O Estado de S. Paulo
Para políticos cujo único objetivo é o poder, é possível ver o País entrar num processo de decadência e não se importar tanto com isso
Existe um consenso, não unanimidade, é
claro, de que o teto de gastos não pode ser rompido. Bolsonaro usou as
condições dramáticas da população para estourar os limites de gastos.
A maioria das análises indica que isso pode
trazer quebra de confiança dos investidores, aumento de preço dos combustíveis,
inflação, enfim. Não vi ninguém condenar uma ajuda aos mais pobres. Os
argumentos mais comuns são os de que, feita dessa maneira, ela dá com uma das
mãos e tira com a outra, pois a economia vai estagnar, o desemprego vai
crescer, e isso com repercussão negativa para todos, principalmente para os
mais vulneráveis.
Essa é a discussão mais frequente. Alguns chegam a indicar as famosas emendas de relator, do também famoso orçamento secreto, como a fonte ideal para financiar a nova versão do Bolsa Família. Mas nem os deputados ligados ao governo nem o próprio governo estão dispostos a abrir mão dessas emendas, pois ela são uma das formas de pagamento de Jair Bolsonaro para evitar o impeachment.
Para além dessa discussão, alguns novos
temas devem ser incorporados ao debate. O primeiro deles é a perspectiva.
Paulo Guedes comportou-se como um jogador
de futebol dando entrevista no fim do primeiro tempo: levamos um gol, mas
faremos tudo para empatar e virar este jogo.
Faltou, entretanto, a entrevista com o time
adversário, que levou vantagem nos primeiros 45 minutos. De um modo geral,
dizem isto: fizemos um gol, mas a partida não está ganha, precisamos fazer mais
um ou dois para matar o jogo.
Esta é a lógica que se abre com o ano
eleitoral: o teto será rompido sempre que o núcleo político que apoia Bolsonaro
achar que sua eleição e a do próprio presidente estão ameaçadas. E, dentro
deste contexto, Paulo Guedes será transformado num simples caixa de campanha.
Há um tema que não é propriamente novo, mas
parece ignorado pelos que fazem preleções sobre o equilíbrio financeiro e a
prosperidade econômica. Para políticos cujo único objetivo é o poder,
equilíbrio financeiro não é algo determinante. É possível ver o País entrar num
processo de decadência e não se importar tanto com essa variável, desde que a
continuidade do poder não seja ameaçada.
Em outras palavras, manter o poder é
fundamental, mesmo que seja para administrar a miséria. O bolivarianismo na
Venezuela é um exemplo disso: as crises se acentuaram com o tempo, mas eles se
agarraram ao governo. Há sempre uma forma de explicar o fracasso econômico,
desde que o poder político não seja ameaçado.
Na verdade, seria injusto atribuir essa
tendência perversa à grande parte dos políticos. Banqueiros e grandes
financistas também se adaptam com facilidade, desde que seus lucros não sejam
ameaçados.
Por isso essa discussão toda sobre as
perspectivas da economia, essa angústia em torno da possibilidade ou não de o
Brasil dar certo, tudo isso passa ao largo do cinismo de alguns setores
dominantes.
Para eles, dar certo significa manter o
poder e os lucros. O próprio Paulo Guedes passou quase uma década escrevendo
artigos críticos sobre a socialdemocracia. Ao detonar o teto dos gastos, ele
declarou que a ajuda aos mais pobres foi uma invenção do liberalismo.
As previsões econômicas para 2022 são
ruins, as otimistas preveem um crescimento de 1,5%, algumas já falam que vamos
andar para trás.
É neste contexto que se abre o ano
eleitoral. Inevitavelmente, apesar de estourar o teto de gastos, Bolsonaro vai
se beneficiar da ajuda oficial aos mais pobres. Certamente, já calculou, de um
lado, o impacto na economia e, de outro, o impacto nas urnas.
De qualquer maneira, o fator econômico não
é o único. Há algo em Bolsonaro que transcende à luta pelo poder, à ambição
populista de governar mesmo que o País fracasse.
No momento em que nem todos se vacinaram
contra a covid e que o Brasil contrata 300 milhões de doses de vacina para o
próximo ano, Bolsonaro propaga mentira de que a vacina pode provocar aids.
Ele não se importa se isso afastará as
pessoas da vacina que seu governo comprou, muito menos se haverá mais mortes a
partir desta propagação de uma notícia falsa. Isso significa que ele não pode
ser classificado apenas como um populista. Há algo de perverso em sua atuação,
mistura de ignorância e inconsequência, indesejável em qualquer pessoa, mesmo
que tenha um cargo de pouca responsabilidade.
Bolsonaro acaricia o instinto de morte e
convida o País a um suicídio coletivo. Não existe nada parecido no mundo. Mesmo
no passado, os grandes desastres históricos foram conduzidos por ambições
territoriais, doutrinas de superioridade. Bolsonaro, ao contrário, isola
alegremente o País e dificilmente vai se comover com a tragédia nacional,
enquanto puder comer seu pão com leite condensado e sonhar com um caldo de cana
na esquina.
É um caso especial de patologia política
que levaremos anos para explicar, sua ascensão e o fascínio que exerce na
parcela da população que até hoje ainda o apoia. Certamente, ao cabo dessa
tarefa, poderemos dizer que entendemos um pouco mais a loucura brasileira. •
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