terça-feira, 4 de junho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Greve nas federais passou do limite

O Globo

Depois de dois meses, universidades perdem prestígio e competitividade, enquanto alunos são quem mais sofre

A greve de professores e servidores de colégios, institutos e universidades federais completou dois meses sem nenhuma perspectiva de solução. Alunos que perdem aula já veem ameaçadas formatura, obtenção do diploma e a chance de conseguir emprego. Além deles, ninguém parece preocupado. E o governo não tem feito o bastante.

Estima-se que hoje a paralisação afete, em diferentes estados, pelo menos 52 universidades, 79 institutos federais e 14 unidades do Colégio Pedro II. Embora a adesão à greve não seja total, a rotina universitária está irremediavelmente comprometida. Serviços foram suspensos e há casos em que o bandejão deixou de funcionar, prejudicando estudantes mais vulneráveis.

O caráter político da greve é indisfarçável. Na pauta de reivindicações, que inclui reajuste salarial, reestruturação de carreira e recomposição orçamentária das universidades, entrou até a revogação da reforma do ensino médio. Alheios à angústia dos estudantes, dois grupos de associações docentes duelam pelo protagonismo: o Andes e o Proifes. Nenhum deles com legitimidade plena para representar os professores federais.

No meio da contenda, o governo se mostra perdido. Várias propostas de negociação foram rechaçadas pelos grevistas, que exigem reajuste neste ano, enquanto o governo acena com aumento escalonado a partir do ano que vem. No fim do mês passado, o Ministério da Gestão assinou acordo com o Proifes para pôr fim à paralisação. Foi uma oferta generosa, que ia além de repor as perdas recentes. Mas não foi o bastante para o Andes, que conseguiu derrubar o acordo na Justiça. Na prática, nem precisaria, uma vez que, apesar do acordo, a greve oportunista continuava em vários locais.

Para o governo e para os grevistas parece estar tudo bem. Não está. É um absurdo que universidades fiquem paradas total ou parcialmente durante dois meses. Elas são centros de ensino e pesquisa mantidos com dinheiro do contribuinte. E precisam dar retorno à sociedade. Que retorno pode existir com portas fechadas? Os grevistas reivindicam um acréscimo de R$ 2,5 bilhões além do orçamento de R$ 6,2 bilhões destinado às federais. Por mais que tenha havido esvaziamento de recursos nos últimos anos, o país não pode olhar apenas para o ensino superior. Há carências sérias na base.

É hora de discutir ganhos de produtividade e outras fontes de renda. Por que não cobrar dos alunos que podem pagar, financiando apenas quem precisa? Por que não adotar práticas de gestão mais modernas, otimizar a administração e reduzir a burocracia infernal que penaliza alunos, professores e a sociedade? Por que não firmar mais acordos com a iniciativa privada para buscar dinheiro onde existe em vez de disputar recursos minguados num Estado em crise fiscal crônica?

Fazer greve por tempo indeterminado parece confortável. Nada acontecerá com quem aderiu. Continuará recebendo seus salários em dia. No que depender deste governo, não haverá corte do ponto, nem avaliação de desempenho. Para os alunos, porém, o prejuízo aumenta a cada dia. Muitos nem conseguiram recuperar as perdas da pandemia e já enfrentarão outro desafio. Greves oportunistas destroem também as próprias universidades, que perdem competitividade e prestígio. Uma universidade desvalorizada não interessa a ninguém.

Senado precisa derrubar ‘jabuti’ que cria protecionismo no setor de petróleo

O Globo

Dispositivo em lei de incentivo a carros verdes impõe reserva de mercado que afugentará os investidores de leilões

No texto que renova o programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), destinado a incentivar a indústria automobilística a produzir veículos menos poluentes, a Câmara inseriu dois “jabutis” sem relação com o conteúdo original. O primeiro estabelece uma taxa de 20% sobre importações de até US$ 50, hoje isentas. O segundo gerou menos controvérsia, mas terá efeito mais nocivo caso seja mantido na votação do Senado prevista para hoje. Trata-se da exigência de conteúdo nacional mínimo em equipamentos usados na exploração e na produção de petróleo.

É longa a experiência fracassada do Brasil com o protecionismo nas mais variadas áreas. Nenhuma proteção deveria ser estabelecida sem que haja prazo de validade, objetivo mensurável e avaliações periódicas de resultado. “Políticas protecionistas, como reserva de mercado, são eficazes somente quando são temporárias, com estímulo a exportações, agregando competências tecnológicas e prevendo concorrência acirrada entre as empresas beneficiadas”, afirmou em nota Telmo Ghiorzi, presidente executivo da Associação Brasileira das empresas de Bens e Serviços de Petróleo (Abespetro). Do contrário, a conta do protecionismo sempre fica para o consumidor, obrigado a consumir produtos mais caros.

O “jabuti” aprovado na Câmara estipula que, em projetos regidos pelo regime de partilha (em vigor para o pré-sal), pelo menos 20% do investimento na exploração e 30% na construção de poços devem ser contratados de fornecedores locais. No projetos de concessão, essa parcela pode subir a até 50%. Até o vice-presidente Geraldo Alckmin, recentemente convertido em defensor ferrenho de incentivos à indústria nacional, se manifestou contra fixar percentuais em lei. No caso do petróleo, já há parâmetros para conteúdo nacional, fixados pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e pela Agência Nacional do Petróleo (ANP). Não tem mesmo cabimento gravar na lei esse tipo de exigência.

Se a manobra for aceita pelo Senado, as autoridades reguladoras perderão a flexibilidade para fixar esses percentuais caso a caso, como têm feito com êxito desde 2017, dependendo das características geológicas, da profundidade da exploração e da capacidade efetiva da indústria nacional de fornecer equipamentos de boa qualidade nos prazos exigidos pelas petroleiras. Foi necessário relaxar essas normas sobre conteúdo nacional para atrair mais empresas aos leilões de exploração. Agora, o Brasil corre o risco de voltar a afastar as grandes petroleiras privadas, sem as quais o pré-sal não teria se tornado responsável por 3 milhões dos 4,3 milhões de barris produzidos todo dia no país.

Não será com uma política rígida de exigência de conteúdo nacional que o Brasil evitará o esgotamento crescente das reservas do pré-sal ou se preparará para a necessária transição energética para além do petróleo. Se o Senado não derrubar o “jabuti” extemporâneo, o país sofrerá grande retrocesso na atração de investimentos externos na exploração de petróleo, quando mais precisa deles.

Emergentes põem populismos à prova

Folha de S. Paulo

Eleições em Índia, México e África do Sul testam regimes que tensionam instituições, mas ainda respeitam a democracia

Em um agitado fim de semana no mundo democrático, três grandes países finalizaram seus processos eleitorais. Os governos populistas de ÍndiaMéxico e África do Sul foram colocados à prova nas urnas.

Em comum, tais nações frequentam desde os anos 1990 o escaninho das emergentes —uma designação cujo sentido remonta mais à conveniência dos mercados para categorizar alvos de investimentos do que ao pertencimento a um movimento comum.

Indianos e sul-africanos, de todo modo, têm suas iniciais no acrônimo do bloco que ganhou notoriedade no grupo, o Brics, assim como Brasil, China e Rússia. Hoje, há poucos países mais diferentes entre si do que os parceiros da entidade.

O trio que foi à urnas —dois deles em processos parlamentares e o México numa tradicional eleição presidencial— chegou a 2024 unido sob o signo do populismo. Não das variantes da direita trumpista ou bolsonarista, porém respeitando peculiaridades políticas.

Completando dez anos no poder, Narendra Modi transformou a Índia surfando uma onda econômica e demográfica. É um país com níveis abissais de miséria, mas há obras de infraestrutura por todo lado e previsões talvez otimistas sobre uma prosperidade futura.

O pedágio veio na forma de um radicalismo religioso que explodiu na campanha. A grande maioria obtida no Parlamento mostra que os 80% de hinduístas do país estão satisfeitos com tal virulência contra os 200 milhões de muçulmanos, o que lança sombras sobre o futuro.

No México, o populismo triunfou, mas num cenário mais desafiador. Os eleitores ratificaram a ungida por Andrés Manuel López Obrador para sucedê-lo, Claudia Sheinbaum, a primeira mulher a chegar a Presidência do país.

AMLO, como o líder é conhecido, levou a esquerda ao poder há seis anos e implantou um grande programa assistencialista de resultados mistos e solvência incerta.

O México é um os países mais violentos do mundo, devido ao narcotráfico, e busca fortalecer relações econômicas com os EUA. Uma eventual volta de Donald Trump e sua xenofobia à Casa Branca pode acirrar ainda mais as tensões.

Na África do Sul, o Congresso Nacional Africano (CNA) não alcançou os 50% do Legislativo necessários para governar e indicar o presidente. Assim, pela primeira vez perdeu a hegemonia conquistada em 1994, quando encerrou o regime racista do apartheid com a eleição de Nelson Mandela.

O atual presidente, Cyril Ramaphosa, nem é tão caricato como o antecessor, Jacob Zuma, e à sua falta de carisma foi atribuído o fracasso nas eleições. Por legar um país em crise e com níveis inaceitáveis de violência, agora o CNA terá de aceitar uma coalizão.

Os três pleitos revelam fossos entre países que já foram considerados pares. A boa notícia é que, mesmo sob a tensão institucional típica do populismo, eles por ora seguem aderentes ao sistema de freios e contrapesos das democracias.

Cores democráticas

Folha de S. Paulo

Parada LGBTQIA+ mostra que verde e amarelo não são exclusivos do bolsonarismo

Neste ano, a parada LGBTQIA+, realizada em São Paulo desde 1997, ganhou um colorido diferente. Do arco-íris que simboliza a diversidade de gênero e orientações sexuais, as cores verde e amarela saltaram para a avenida Paulista sob a forma de adereços e da camisa da seleção brasileira de futebol.

Milhares de pessoas responderam ao convite dos organizadores e de personalidades ligadas ao movimento, atendendo a um propósito de fundo político: retirar do bolsonarismo a apropriação das tradicionais cores brasileiras.

Como se sabe, com os motes de "nossa bandeira não é vermelha" e "Brasil acima de tudo", a direita populista adotou nos últimos anos o uniforme que se transformou em imagem internacional do país.

O nacionalismo cultivado por Jair Bolsonaro (PL) tem raízes na ditadura militar, que tentou capitalizar a conquista da Copa de 1970 como um feito do regime, insuflando um tipo de patriotismo ufanista e incondicional resumido no slogan "Brasil, ame-o ou deixe-o".

O embaraço de alguns setores da esquerda em comemorar abertamente a vitória naquele torneio de certa forma se repetiu em anos recentes. Em que pesem tentativas de recuperar as cores nacionais, o fato é que o verde e amarelo e a camisa da seleção permaneceram como representação cromática predominante nos atos pró-Bolsonaro.

O estopim da novidade foi o show da Madonna em Copacabana, no início de maio. A cantora, que sempre desafiou as visões mais rígidas contra a diversidade de gênero, levou ao palco uma bateria de escola de samba e fez dupla vestida de verde e amarelo com a brasileira Pabllo Vittar —também uma das atrações do domingo na Paulista.

É significativo que a tentativa mais bem-sucedida de quebrar tal polarização tenha surgido agora sob a liderança do movimento LGBTQIA+, numa festa marcada por alegria e ousadia democrática.

O espírito da PM de Tarcísio

O Estado de S. Paulo

Ao submeter a segurança da população à ideia de que policiais não devem ser ‘vigiados’, governador ignora um princípio básico da cidadania e flerta com a banda truculenta da força estatal

O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) não poderia ter deixado mais claro que sua antipatia pela instalação de câmeras no fardamento da Polícia Militar (PM) de São Paulo parte de uma incompreensão primordial dessa bem sucedida política de segurança. Na quarta-feira passada, durante o ato de assinatura do contrato do Trem Intercidades, em Campinas, Tarcísio afirmou que quer “uma população segura, e não um policial vigiado”, como se estivesse tratando de noções antitéticas. Na verdade, eis o erro fundamental, uma coisa e outra são conexas.

Mais bem dito: para o governador do Estado, como pode ser facilmente depreendido de sua fala cristalina, tão mais seguros estarão os cidadãos paulistas quanto menos houver fiscalização da atividade policial. Ora, o olhar vigilante da sociedade sobre todo e qualquer servidor investido do múnus público é um princípio básico da cidadania. É desse tipo de vigilância, afinal, que se está tratando, e não de um escrutínio da força estatal por quem não tem legitimidade para exercê-lo – como os criminosos, por óbvio.

Ademais, a devida fiscalização dos agentes treinados e armados pelo Estado para exercer o monopólio da violência em seu nome, seja por meio das corregedorias das corporações, seja pelo Ministério Público e, por fim, pelo Poder Judiciário, é um atributo comezinho de qualquer governo inspirado por princípios democráticos e orientado genuinamente por valores universais, como o respeito aos direitos humanos.

A violência praticada por policiais no exercício de suas atribuições é um meio legítimo de imposição da ordem pública desde que circunscrita às balizas das leis e da Constituição. Nesse sentido, as câmeras corporais, como já está sobejamente demonstrado, não apenas protegem os cidadãos – inclusive os criminosos – do emprego de força abusiva por agentes do Estado, como serve de robusto meio de prova para proteção jurídica dos próprios policiais.

Portanto, ao submeter a segurança da população paulista à ideia segundo a qual os policiais não devem ser “vigiados”, Tarcísio ignora um princípio elementar da cidadania e, como se isso não bastasse, ainda flerta com a banda truculenta das forças sob seu comando. Como parece razoável supor para qualquer cidadão sensato, só quem tem a ganhar com o fim do programa de câmeras na PM ou com o enfraquecimento dessa política pública de resultados comprovadamente satisfatórios são os maus policiais, que preferem operar nas sombras, ao abrigo de qualquer investigação de suas ações em serviço.

Como é notório, desde o início do governo de Tarcísio de Freitas houve uma perceptível deterioração do espírito, digamos assim, orientador da PM. Por muitos anos conhecida como a mais bem preparada e equipada força policial do País, contribuindo, ao lado da Polícia Civil, para a redução progressiva dos indicadores de violência no Estado, a PM se notabilizou nos últimos dois anos por uma inflexão, vale dizer, pelo aumento das mortes causadas por intervenção policial e da truculência de suas intervenções.

Aí estão, entre outros exemplos estarrecedores, os casos de repressão violenta aos protestos de estudantes na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – contra a aprovação do projeto de lei que instituiu as escolas cívico-militares – e na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco, durante a posse do novo procurador-geral de Justiça do Estado. Um policial chegou a rir enquanto batia nos jovens. São práticas inaceitáveis para um governo que se diz democrático.

A seguir por esse mau caminho, Tarcísio levará a população a sentir medo sempre que vir uma patrulha policial. O combate ao crime não implica, necessariamente, força bruta, por mais que isso excite eleitores explorados em seu justo sentimento de impotência diante de casos de violência. O bom combate deriva do aprimoramento técnico contínuo das polícias, da difusão de noções de cidadania, da repressão aos maus policiais e da valorização dos que atuam dentro da lei. Não é pedir muito.

O despertar adiado

O Estado de S. Paulo

Ao prorrogar prazo para definir plano global contra pandemias, países-membros da OMS ampliam o risco: quanto mais longe da covid-19, menos preparados estaremos contra nova catástrofe

Confirmou-se o que se avizinhava, e os 194 países que integram a Organização Mundial da Saúde (OMS) terão um ano para concluir o que não conseguiram fazer em mais de dois anos: aprovar um acordo de prevenção contra futuras pandemias. Em 2021, ainda em meio aos milhões de mortos deixados pela covid-19, as nações concordaram em preparar um ambicioso plano global para enfrentar ameaças futuras – algum patógeno desconhecido e possivelmente mais contagioso, mortífero e resiliente que o coronavírus. Em abril, após nove rodadas de negociações, a conclusão se mostrava difícil (ver o editorial A próxima pandemia vem aí, de 8/4). Agora os prognósticos se consumaram, com os países jogando a solução para o “prazo máximo de um ano”. O comunicado deu ênfase ao futuro, mas no fundo se trata de uma pá de cal sobre o passado de 30 meses de esforço. Um revés a um só tempo incompatível com o gigantismo da necessidade global e compatível com o tamanho dos obstáculos, muitos dos quais difíceis de superar.

A necessidade vem das lições deixadas pela covid-19, em que se viu falta de preparação, coordenação e solidariedade. Constatou-se ali que, além do conhecimento científico, a cooperação é o melhor antídoto contra epidemias. Apesar de ciclos horrendos, como aids, ebola e covid-19, no século 21 as epidemias passaram a matar numa proporção muito menor de humanos do que em qualquer outro período da história – passando pela Peste Negra no século 14 e o surto mortal de gripe do início do século 20. De lá para cá, a humanidade se tornou mais vulnerável a epidemias, e hoje um vírus pode viajar entre a Ásia, a Europa e as Américas em menos de 24 horas. Em compensação, ainda que tais surtos sejam proporcionalmente menos mortais, o fato é que patógenos infecciosos não conhecem fronteiras nem distinguem classes, e, se uma parte do mundo estiver desprotegida, todo o mundo estará.

Já os obstáculos são muitos e em múltiplas frentes – a principal delas na abordagem One Health (“Uma Só Saúde”), que promove a cooperação em todos os níveis para enfrentar pandemias, mudanças climáticas e outras ameaças. Isso inclui, por exemplo, melhorar a vigilância sanitária no comércio de produtos agrícolas. Países em desenvolvimento temem que obrigações do gênero possam ser usadas para criar barreiras comerciais, enquanto nações desenvolvidas argumentam que, sem essa abordagem, a OMS pode levar tempo demais para declarar emergências. Há também impasses na transferência de tecnologia, com disputas centradas nos direitos de propriedade intelectual. Outro conflito envolve o acesso rápido a patógenos e suas sequências genéticas, a distribuição facilitada e coordenada de vacinas (uma das máculas da covid-19) e a repartição de benefícios financeiros.

Não são problemas triviais, e só quem enxerga o mundo com lentes binárias achará que a ausência de solução é fruto de mera má vontade dos países ou da maldade congênita de seus representantes. Não é. São desafios que exigem cálculos apurados de custo-benefício e análise de causas e consequências. Por exemplo, mexer nos direitos de patentes pode reduzir o incentivo para o desenvolvimento de vacinas; por outro lado, não interferir pode prejudicar a escala e a equidade da distribuição. Nesses casos, porém, a inação resultará em desproteção do planeta, ampliando riscos já elevados. O tempo é um desses perigos. Quanto mais distantes estivermos da covid-19, mais escassa será a memória e, com efeito, menor será o sentido de urgência e o interesse político. Nada tão humano quanto essa espécie de amnésia coletiva, em que o esquecimento substitui a pressão ante uma emergência.

Aos envolvidos, contudo, resta dizer: os vírus em circulação no planeta e os novos que surgem todos os anos vencerão a batalha contra a humanidade se o isolacionismo e a desconfiança superarem a cooperação. Chegar a um acordo – nesta e em outras agendas que exigem multilateralismo eficaz, como a mudança climática – não é nem jamais será simples. Mas muito mais difícil será se não houver um plano concertado, sobretudo porque a dúvida não é se o mundo enfrentará novas catástrofes no futuro, e sim quando e como. Uma projeção sombria como um alerta para um inadiável despertar.

México dobra aposta no populismo

O Estado de S. Paulo

A violência cresce, a economia desperdiça potencial e as instituições estão sob pressão

Como esperado, Claudia Sheinbaum, a candidata do partido incumbente, o esquerdista Morena, surfou na popularidade do presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) e venceu as eleições no México com uma confortável maioria de 59%. AMLO logrou a redução da pobreza através de transferências de renda e aumentos no salário mínimo. Mas, como toda popularidade conquistada através de políticas populistas, esta tem custos. E tudo indica que Sheinbaum os repassará à população.

Um dos desafios é a criminalidade. A política de segurança de AMLO foi mais de contemporização – para não dizer permissividade – do que de confronto. Em tese, sua proposta é desmilitarizar o país e atacar as raízes do crime impulsionando oportunidades educacionais e econômicas. Na prática, ele fortaleceu a ingerência das Forças Armadas na sociedade, ampliando de riscos de corrupção a abusos dos direitos humanos. Na vigência de sua política de “abraços, não balas”, como criticou cruamente a oposição, os homicídios, roubos e extorsões cresceram.

Nos últimos 15 anos, a economia cresceu em média 2% a 3% ao ano. Em 2023, o México ultrapassou a China como o maior parceiro comercial dos EUA. Mas, em grande parte, esse crescimento se deve a causas externas, e acontece apesar das políticas de AMLO, não por causa delas.

A alavanca principal foi a política dos EUA de aproximação das cadeias de suprimento para se desvincular da China. Houve algum aumento e diversificação do investimento estrangeiro. Mas essas potencialidades estão sendo subaproveitadas por causa das políticas intervencionistas de AMLO.

A infraestrutura é pesadamente controlada pelo Estado. Os investimentos públicos são ineficientes. O setor de energia é especialmente precário. A dívida pública segue uma trajetória insustentável – o déficit chegou a 6% do PIB – e os gastos batem recordes. Tudo isso inibe os investidores internacionais. Assim, o desempenho econômico é razoável, mas poderia ser muito melhor com políticas favoráveis ao livre mercado.

O maior risco é para a jovem democracia pluripartidária. Durante sete décadas, até os anos 2000, o México foi governado por um partido único, o Partido Revolucionário Institucional. A tendência do Morena é reeditar esse monopólio, através de medidas como a concentração de poder no Executivo, alterações no sistema de representação parlamentar, eleições para a Suprema Corte, debilitação das agências reguladoras e assédio à imprensa. Nos seis anos de AMLO, as instituições aparentemente resistiram. Agora, a coalizão liderada pelo Morena terá mais seis anos para corroê-las, com uma maioria simples no Senado e uma maioria qualificada – apta a aprovar mudanças constitucionais – na Câmara.

Se serve de advertência, em 2010 um demagogo altamente popular plantou no governo brasileiro uma “gerentona” que dobrou a aposta na hegemonia partidária e no nacional-desenvolvimentismo. O Brasil conhece os resultados: recessão, corrupção, polarização e degradação institucional. Tudo indica que, mais cedo do que tarde, o México os conhecerá também.

Margem Equatorial, entre receita bilionária e a transição verde

Valor Econômico

A solução precisa ser equilibrada, tendo a ameaça climática mortífera como norte

O governo deve arrecadar R$ 90,3 bilhões neste ano com royalties e participações especiais de petróleo, graças ao aumento da produção e do preço da commodity, 20,4% mais do que os R$ 75 bilhões obtidos em 2023, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). O valor equivale a três vezes a arrecadação esperada neste ano com a reoneração gradual de PIS e Cofins dos combustíveis. Os números expressivos intensificam o desejo pela exploração de novas áreas, como a Margem Equatorial, em meio ao debate a respeito da transição energética e aumento dos desastres climáticos.

Os comandos da Petrobras e do Ministério de Minas e Energia e boa parte de deputados e senadores se alinham desde já pela exploração, inclusive o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues. O presidente Lula pende para a exploração, seguindo sua trajetória ambígua em relação ao combate às mudanças climáticas. Para plateias externas, esse objetivo tem prioridade, mas essa primazia se dilui no plano doméstico. No passado, Lula apoiou a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, contra Marina Silva, hoje de volta ao Ministério do Meio Ambiente, para executar a construção das grandes hidrelétricas na Amazônia.

As receitas do petróleo passaram a ter papel de destaque tanto para amparar as contas públicas como para impulsionar a balança comercial - perdem apenas para a exportação de soja e já ultrapassaram a de minério de ferro. A União fica com a maior parte dos recursos, mas não com tudo - esses volumosos recursos irrigam também os cofres de vários Estados e municípios. Pela legislação, 40% dos royalties são da União, que entrega parcela para a Marinha e para o Ministério de Ciência e Tecnologia. Outros 22,5% são dos Estados produtores e 30%, dos municípios produtores. Os 7,5% restantes são divididos entre os demais Estados e municípios. Já as participações especiais são compensações financeiras extraordinárias pagas por petroleiras pela exploração de campos de petróleo e gás natural com grandes volumes de produção para a União.

Os dados da ANP indicam que a receita com royalties e participações especiais seguirá crescendo nos próximos anos. As projeções apontam um total arrecadado pela União, Estados e municípios com essas participações governamentais de R$ 404,1 bilhões entre 2024 e 2027, 12% acima dos R$ 360,9 bilhões obtidos entre 2019 e 2023. Nos anos recentes, houve um pico de arrecadação em 2022 devido ao aumento do preço do petróleo no mercado internacional, em consequência da invasão da Ucrânia pela Rússia. No ano passado, os preços recuaram, mas o aumento da produção compensou o resultado final.

A Petrobras é uma máquina de bombear dinheiro para o caixa da União, como ficou claro no recente debate a respeito do pagamento de dividendos. Entre 2019 e 2023, a Petrobras transferiu R$ 871,5 bilhões para a União. Desse total, 44%, ou R$ 386 bilhões, foram provenientes de royalties e participações. Outros R$ 370 bilhões foram pagos em tributos variados, e houve R$ 115 bilhões de dividendos.

Especialistas em contas públicas dizem que a receita de royalties e participações especiais é uma das que proporcionam mais flexibilidade de gasto ao governo. Uma parcela de 22% dos royalties deve ir para o Fundo Social, canalizado para Saúde e Educação, entre outros destinos. Entretanto, a destinação de recursos advindos da exploração para adaptação e mitigação climática, assim como transição energética, tem sido pífia até agora (Claudio Angelo, Valor, 24 de maio).

Outra fonte de receita proporcionada pelo petróleo para a União vem dos leilões de exploração. Nas concessões, as empresas que arrematam os blocos para explorar pagam bônus de assinatura, valor baseado na estimativa de geração de recursos. No regime de partilha, adotado para parte do pré-sal, os vencedores de áreas destinam parcela da produção, denominada óleo-lucro, para a União, por meio da estatal Pré-Sal Petróleo (PPSA), que, posteriormente, é vendida em leilões no mercado. Da receita obtida com a comercialização do petróleo, quase 70% são revertidos para a União em tributos, royalties e participações especiais. No entanto, além de volátil, a receita do petróleo é finita. No caso da Petrobras, as projeções indicam que a produção continuará crescendo até 2030, quando deve entrar em declínio.

Grande parte de ambientalistas e cientistas é contra a exploração de petróleo temendo, com razão, afetar uma região de enorme biodiversidade, como a Margem Equatorial. O argumento de governadores e políticos é que há um mar de petróleo, e de dinheiro, que poderia contribuir para melhorar as condições de vida da população pobre, o que também é verdade. Tecnicamente, a decisão está nas mãos do Ibama, e a tendência é a de veto. Mas há um coro para que a decisão seja política, feita pelo presidente da República.

Não fará sentido abdicar totalmente da exploração se não houver energia alternativa substituta, assim como explorar os recursos apenas para aumentar exportações de um combustível nocivo e condenado. A solução precisa ser equilibrada, tendo a ameaça climática mortífera como norte.

Sheinbaum e mais mulheres na política

Correio Braziliense

Se nada mudar, quando Sheinbaum for empossada, em 1º de outubro, dos 20 países latinos, apenas dois — o equivalente a 10% — estarão sob o comando de mulheres eleitas pela população

Eleita, no último domingo, presidente do México, Claudia Sheinbaum se torna a primeira mulher na Presidência do país e a oitava na América Latina a assumir o posto. Antes, pleitos na Argentina, no Brasil, no Chile, na Costa Rica, em Honduras, na Nicarágua e no Panamá tiveram o mesmo resultado, também de forma pioneira. Uma das escolhidas, Xiomara Castro é presidente hondurenha desde 2022. Se nada mudar, quando Sheinbaum for empossada, em 1º de outubro, dos 20 países latinos, apenas dois — o equivalente a 10% — estarão sob o comando de mulheres eleitas pela população.

A representatividade é pequena e reflete um desafio histórico para além da região. Levantamento divulgado, no ano passado, pela União Parlamentar Internacional mostra que há uma sub-representação crônica nas lideranças governamentais pelo mundo, embora tenha havido um avanço de 2013 a 2023. Há pouco mais de 10 anos, elas ocupavam 5,3% dos cargos de chefe de Estado. Em 2023, o número subiu para 11% — ou seja, de cada 10 países que não são monarquias, um tinha uma mulher no comando. Nessa mesma década, não necessariamente no mesmo período, cinco das sete mulheres eleitas na América Latina estiveram na Presidência: Michelle Bachelet (Chile), Cristina Kirchner (Argentina), Laura Chinchilla (Costa Rica), Dilma Rousseff (Brasil) e Xiomara Castro.

À época da divulgação do relatório, a diretora-executiva da ONU Mulheres, Sima Bahous, enfatizou que o aumento da participação feminina nos processos decisórios é fundamental para a democracia plena, mas a violência política e a de gênero as desencoraja a encabeçar esse processo.

A futura presidente do México, aliás, venceu o pleito mais violento do país — 38 candidatos foram assassinados ao longo da campanha eleitoral — e terá, entre os principais desafios, o aumento do narcotráfico e do feminicídio. Dados oficiais indicam que, no ano passado, ocorreram, em média, 10 assassinatos de mulheres por dia no país.

Com população maior e média de feminicídio menor — quatro casos oficiais por dia em 2023, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública —, o Brasil também tem a violência de gênero como um dos principais empecilhos à participação feminina na política. De agosto de 2021 — quando a violência política contra a mulher passou a ser tipificada como crime — até dezembro de 2022, somente o Ministério Público Federal contabilizou 112 procedimentos relacionados ao tema — o equivalente a sete casos a cada 30 dias.

O crime consiste em ações para excluir ou dificultar a participação de mulheres em espaço público no processo eleitoral ou durante o mandato. A proximidade das eleições municipais acende o alerta em relação ao aumento de ações para ofuscar a presença feminina na política. Desta vez, despertam as expectativas para que artimanhas adotadas por partidos políticos para dificultar esse processo sejam punidas.

Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no pleito de 2020, apenas 11,9% dos municípios brasileiros elegeram prefeitas e 17% não escolheram nenhuma vereadora. Na tentativa de mudar o cenário, o tribunal lançou, em maio, uma campanha com o slogan "Mulher na política é outra história". Que essa outra história seja em direção ao movimento, ainda que tímido, de melhor representatividade política no Brasil, em seus vizinhos e no resto do mundo. E que essas novas composições representem, de fato, fortalecimento da perspectiva feminina nas decisões tomadas na esfera publica.


 

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