quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Operação contra tráfico de armas é exemplo positivo

O Globo

Inteligência, foco e persistência se mostram mais relevantes que a truculência no combate ao crime

Foi exemplar a operação deflagrada pela Polícia Federal (PF) no Brasil e no Paraguai para desarticular uma quadrilha acusada de fornecer mais de 43 mil armas contrabandeadas da Europa a organizações criminosas brasileiras. A ação, que se estendeu por pelo menos cinco estados, é resultado de três anos de investigações e envolveu cooperação com autoridades dos Estados Unidos e do Paraguai. Seu êxito é mais uma prova de como o combate ao crime organizado depende de inteligência policial, foco e persistência.

O principal suspeito de liderar o esquema é acusado de ser o dono de uma empresa em Assunção que contrabandeava armas de países como Croácia, Turquia, República Tcheca e Eslovênia. A numeração era raspada antes de o armamento ser negociado com traficantes que atuam na fronteira do Paraguai com o Brasil e encaminhado às facções criminosas. Na empresa, foram encontradas caixas abarrotadas de pistolas e fuzis. De acordo com a PF, o esquema movimentou R$ 1,2 bilhão em três anos, valor que faria do suspeito, ainda foragido, o maior contrabandista de armas da América do Sul.

O ponto de partida da investigação foi a prisão de um homem com dois fuzis e 23 pistolas na Bahia em novembro de 2020. Poderia ter sido apenas mais uma apreensão como tantas outras. Ao longo das investigações, porém, foram desvendados os meandros do tráfico de armas, e ficou claro como elas chegam às facções criminosas que aterrorizam a população. Apesar da numeração raspada, a PF da Bahia conseguiu refazer o caminho do armamento, identificando fabricante e importador. O esquema envolvia doleiros e empresas de fachada no Paraguai e nos Estados Unidos para lavar o dinheiro.

A ação da PF dá pistas valiosas sobre como os criminosos contrabandeiam, revendem dezenas de milhares de armas e ocultam o dinheiro sem despertar a atenção das autoridades. Entre os presos no Paraguai, estão militares graduados da Dirección de Material Bélico (Dimabel), instituição responsável pelo controle e pela fiscalização de armamentos. Eles são suspeitos de fornecer documentação legal ao contrabando em troca de propina.

Fica claro que o combate ao tráfico de drogas e armas no Brasil exige ações firmes do governo federal, uma vez que a atividade criminosa se espalha por vários estados e países. Os governos estaduais, aos quais cabe a tarefa constitucional de zelar pela segurança pública, não dispõem de meios para enfrentar organizações transnacionais. Falta um plano de segurança capaz de lidar com esquemas abrangentes e complexos, como o revelado pela operação da PF. As iniciativas apresentadas pelo governo até agora, embora positivas, são apenas pontuais — caso da operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em portos e aeroportos de São Paulo e Rio.

A operação de terça-feira aponta um caminho mais promissor para combater o crime organizado. Em vez de ações truculentas que costumam resultar em muitas mortes com poucos resultados práticos, é mais lógico apostar na inteligência, na investigação sobre o caminho do dinheiro e na cooperação policial com outros países. Descobrir quem fornece as armas e como elas chegam às facções criminosas é fundamental para interromper esse fluxo que alimenta a violência no Brasil e para atingir o flanco financeiro das quadrilhas, meio mais eficaz para desarticulá-las. A operação da PF deveria servir de inspiração a várias outras.

Inteligência artificial impõe desafio urgente para regulação de eleições

O Globo

Campanha eleitoral argentina revelou como a desinformação se sofisticou. Também precisamos estar preparados

Estima-se que votações pelo mundo mobilizarão 3,5 bilhões de eleitores em 2024. Nos Estados Unidos haverá eleições gerais, incluindo a presidencial. No Brasil, o pleito municipal. Por toda parte, cresce a apreensão com a desinformação, sofisticada pelos avanços na inteligência artificial (IA). Conteúdos com áudio e vídeo manipulados, os deep fakes, preocupam governos, parlamentares e juízes.

A última eleição argentina foi a primeira a tornar evidentes os riscos. Tanto a campanha do vencedor Javier Milei quanto a do peronista Sergio Massa reconheceram ter usado ferramentas de IA para propaganda. Logo depois do último debate do segundo turno, os marqueteiros de Massa puseram em circulação um vídeo sobre o afundamento do cruzador Belgrano por um submarino nuclear britânico, com a morte de 323 tripulantes, fato que marcou a Guerra das Malvinas em 1982.

O vídeo exibe soldados argentinos no navio, e a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher ordena o ataque ao cruzador. Antes, a voz de Milei diz que tem como referência “grandes líderes” como Thatcher. No final, aparece a mensagem de Massa: “Um país não pode ser liderado por quem admira seus inimigos”. O contra-ataque veio num vídeo também fraudulento, elaborado por seguidores de Milei, em que Massa aparece cheirando cocaína.

Nos Estados Unidos, uma comissão do Senado formada por democratas e republicanos discute propostas de legislação para a sociedade usufruir os benefícios da IA, mas também se proteger dos danos. O presidente Joe Biden antecipou-se e, em outubro, baixou decreto mobilizando áreas do governo para desenvolver propostas de regulação. Na União Europeia, normas vigentes já obrigam a informar quando qualquer conteúdo é gerado por robôs ou produzido artificialmente.

No Brasil, são vedadas “montagens, trucagens, computação gráfica, desenhos animados e efeitos especiais” na propaganda eleitoral por rádio e TV. O espírito da lei deveria se estender ao meio digital. O ministro do Supremo Alexandre de Moraes, presidente do TSE, defendeu a cassação do registro, do mandato e a inelegibilidade para candidatos cuja campanha comprovadamente usar IA para manipular seus conteúdos de propaganda.

Caso a sugestão de Moraes prevaleça, a dificuldade será rastrear a origem dos conteúdos disseminados por aplicativos de mensagens. Sem legislação adequada, as plataformas digitais têm usado a privacidade dos usuários como argumento para alegar ser impossível obter tais informações.

Uma das versões do Projeto de Lei para regular a desinformação que tramita no Congresso criou mecanismos que as obrigam a armazenar temporariamente informações sobre a circulação de mensagens virais (não o conteúdo) para que possam rastreá-las mediante ordem judicial. A ideia não prosperou, e o projeto continua parado. Tentativas de regular o uso da IA estão em estágio mais embrionário. Se o Legislativo não tomar a iniciativa, é provável que o Judiciário tenha de adotar medidas drásticas, como a sugerida por Moraes.

Comissão Europeia pretende concluir acordo com Mercosul

Valor Econômico

CE pode tentar fatiamento do acordo, permitindo a execução da parte comercial antes do entendimento completo sobre os demais aspectos do tratado

A Comissão Europeia (CE), o braço executivo da União Europeia, resgatou o ímpeto das negociações para o acordo com o Mercosul, que não foi concluído no dia 7, como se esperava, criando um pessimismo alimentado por interesses políticos e econômicos contrariados. “O acordo comercial entre a UE e o Mercosul é de grande importância geopolítica para a UE e não pouparei esforços para que esse acordo histórico seja concluído o mais rápido possível”, disse Valdis Dombrovskis, vice-presidente executivo da CE (Valor, 5 de dezembro). Ele afirmou que aguarda a posição do novo governo da Argentina, encabeçado por Javier Milei, para finalizar os entendimentos.

Dois pontos principais impedem um desfecho. Um deles foi a apresentação de um anexo ao acordo, feito pela União Europeia, reforçando compromissos na área ambiental e desenvolvimento sustentável. Seria uma “declaração anexa e interpretativa”, seguindo o exemplo do tratado UE-Canadá (Valor, 11-12-2020). O expediente era uma clara tentativa de impedir que o então presidente, Jair Bolsonaro, prosseguisse com sua política de destruição ambiental. Entretanto, ele foi finalmente apresentado em março, para o governo Lula, que tem compromissos claros na defesa do ambiente e no combate ao aquecimento global.

Um anexo, ou “side letter” não reabriria o acordo, mas foi percebido como tal pelo governo brasileiro. Curiosamente, seu texto não é público, de forma que um ponto crucial não pode ser esclarecido. Para os negociadores europeus, trata-se da reafirmação de políticas existentes, sem sanções em caso de descumprimento. Para a parte brasileira, trata-se de uma questão de soberania nacional. Dessa forma, um anexo pôs 20 anos de tratativas diante de um impasse.

O governo Lula, por seu lado, reabriu de fato o texto do acordo, ao recusar o capítulo de compras governamentais, por, em tese, impedí-lo de executar política industrial que beneficiaria pequenas e médias empresas. Na verdade, o texto mantém ampla margem de ação para o Mercosul. “Estão salvaguardadas políticas públicas em desenvolvimento tecnológico, saúde pública, promoção das microempresas e pequenas empresas e segurança alimentar”, diz resumo oficial do acordo divulgado pelo governo brasileiro em 4 de julho de 2019. Além disso, estabelece que o acesso de fornecedores brasileiros ao mercado europeu será mais amplo do que o acesso de empresas europeias ao mercado brasileiro.

O governo Lula não gosta de abertura comercial, tendo barrado no nascedouro um acordo com os EUA que abrangeria todo o continente (Alca) e, apesar das tratativas com a UE terem se iniciado em seu governo, há forte oposição a ele do PT e de assessores próximos ao presidente. A mesma atitude teve o governo argentino que se vai, o do peronista Alberto Fernández.

Os dois entraves podem ser resolvidos pela negociação. No caso da UE, o anexo serviu de pretexto para que todas as forças protecionistas europeias, em especial lobbies da agricultura, tentassem evitar a conclusão das conversações. Para os europeus é mais simples abdicar do anexo, porque outra legislação abrangente para a UE, já em vigor estabelece sanções e barreiras a produtos que sejam provenientes de áreas desmatadas, válida para todos os países que comerciam com o bloco, o terceiro maior do mundo.

Havendo vontade política, a Comissão Europeia poderia tentar o fatiamento do acordo (splitting) para que a parte comercial e de investimentos pudesse ser executada enquanto não houvesse entendimento em outros pilares. Para isso, seria necessária a decisão do Conselho Europeu por um acordo provisório, como foi feito com o Chile e proposto ao México (Valor, 21 de novembro). O fatiamento precisa da ratificação do Parlamento Europeu e do Conselho da UE, mas não dos parlamentos nacionais, onde o acordo com o Mercosul enfrenta seus maiores obstáculos.

Alemanha e França, as duas maiores economias do bloco, estão divididas. A França segue sua política historicamente protecionista, recentemente ressaltada pelo presidente Emmanuel Macron que em Dubai disse ser “totalmente” contrário ao acordo com o Mercosul. A Alemanha o defende com convicção, mas o primeiro-ministro Olaf Scholz governa em coalizão com os verdes, que são contrários aos termos atuais dos entendimentos. A Espanha, que ocupa a Presidência rotativa do Conselho Europeu até o fim de dezembro, é favorável ao acordo com o Mercosul, mas a Bélgica, próximo país a comandá-lo, tem posição hostil.

Há incentivos para a UE vencer as resistências internas. Politicamente constrangida pela rivalidade entre EUA e China e em busca de espaço próprio na nova realidade global, o bloco tem de construir mais alianças políticas e econômicas. Fechar o acordo com o Mercosul lhe garantiria vantagens nas duas maiores economias da América do Sul, ao ter acesso favorecido a mercados que EUA e China não possuem. Seria seu segundo maior tratado comercial, após o concluído com o Japão. Para o Brasil, será o maior acordo da história, e o mais relevante: envolve economias que somam 25% do PIB mundial e 780 milhões de pessoas.

Vaivém da pobreza

Folha de S. Paulo

Melhora se deu com mais PIB, inflação menor e ação social, a serem mantidos

A parcela de brasileiros em situação de pobreza caiu no ano passado, conforme divulgou nesta quarta-feira (6) o IBGE. A melhora era previsível, embora o debate em torno do tema tenha sido tumultuado pelas disputas de ano eleitoral.

Conforme os novos parâmetros recomendados pelo Banco Mundial (renda domiciliar per capita abaixo de R$ 637 mensais), os brasileiros pobres passaram de 36,7% da população, em 2021, para ainda exorbitantes 31,6%. Já a taxa de extrema pobreza (menos de R$ 200 por mês) caiu de 9% para 5,9%.

Em que pesem as cifras vexatórias, trata-se de recuos relevantes. Para eles concorreram ao menos três fatores essenciais: crescimento da economia e do emprego, controle da inflação e ação assistencial do poder público —uma tríade que precisa ser mantida para a superação contínua e duradoura das piores mazelas sociais.

A expansão do Produto Interno Bruto no ano passado superou as expectativas e chegou a 2,9%. Melhor ainda, a taxa de desemprego recuou de 11,1% para 7,9%. A inflação, que havia disparado globalmente na recuperação do impacto da pandemia e chegara a 10,06% em 2021, baixou para 5,79%.

Por fim, a ampliação do Bolsa Família sob o nome de Auxílio Brasil, ainda que motivada pela ofensiva eleitoreira de Jair Bolsonaro (PL), não poderia deixar de ter efeito significativo na redução da pobreza e, sobretudo, da miséria —segundo o IBGE, esta teria atingido 10,6% sem os programas sociais.

Se 2022 foi positivo, o panorama é desalentador quando se observa a evolução em uma década calculada pelo instituto. Por ela se observa que o Brasil, entre idas e vindas, pouco avançou desde 2012, quando contava 34,7% na pobreza.

A taxa chegou a cair a 30,8% em 2014, mas a trajetória não se mostrou sustentável. A combinação de recessão profunda e alta da inflação, resultante do desarranjo econômico e orçamentário promovido por Dilma Rousseff (PT), elevou o percentual a 33,7% em 2016.

Seguiram-se anos de baixo crescimento do PIB e lenta melhora social, até que o auxílio emergencial criado na crise sanitária provocou queda surpreendente da cifra para 31% em 2020. A retirada abrupta do benefício produziu o pico do indicador no ano seguinte.

Tudo considerado, percebe-se que doravante o combate à pobreza não poderá se basear em mais incremento da ação assistencial —mas o Bolsa Família, com recursos recordes, pode ser aperfeiçoado para se tornar mais eficiente.

A distribuição de renda precisa ser combinada com vigor econômico e geração de mais e melhores empregos, que dependem da preservação do poder de compra e do equilíbrio das contas do governo.

Um teste para Lula

Folha de S. Paulo

Crise Venezuela-Guiana revela riscos da ligação do PT com ditaduras de esquerda

Para surpresa de ninguém, a crise causada pelo plebiscito venezuelano que reclamou a soberania da região de Essequibo, na Guiana, escalou ao gosto da fanfarronice do ditador de Caracas, Nicolás Maduro.

Após promover a farsesca consulta, sem legitimidade da ONU, o caudilho achou por bem avançar a retórica sobre a região rica em petróleo e outros recursos minerais.

De uma só vez, mostrou um mapa da Venezuela com o território vizinho já anexado, anunciou que a petroleira estatal PDVSA iria emitir licenças para exploração no local (para quem mesmo?) e nomeou um general como governador "in abstentia" da região.

O despautério foi recebido em Georgetown como tal, mas também como ameaça, dado que o pequeno país não tem condições de se defender de um hipotético ataque venezuelano sem ajuda externa.

Ela viria, talvez, dos Estados Unidos. A empresa americana ExxonMobil começou a explorar a enorme reserva de petróleo encontrada no litoral de Essequibo em 2019, após quatro anos de prospecções. É o suficiente para Maduro acusá-la de agente do imperialismo.

Todavia tal reação não é uma certeza, até porque a pantomima do ditador até aqui não passou disso.

Ele tenta ampliar apoio interno, fraco dados os 50,7% de comparecimento no referendo de domingo (3), e se ampara na popularidade do tema em seu país, que luta por Essequibo desde o século 19.

A crise afeta Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O presidente e seu partido são defensores ferrenhos da ditadura vizinha, assim como de outras na América Latina —desde que sejam de esquerda.

Com Maduro destemperado, o governo brasileiro se viu obrigado a mostrar sensatez. Lula e seu chanceler de direito, Mauro Vieira, apelaram a panos quentes. Tom mais alarmista foi adotado pelo ministro das relações exteriores de fato, o assessor Celso Amorim, que falou em medo de escalada.

Ele pode estar bem informado ou apenas forçando a aparência de crise, de olho numa desescalada em que o Brasil apareça como apaziguador. Militares, por sua vez, sinalizaram à Venezuela que não querem agitação numa fronteira já complexa e cheia de refugiados.

Em qualquer situação, Lula pagará o preço por andar em más companhias. O ônus já está sendo explorado nas redes bolsonaristas. Resta saber como o petista agirá no ora improvável caso de Maduro resolver fazer algo concreto.

Andando em círculos na área fiscal

O Estado de S. Paulo

Discussão sobre o tamanho do contingenciamento mostra o quanto o debate sobre a política fiscal ainda precisa avançar. Manobras e interpretações criativas só enfraquecem arcabouço

O mais novo impasse em torno da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) é a emenda que impõe limites ao tamanho do contingenciamento que o governo poderá fazer para cumprir a meta de zerar o déficit fiscal em 2024. Apresentada pelo líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), a proposta se baseia em uma interpretação criativa, para dizer o mínimo, que o Executivo tenta emplacar para driblar as regras fiscais.

O novo arcabouço fiscal estabeleceu um piso de 0,6% e um teto de 2,5% para o crescimento real das despesas primárias a cada ano – sejam obrigatórias, sejam discricionárias. A proposta estipulou, também, que o governo pode bloquear, no máximo, 25% dos gastos discricionários, o equivalente a R$ 53 bilhões, nas contas do governo.

Como se sabe, os contingenciamentos, instituídos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), têm sido o principal instrumento à mão do Executivo para cumprir a meta. Não são, nem nunca foram, opcionais. Mas o presidente Lula da Silva, aparentemente, só se lembrou disso mais recentemente, quando passou a menosprezar publicamente a importância de zerar o déficit em 2024, no fim de outubro.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tentou reduzir o estrago com um parecer jurídico. A tese, elaborada pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), tornou-se a base da emenda de Randolfe. Tal emenda estabelece um novo limite para o contingenciamento dos gastos discricionários, de até R$ 23 bilhões, de forma a preservar o piso de 0,6% para o crescimento real das despesas – uma forma de agradar ao chefe e salvar a meta de seus ataques.

Em Dubai, Haddad disse que o relator da LDO se comprometeu a acatar a proposta. Em Brasília, no entanto, Danilo Forte (União-CE) afirmou que a rejeitaria, por orientação do Tribunal de Contas da União (TCU) e de consultores legislativos. A nota elaborada pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara finalmente veio a público e, de fato, não deixa dúvidas sobre o que deve ser feito.

Não há, segundo a Consultoria, conflito entre as leis. O fato de o arcabouço determinar um piso de 0,6% para o crescimento das despesas primárias serve unicamente para estabelecer o espaço fiscal disponível no Orçamento. Não há, no entanto, obrigação de utilizá-lo no todo, sobretudo se o cumprimento da meta estiver sob risco. Neste caso, o contingenciamento deve obrigatoriamente ser adotado.

A Consultoria reafirma que a LDO é uma lei ordinária e, portanto, deve submeter-se aos dispositivos do arcabouço e da LRF, ambas leis complementares. Em suma, para os técnicos, a tese da AGU e da PGFN “subverte a lógica” do arcabouço e “extrapola o espaço interpretativo concedido pelo texto legal”.

Segundo a consultoria, o contingenciamento pode chegar a R$ 56,5 bilhões. Caso o governo queira reduzir o bloqueio a R$ 23 bilhões, no entanto, terá de propor uma alteração não na LDO, mas no próprio arcabouço fiscal, ou reconhecer a necessidade de mudar a meta fiscal.

Se toda essa discussão serve para algo, é para mostrar o quanto o debate sobre a relevância da política fiscal ainda precisa avançar no País. Desvios, manobras e interpretações criativas semelhantes servem apenas para enfraquecer o arcabouço recém-aprovado. Foi assim que o finado teto de gastos e o sistema de metas de superávit primário que o antecederam foram desmoralizados.

Em vez de investir em reformas, o governo perde tempo e energia em discutir a proporção do contingenciamento, instrumento que nem sequer é um corte de fato, mas apenas um mecanismo de bloqueio temporário de despesas que visa justamente a facilitar o alcance da meta.

O debate deixa implícito que a preocupação do governo não é cumprir a meta, mas apenas afastar a possibilidade de o presidente ser punido pelo descumprimento do objetivo. A única forma de se livrar desse risco é adotar todas as medidas necessárias para atingir a meta – ou seja, efetivar o contingenciamento de despesas que a Lei de Responsabilidade Fiscal preconiza e que o arcabouço fiscal jamais invalidou.

Contradições ambientais de Lula

O Estado de S. Paulo

Embora faça discursos grandiloquentes sobre o papel do Brasil na descarbonização, Lula destina poucos recursos para combustíveis de baixo carbono e investe na indústria petrolífera

É do dramaturgo grego Eurípides uma frase que expressa bem os limites e descontroles do comportamento humano: “A minha língua jurou, mas o meu espírito manteve-se livre de juramentos”. Não consta que no rol de leituras do presidente Lula da Silva esteja a peça Hipólito, mas a inspiração da tragédia grega espelha com precisão suas escolhas. A participação brasileira na COP-28 reafirmou as contradições de Lula e de seu governo em matéria ambiental, além da habitual e indisfarçável prática do presidente de dividir retórica e prática em dois mundos absolutamente distintos.

Exemplos não faltaram. Num dos mais eloquentes, o presidente tentou cadastrar-se na pasta dos líderes globais mais críticos dos combustíveis fósseis, sublinhando que o planeta “está farto de acordos climáticos não cumpridos” e de “metas de redução de emissão de carbono negligenciadas”, entre outros recados. Para o presidente, “é hora de enfrentar o debate sobre o ritmo lento da descarbonização do planeta e trabalhar por uma economia menos dependente de combustíveis fósseis”.

Seria uma cobrança legítima não fosse o fato de, poucas horas antes, seu ministro de Minas e Energia ter acenado para a adesão do Brasil à Opep+, o grupo de aliados da Organização de Países Exportadores de Petróleo, hoje fortemente criticados por não reduzirem a exploração de combustíveis fósseis e, ao contrário, sinalizarem aumento de produção. Como este jornal já afirmou, os subsídios aos combustíveis fósseis e o aceno à Opep+ não somente são contraditórios, como contraproducentes. Na condição de ouvinte, o Brasil ganhará, no máximo, acesso antecipado às decisões do cartel. E, diferentemente dos países que integram o cartel, a economia brasileira não depende exclusivamente do petróleo.

É o problema da língua presidencial que jura, mas o coração não. O mesmo governo que ambiciona ser uma liderança mundial em política climática quer apoiar a expansão da produção de petróleo com a perspectiva de se tornar um grande exportador. O mesmo governo que une os ministros da Fazenda e do Meio Ambiente para anunciar o Plano de Transição Ecológica alimenta o cabo de guerra entre os Ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia.

Lançado há cerca de três meses, o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) fez da transição energética um dos seus principais eixos e âncora do discurso governamental sobre um suposto novo tempo para o País. Pouca gente registrou, no entanto, que na prática 62% dos recursos carimbados como transição energética serão usados para finalidades que perpetuam o mesmo tipo de dependência do petróleo. Isso mesmo: de um total de R$ 1,4 trilhão em investimentos em todas as áreas, cerca de R$ 450 bilhões serão destinados a projetos de “transição e segurança energética”, mas o investimento para combustíveis de baixo carbono, como etanol e biometano, ficou em modestos R$ 20 bilhões, um valor 13 vezes inferior ao que será alocado para a indústria petroleira.

A contradição é privilégio dos homens inteligentes e dos governos realistas, dizia o economista e diplomata Roberto Campos, conhecido por ser um de nossos mais brilhantes liberais e pela ironia fina com que retratava líderes de esquerda e governos em geral. O governo Lula abusa de tal privilégio. Seria prova de seu realismo se conjugasse melhor a retórica presidencial e os fatos. A substituição de fontes de energia não se dará num estalar de dedos, e uma transição levará anos ou mesmo décadas. É o que reforça o acerto, por exemplo, da intenção de explorar petróleo na Margem Equatorial. Gostemos ou não, a economia global continuará a ser abastecida pelos combustíveis fósseis nos próximos anos. Uma demanda que o Brasil não pode desperdiçar.

Uma coisa é preservar investimentos e exploração, reduzindo progressivamente os combustíveis fósseis e expandindo as energias renováveis. Outra coisa, bem diferente, é sustentar no gogó a premissa de que o governo está ancorado num novo modelo de desenvolvimento e num novo padrão de uso de energia, enquanto sua prática e seu planejamento orçamentário contradizem tais prioridades. Narrativas não substituem as evidências, e estas demonstram que, na prática, o coração de Lula ainda parece estar num lugar bem distante do que sua língua promete.

Não é o juro que limita o PIB

O Estado de S. Paulo

Economia só voltará a crescer de forma consistente se houver mais investimentos e maior produtividade

O comportamento da economia brasileira voltou a surpreender no terceiro trimestre deste ano. Ainda que o resultado tenha sido tímido, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 0,1% ante o segundo trimestre – pouco, mas suficiente para animar os investidores, que esperavam uma variação negativa.

De acordo com a coordenadora de Contas Nacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Rebeca Palis, desta vez o agronegócio puxou a economia para baixo. Depois de impulsionar o PIB na primeira metade do ano, o agro caiu 3,3% no terceiro trimestre ante o período imediatamente anterior. Indústria e serviços cresceram 0,6%; e o comércio, 0,3%.

Na comparação interanual, no entanto, Palis destacou que o desempenho do agronegócio foi fundamental para impulsionar a economia como um todo. O PIB avançou 2% em relação ao terceiro trimestre de 2022; no mesmo período, o agro avançou 8,8%; a indústria, 1%; serviços, 1,8%; e o comércio, 0,7%.

Na ótica da demanda, o destaque positivo foi o consumo das famílias, que aumentou 1,1% entre o segundo e o terceiro trimestres e 3,3% em relação ao mesmo período do ano passado. Por outro lado, os investimentos, medidos pela Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), caíram 2,5% na margem e despencaram 6,8% na comparação interanual.

Nos dois casos, não houve surpresas. Como explicou o economista-chefe da Ágora Investimentos, Dalton Gardimam, trata-se do resultado de uma política econômica que privilegia o consumo e pune investimentos. No governo, no entanto, o resultado foi comemorado. A ministra do Planejamento, Simone Tebet, disse que o País não crescerá menos de 3% neste ano.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por sua vez, reconheceu que o PIB foi fraco, mas atribuiu o resultado às taxas de juros reais, que teriam atingido o nível mais alto em junho – antes, portanto, de o Banco Central (BC) iniciar o ciclo de redução da Selic, em agosto. “Com os cortes nas taxas de juros, nós esperamos que neste ano fechemos o PIB com mais de 3% de crescimento e esperamos um crescimento na faixa de 2,5% no ano que vem. Mas o BC precisa fazer o trabalho dele”, afirmou Haddad.

A reação do ministro é natural, mas injustificável. Sem a elevação dos juros, o País não teria debelado a inflação, que continua a assombrar economias mais desenvolvidas, como a norte-americana. Não é possível conter a inflação sem causar impactos na economia: é este, precisamente, o custo do controle dos preços.

Culpar os juros pelo baixo crescimento, no entanto, é ilusório. O passado prova que reduzir os juros de forma artificial não garante nada além de voos de galinha e preços elevados, que penalizam, sobretudo, os mais pobres. A economia não voltará a crescer de forma consistente sem aumento dos investimentos e da produtividade, o que requer reformas estruturais.

Ajudaria muito se as políticas monetária e fiscal remassem na mesma direção. É papel de Haddad aproveitar o resultado do PIB para convencer o presidente Lula da Silva sobre os riscos do aumento do gasto público e dos estímulos artificiais ao crédito.

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