaro
de FHC e Lula. O bolsonarismo tem ideias, mas não tem projetos e nem capacidade
política e técnica de transformar seu ideário em políticas públicas mais
sólidas, algo fundamental para negociar o apoio com os congressistas. Em poucas
palavras, os quadros bolsonaristas são inexperientes e, no geral, incompetentes
para o jogo político e para a resolução das diversas políticas públicas
presentes na Esplanada dos Ministérios.
É provável que o bolsonarismo seja incapaz
de ter um governo estruturado e orgânico por apostar mais na guerra cultural do
que em políticas públicas. De todo modo, a falta de um projeto lastreado em uma
visão técnico-política decantada pelo tempo (PT e PSDB testaram antes algumas
de suas ideias em governos subnacionais), com suporte de técnicos bem formados
e experientes, gera uma fragilidade na negociação com o Congresso.
Destaque-se um terceiro fator bem peculiar
ao momento atual: Bolsonaro entregou o comando da coalizão para o centrão
porque pretende salvar-se e à sua família dos diversos processos na Justiça que
se espalham contra eles. Nunca um governo ficou tão acuado como o atual em
relação à Justiça, nem no fim do período petista. Como já disse o presidente,
ele prefere morrer a ser preso. Porém, seu maior pavor é que algo aconteça com
os filhos, e fará tudo para evitar isso. O restante do grupo mais fiel do
bolsonarismo que esteve em vários dos episódios sob suspeição do Judiciário,
como o blogueiro Allan dos Santos, o caminhoneiro Zé Trovão e Roberto
Jefferson, já foi rifado.
Mas a razão mais importante, a quarta e
última, que explica o novo padrão de presidencialismo de coalizão encontra-se
nas similitudes entre o bolsonarismo e o centrão.
Mesmo que Bolsonaro professe uma visão mais
extremista de política e no terreno dos costumes frente ao padrão mais
pragmático do deputado fisiológico típico, o fato é que o casamento entre eles
também se deve ao fato de que ambos comungam de um comportamento
antirrepublicano por excelência. São patrimonialistas e organizam sua agenda
apenas pelo curto prazo. O importante é ganhar a próxima eleição, custe o que
custar.
Esse lema está escrito nos anéis de
casamento do centrão com o presidente. Afinal, Bolsonaro teve 30 anos para
aprender isso no Congresso, repassando tal ensinamento aos filhos. Os arroubos
de moralismo medieval da família nunca mudaram seu comportamento predatório em
relação à coisa pública. Basta lembrar das viagens nacionais e internacionais
do clã e amigos, que misturam enorme ostentação, num país em que cresce
vertiginosamente a miséria, com o uso indevido de recursos públicos.
A nova era, a da república do centrão
bolsonarista, tem como principal distinção o antirrepublicanismo, que agora
assusta o mercado, pois ninguém sabe exatamente o quanto será gasto para
viabilizar a reeleição do presidente e dos deputados. Entretanto, seus efeitos
já estavam atingindo políticas e instituições que foram construídas a muito
custo e que miravam o longo prazo: a política ambiental, os conselhos de
participação da sociedade, o SUS, a educação inclusiva, e agora a estabilidade
econômica e o Bolsa Família. Tudo que é sólido desmancha no ar sob a ação
destruidora e patrimonialista da república do centrão bolsonarista. A marca que
ficará para o futuro é a da falta de preocupação com o destino coletivo de
longo prazo da nação. Retoma-se o velho lema do coronelismo, mas com nova
redação: aos amigos, tudo; aos outros (nem precisa ser inimigo), a destruição.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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