Greve nas federais passou do limite
O Globo
Depois de dois meses, universidades perdem
prestígio e competitividade, enquanto alunos são quem mais sofre
A greve de professores e servidores de
colégios, institutos e universidades federais completou dois meses sem nenhuma
perspectiva de solução. Alunos que perdem aula já veem ameaçadas formatura,
obtenção do diploma e a chance de conseguir emprego. Além deles, ninguém parece
preocupado. E o governo não tem feito o bastante.
Estima-se que hoje a paralisação afete, em diferentes estados, pelo menos 52 universidades, 79 institutos federais e 14 unidades do Colégio Pedro II. Embora a adesão à greve não seja total, a rotina universitária está irremediavelmente comprometida. Serviços foram suspensos e há casos em que o bandejão deixou de funcionar, prejudicando estudantes mais vulneráveis.
O caráter político da greve é indisfarçável.
Na pauta de reivindicações, que inclui reajuste salarial, reestruturação de
carreira e recomposição orçamentária das universidades, entrou até a revogação
da reforma do ensino médio. Alheios à angústia dos estudantes, dois grupos de
associações docentes duelam pelo protagonismo: o Andes e o Proifes. Nenhum
deles com legitimidade plena para representar os professores federais.
No meio da contenda, o governo se mostra
perdido. Várias propostas de negociação foram rechaçadas pelos grevistas, que
exigem reajuste neste ano, enquanto o governo acena com aumento escalonado a
partir do ano que vem. No fim do mês passado, o Ministério da Gestão assinou
acordo com o Proifes para pôr fim à paralisação. Foi uma oferta generosa, que
ia além de repor as perdas recentes. Mas não foi o bastante para o Andes, que
conseguiu derrubar o acordo na Justiça. Na prática, nem precisaria, uma vez que,
apesar do acordo, a greve oportunista continuava em vários locais.
Para o governo e para os grevistas parece
estar tudo bem. Não está. É um absurdo que universidades fiquem paradas total
ou parcialmente durante dois meses. Elas são centros de ensino e pesquisa
mantidos com dinheiro do contribuinte. E precisam dar retorno à sociedade. Que
retorno pode existir com portas fechadas? Os grevistas reivindicam um acréscimo
de R$ 2,5 bilhões além do orçamento de R$ 6,2 bilhões destinado às federais.
Por mais que tenha havido esvaziamento de recursos nos últimos anos, o país não
pode olhar apenas para o ensino superior. Há carências sérias na base.
É hora de discutir ganhos de produtividade e
outras fontes de renda. Por que não cobrar dos alunos que podem pagar,
financiando apenas quem precisa? Por que não adotar práticas de gestão mais
modernas, otimizar a administração e reduzir a burocracia infernal que penaliza
alunos, professores e a sociedade? Por que não firmar mais acordos com a
iniciativa privada para buscar dinheiro onde existe em vez de disputar recursos
minguados num Estado em crise fiscal crônica?
Fazer greve por tempo indeterminado parece
confortável. Nada acontecerá com quem aderiu. Continuará recebendo seus
salários em dia. No que depender deste governo, não haverá corte do ponto, nem
avaliação de desempenho. Para os alunos, porém, o prejuízo aumenta a cada dia.
Muitos nem conseguiram recuperar as perdas da pandemia e já enfrentarão outro
desafio. Greves oportunistas destroem também as próprias universidades, que
perdem competitividade e prestígio. Uma universidade desvalorizada não
interessa a ninguém.
Senado precisa derrubar ‘jabuti’ que cria
protecionismo no setor de petróleo
O Globo
Dispositivo em lei de incentivo a carros
verdes impõe reserva de mercado que afugentará os investidores de leilões
No texto que renova o programa Mobilidade
Verde e Inovação (Mover), destinado a incentivar a indústria automobilística a
produzir veículos menos poluentes, a Câmara inseriu dois “jabutis” sem relação
com o conteúdo original. O primeiro estabelece uma taxa de 20% sobre
importações de até US$ 50, hoje isentas. O segundo gerou menos controvérsia,
mas terá efeito mais nocivo caso seja mantido na votação do Senado prevista
para hoje. Trata-se da exigência de conteúdo nacional mínimo em equipamentos
usados na exploração e na produção de petróleo.
É longa a experiência fracassada do Brasil
com o protecionismo nas mais variadas áreas. Nenhuma proteção deveria ser
estabelecida sem que haja prazo de validade, objetivo mensurável e avaliações
periódicas de resultado. “Políticas protecionistas, como reserva de mercado,
são eficazes somente quando são temporárias, com estímulo a exportações,
agregando competências tecnológicas e prevendo concorrência acirrada entre as
empresas beneficiadas”, afirmou em nota Telmo Ghiorzi, presidente executivo da
Associação Brasileira das empresas de Bens e Serviços de Petróleo (Abespetro).
Do contrário, a conta do protecionismo sempre fica para o consumidor, obrigado
a consumir produtos mais caros.
O “jabuti” aprovado na Câmara estipula que,
em projetos regidos pelo regime de partilha (em vigor para o pré-sal), pelo
menos 20% do investimento na exploração e 30% na construção de poços devem ser
contratados de fornecedores locais. No projetos de concessão, essa parcela pode
subir a até 50%. Até o vice-presidente Geraldo Alckmin, recentemente convertido
em defensor ferrenho de incentivos à indústria nacional, se manifestou contra
fixar percentuais em lei. No caso do petróleo, já há parâmetros para conteúdo
nacional, fixados pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e pela
Agência Nacional do Petróleo (ANP). Não tem mesmo cabimento gravar na lei esse
tipo de exigência.
Se a manobra for aceita pelo Senado, as
autoridades reguladoras perderão a flexibilidade para fixar esses percentuais
caso a caso, como têm feito com êxito desde 2017, dependendo das
características geológicas, da profundidade da exploração e da capacidade
efetiva da indústria nacional de fornecer equipamentos de boa qualidade nos
prazos exigidos pelas petroleiras. Foi necessário relaxar essas normas sobre
conteúdo nacional para atrair mais empresas aos leilões de exploração. Agora, o
Brasil corre o risco de voltar a afastar as grandes petroleiras privadas, sem
as quais o pré-sal não teria se tornado responsável por 3 milhões dos 4,3
milhões de barris produzidos todo dia no país.
Não será com uma política rígida de exigência
de conteúdo nacional que o Brasil evitará o esgotamento crescente das reservas
do pré-sal ou se preparará para a necessária transição energética para além do
petróleo. Se o Senado não derrubar o “jabuti” extemporâneo, o país sofrerá
grande retrocesso na atração de investimentos externos na exploração de
petróleo, quando mais precisa deles.
Emergentes põem populismos à prova
Folha de S. Paulo
Eleições em Índia, México e África do Sul
testam regimes que tensionam instituições, mas ainda respeitam a democracia
Em um agitado fim de semana no mundo
democrático, três grandes países finalizaram seus processos eleitorais. Os
governos populistas de Índia, México e África do Sul foram
colocados à prova nas urnas.
Em comum, tais nações frequentam desde os
anos 1990 o escaninho das emergentes —uma designação cujo sentido remonta mais
à conveniência dos mercados para categorizar alvos de investimentos do que ao
pertencimento a um movimento comum.
Indianos e sul-africanos, de todo modo, têm
suas iniciais no acrônimo do bloco que ganhou notoriedade no grupo, o Brics,
assim como Brasil, China e Rússia. Hoje, há poucos
países mais diferentes entre si do que os parceiros da entidade.
O trio que foi à urnas —dois deles em
processos parlamentares e o México numa tradicional eleição presidencial—
chegou a 2024 unido sob o signo do populismo. Não das variantes da direita
trumpista ou bolsonarista, porém respeitando peculiaridades políticas.
Completando dez anos no poder, Narendra Modi
transformou a Índia surfando uma onda econômica e demográfica. É um país com
níveis abissais de miséria, mas há obras de infraestrutura por todo lado e
previsões talvez otimistas sobre uma prosperidade futura.
O pedágio veio na forma de um radicalismo
religioso que explodiu na campanha. A grande maioria obtida no Parlamento
mostra que os 80% de hinduístas do país estão satisfeitos com tal virulência
contra os 200 milhões de muçulmanos, o que lança sombras sobre o futuro.
No México, o populismo triunfou, mas num
cenário mais desafiador. Os eleitores ratificaram a ungida por Andrés Manuel
López Obrador para sucedê-lo, Claudia Sheinbaum, a
primeira mulher a chegar a Presidência do país.
AMLO,
como o líder é conhecido, levou a esquerda ao poder há seis anos e implantou um
grande programa assistencialista de resultados mistos e solvência incerta.
O México é um os países mais violentos do
mundo, devido ao narcotráfico, e busca fortalecer relações econômicas com os
EUA. Uma eventual volta de Donald Trump e sua xenofobia à Casa Branca pode
acirrar ainda mais as tensões.
Na África do Sul, o Congresso Nacional
Africano (CNA) não alcançou os 50% do Legislativo necessários para governar e
indicar o presidente. Assim, pela primeira vez perdeu a hegemonia conquistada
em 1994, quando encerrou o regime racista do apartheid com a eleição de Nelson
Mandela.
O atual presidente, Cyril Ramaphosa, nem é
tão caricato como o antecessor, Jacob Zuma, e à sua falta de carisma foi
atribuído o fracasso nas eleições. Por legar um país em crise e com níveis
inaceitáveis de violência, agora o CNA
terá de aceitar uma coalizão.
Os três pleitos revelam fossos entre países
que já foram considerados pares. A boa notícia é que, mesmo sob a tensão
institucional típica do populismo, eles por ora seguem aderentes ao sistema de
freios e contrapesos das democracias.
Cores democráticas
Folha de S. Paulo
Parada LGBTQIA+ mostra que verde e amarelo
não são exclusivos do bolsonarismo
Neste ano, a parada LGBTQIA+, realizada
em São Paulo desde
1997, ganhou um colorido diferente. Do arco-íris que simboliza a diversidade de
gênero e orientações sexuais, as cores
verde e amarela saltaram para a avenida Paulista sob a forma de
adereços e da camisa da seleção brasileira de futebol.
Milhares de pessoas responderam ao convite
dos organizadores e de personalidades ligadas ao movimento, atendendo a um
propósito de fundo político: retirar do bolsonarismo a apropriação das
tradicionais cores brasileiras.
Como se sabe, com os motes de "nossa
bandeira não é vermelha" e "Brasil acima de tudo", a direita
populista adotou nos últimos anos o uniforme que se transformou em imagem
internacional do país.
O nacionalismo cultivado por Jair
Bolsonaro (PL) tem raízes na ditadura
militar, que tentou capitalizar a conquista da Copa de 1970 como um
feito do regime, insuflando um tipo de patriotismo ufanista e incondicional
resumido no slogan "Brasil, ame-o ou deixe-o".
O embaraço de alguns setores da esquerda em
comemorar abertamente a vitória naquele torneio de certa forma se repetiu em
anos recentes. Em que pesem tentativas de recuperar as cores nacionais, o fato
é que o verde e amarelo e a camisa da seleção permaneceram como representação
cromática predominante nos atos pró-Bolsonaro.
O estopim da novidade foi o show da Madonna em
Copacabana, no início de maio. A cantora, que sempre desafiou as visões mais
rígidas contra a diversidade de gênero, levou ao palco uma bateria de escola de
samba e fez dupla vestida de verde e amarelo com a brasileira Pabllo Vittar —também uma
das atrações do domingo na Paulista.
É significativo que a tentativa mais bem-sucedida de quebrar tal polarização tenha surgido agora sob a liderança do movimento LGBTQIA+, numa festa marcada por alegria e ousadia democrática.
O espírito da PM de Tarcísio
O Estado de S. Paulo
Ao submeter a segurança da população à ideia
de que policiais não devem ser ‘vigiados’, governador ignora um princípio
básico da cidadania e flerta com a banda truculenta da força estatal
O governador Tarcísio de Freitas
(Republicanos) não poderia ter deixado mais claro que sua antipatia pela
instalação de câmeras no fardamento da Polícia Militar (PM) de São Paulo parte
de uma incompreensão primordial dessa bem sucedida política de segurança. Na
quarta-feira passada, durante o ato de assinatura do contrato do Trem
Intercidades, em Campinas, Tarcísio afirmou que quer “uma população segura, e
não um policial vigiado”, como se estivesse tratando de noções antitéticas. Na
verdade, eis o erro fundamental, uma coisa e outra são conexas.
Mais bem dito: para o governador do Estado,
como pode ser facilmente depreendido de sua fala cristalina, tão mais seguros
estarão os cidadãos paulistas quanto menos houver fiscalização da atividade
policial. Ora, o olhar vigilante da sociedade sobre todo e qualquer servidor
investido do múnus público é um princípio básico da cidadania. É desse tipo de
vigilância, afinal, que se está tratando, e não de um escrutínio da força
estatal por quem não tem legitimidade para exercê-lo – como os criminosos, por
óbvio.
Ademais, a devida fiscalização dos agentes
treinados e armados pelo Estado para exercer o monopólio da violência em seu
nome, seja por meio das corregedorias das corporações, seja pelo Ministério
Público e, por fim, pelo Poder Judiciário, é um atributo comezinho de qualquer
governo inspirado por princípios democráticos e orientado genuinamente por
valores universais, como o respeito aos direitos humanos.
A violência praticada por policiais no
exercício de suas atribuições é um meio legítimo de imposição da ordem pública
desde que circunscrita às balizas das leis e da Constituição. Nesse sentido, as
câmeras corporais, como já está sobejamente demonstrado, não apenas protegem os
cidadãos – inclusive os criminosos – do emprego de força abusiva por agentes do
Estado, como serve de robusto meio de prova para proteção jurídica dos próprios
policiais.
Portanto, ao submeter a segurança da
população paulista à ideia segundo a qual os policiais não devem ser
“vigiados”, Tarcísio ignora um princípio elementar da cidadania e, como se isso
não bastasse, ainda flerta com a banda truculenta das forças sob seu comando.
Como parece razoável supor para qualquer cidadão sensato, só quem tem a ganhar
com o fim do programa de câmeras na PM ou com o enfraquecimento dessa política
pública de resultados comprovadamente satisfatórios são os maus policiais, que
preferem operar nas sombras, ao abrigo de qualquer investigação de suas ações
em serviço.
Como é notório, desde o início do governo de
Tarcísio de Freitas houve uma perceptível deterioração do espírito, digamos
assim, orientador da PM. Por muitos anos conhecida como a mais bem preparada e
equipada força policial do País, contribuindo, ao lado da Polícia Civil, para a
redução progressiva dos indicadores de violência no Estado, a PM se notabilizou
nos últimos dois anos por uma inflexão, vale dizer, pelo aumento das mortes
causadas por intervenção policial e da truculência de suas intervenções.
Aí estão, entre outros exemplos
estarrecedores, os casos de repressão violenta aos protestos de estudantes na
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – contra a aprovação do projeto
de lei que instituiu as escolas cívico-militares – e na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco, durante a posse do novo
procurador-geral de Justiça do Estado. Um policial chegou a rir enquanto batia
nos jovens. São práticas inaceitáveis para um governo que se diz democrático.
A seguir por esse mau caminho, Tarcísio
levará a população a sentir medo sempre que vir uma patrulha policial. O
combate ao crime não implica, necessariamente, força bruta, por mais que isso
excite eleitores explorados em seu justo sentimento de impotência diante de
casos de violência. O bom combate deriva do aprimoramento técnico contínuo das
polícias, da difusão de noções de cidadania, da repressão aos maus policiais e
da valorização dos que atuam dentro da lei. Não é pedir muito.
O despertar adiado
O Estado de S. Paulo
Ao prorrogar prazo para definir plano global
contra pandemias, países-membros da OMS ampliam o risco: quanto mais longe da
covid-19, menos preparados estaremos contra nova catástrofe
Confirmou-se o que se avizinhava, e os 194
países que integram a Organização Mundial da Saúde (OMS) terão um ano para
concluir o que não conseguiram fazer em mais de dois anos: aprovar um acordo de
prevenção contra futuras pandemias. Em 2021, ainda em meio aos milhões de
mortos deixados pela covid-19, as nações concordaram em preparar um ambicioso
plano global para enfrentar ameaças futuras – algum patógeno desconhecido e
possivelmente mais contagioso, mortífero e resiliente que o coronavírus. Em
abril, após nove rodadas de negociações, a conclusão se mostrava difícil (ver o
editorial A próxima pandemia vem aí, de 8/4). Agora os prognósticos se
consumaram, com os países jogando a solução para o “prazo máximo de um ano”. O
comunicado deu ênfase ao futuro, mas no fundo se trata de uma pá de cal sobre o
passado de 30 meses de esforço. Um revés a um só tempo incompatível com o
gigantismo da necessidade global e compatível com o tamanho dos obstáculos,
muitos dos quais difíceis de superar.
A necessidade vem das lições deixadas pela
covid-19, em que se viu falta de preparação, coordenação e solidariedade.
Constatou-se ali que, além do conhecimento científico, a cooperação é o melhor
antídoto contra epidemias. Apesar de ciclos horrendos, como aids, ebola e
covid-19, no século 21 as epidemias passaram a matar numa proporção muito menor
de humanos do que em qualquer outro período da história – passando pela Peste
Negra no século 14 e o surto mortal de gripe do início do século 20. De lá para
cá, a humanidade se tornou mais vulnerável a epidemias, e hoje um vírus pode
viajar entre a Ásia, a Europa e as Américas em menos de 24 horas. Em
compensação, ainda que tais surtos sejam proporcionalmente menos mortais, o
fato é que patógenos infecciosos não conhecem fronteiras nem distinguem
classes, e, se uma parte do mundo estiver desprotegida, todo o mundo estará.
Já os obstáculos são muitos e em múltiplas
frentes – a principal delas na abordagem One Health (“Uma Só Saúde”), que
promove a cooperação em todos os níveis para enfrentar pandemias, mudanças
climáticas e outras ameaças. Isso inclui, por exemplo, melhorar a vigilância
sanitária no comércio de produtos agrícolas. Países em desenvolvimento temem
que obrigações do gênero possam ser usadas para criar barreiras comerciais,
enquanto nações desenvolvidas argumentam que, sem essa abordagem, a OMS pode
levar tempo demais para declarar emergências. Há também impasses na
transferência de tecnologia, com disputas centradas nos direitos de propriedade
intelectual. Outro conflito envolve o acesso rápido a patógenos e suas
sequências genéticas, a distribuição facilitada e coordenada de vacinas (uma
das máculas da covid-19) e a repartição de benefícios financeiros.
Não são problemas triviais, e só quem enxerga
o mundo com lentes binárias achará que a ausência de solução é fruto de mera má
vontade dos países ou da maldade congênita de seus representantes. Não é. São
desafios que exigem cálculos apurados de custo-benefício e análise de causas e
consequências. Por exemplo, mexer nos direitos de patentes pode reduzir o
incentivo para o desenvolvimento de vacinas; por outro lado, não interferir
pode prejudicar a escala e a equidade da distribuição. Nesses casos, porém, a inação
resultará em desproteção do planeta, ampliando riscos já elevados. O tempo é um
desses perigos. Quanto mais distantes estivermos da covid-19, mais escassa será
a memória e, com efeito, menor será o sentido de urgência e o interesse
político. Nada tão humano quanto essa espécie de amnésia coletiva, em que o
esquecimento substitui a pressão ante uma emergência.
Aos envolvidos, contudo, resta dizer: os
vírus em circulação no planeta e os novos que surgem todos os anos vencerão a
batalha contra a humanidade se o isolacionismo e a desconfiança superarem a
cooperação. Chegar a um acordo – nesta e em outras agendas que exigem
multilateralismo eficaz, como a mudança climática – não é nem jamais será
simples. Mas muito mais difícil será se não houver um plano concertado,
sobretudo porque a dúvida não é se o mundo enfrentará novas catástrofes no
futuro, e sim quando e como. Uma projeção sombria como um alerta para um
inadiável despertar.
México dobra aposta no populismo
O Estado de S. Paulo
A violência cresce, a economia desperdiça
potencial e as instituições estão sob pressão
Como esperado, Claudia Sheinbaum, a candidata
do partido incumbente, o esquerdista Morena, surfou na popularidade do
presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) e venceu as eleições no México
com uma confortável maioria de 59%. AMLO logrou a redução da pobreza através de
transferências de renda e aumentos no salário mínimo. Mas, como toda
popularidade conquistada através de políticas populistas, esta tem custos. E
tudo indica que Sheinbaum os repassará à população.
Um dos desafios é a criminalidade. A política
de segurança de AMLO foi mais de contemporização – para não dizer
permissividade – do que de confronto. Em tese, sua proposta é desmilitarizar o
país e atacar as raízes do crime impulsionando oportunidades educacionais e
econômicas. Na prática, ele fortaleceu a ingerência das Forças Armadas na
sociedade, ampliando de riscos de corrupção a abusos dos direitos humanos. Na
vigência de sua política de “abraços, não balas”, como criticou cruamente a
oposição, os homicídios, roubos e extorsões cresceram.
Nos últimos 15 anos, a economia cresceu em
média 2% a 3% ao ano. Em 2023, o México ultrapassou a China como o maior
parceiro comercial dos EUA. Mas, em grande parte, esse crescimento se deve a
causas externas, e acontece apesar das políticas de AMLO, não por causa delas.
A alavanca principal foi a política dos EUA
de aproximação das cadeias de suprimento para se desvincular da China. Houve
algum aumento e diversificação do investimento estrangeiro. Mas essas
potencialidades estão sendo subaproveitadas por causa das políticas
intervencionistas de AMLO.
A infraestrutura é pesadamente controlada
pelo Estado. Os investimentos públicos são ineficientes. O setor de energia é
especialmente precário. A dívida pública segue uma trajetória insustentável – o
déficit chegou a 6% do PIB – e os gastos batem recordes. Tudo isso inibe os
investidores internacionais. Assim, o desempenho econômico é razoável, mas
poderia ser muito melhor com políticas favoráveis ao livre mercado.
O maior risco é para a jovem democracia
pluripartidária. Durante sete décadas, até os anos 2000, o México foi governado
por um partido único, o Partido Revolucionário Institucional. A tendência do
Morena é reeditar esse monopólio, através de medidas como a concentração de
poder no Executivo, alterações no sistema de representação parlamentar,
eleições para a Suprema Corte, debilitação das agências reguladoras e assédio à
imprensa. Nos seis anos de AMLO, as instituições aparentemente resistiram.
Agora, a coalizão liderada pelo Morena terá mais seis anos para corroê-las, com
uma maioria simples no Senado e uma maioria qualificada – apta a aprovar
mudanças constitucionais – na Câmara.
Se serve de advertência, em 2010 um demagogo altamente popular plantou no governo brasileiro uma “gerentona” que dobrou a aposta na hegemonia partidária e no nacional-desenvolvimentismo. O Brasil conhece os resultados: recessão, corrupção, polarização e degradação institucional. Tudo indica que, mais cedo do que tarde, o México os conhecerá também.
Margem Equatorial, entre receita bilionária e
a transição verde
Valor Econômico
A solução precisa ser equilibrada, tendo a ameaça climática mortífera como norte
O governo deve arrecadar R$ 90,3 bilhões
neste ano com royalties e participações especiais de petróleo, graças ao
aumento da produção e do preço da commodity, 20,4% mais do que os R$ 75 bilhões
obtidos em 2023, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e
Biocombustíveis (ANP). O valor equivale a três vezes a arrecadação esperada
neste ano com a reoneração gradual de PIS e Cofins dos combustíveis. Os números
expressivos intensificam o desejo pela exploração de novas áreas, como a Margem
Equatorial, em meio ao debate a respeito da transição energética e aumento dos
desastres climáticos.
Os comandos da Petrobras e do Ministério de
Minas e Energia e boa parte de deputados e senadores se alinham desde já pela
exploração, inclusive o líder do governo no Congresso, senador Randolfe
Rodrigues. O presidente Lula pende para a exploração, seguindo sua trajetória
ambígua em relação ao combate às mudanças climáticas. Para plateias externas,
esse objetivo tem prioridade, mas essa primazia se dilui no plano doméstico. No
passado, Lula apoiou a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, contra Marina
Silva, hoje de volta ao Ministério do Meio Ambiente, para executar a construção
das grandes hidrelétricas na Amazônia.
As receitas do petróleo passaram a ter papel
de destaque tanto para amparar as contas públicas como para impulsionar a
balança comercial - perdem apenas para a exportação de soja e já ultrapassaram
a de minério de ferro. A União fica com a maior parte dos recursos, mas não com
tudo - esses volumosos recursos irrigam também os cofres de vários Estados e
municípios. Pela legislação, 40% dos royalties são da União, que entrega
parcela para a Marinha e para o Ministério de Ciência e Tecnologia. Outros
22,5% são dos Estados produtores e 30%, dos municípios produtores. Os 7,5%
restantes são divididos entre os demais Estados e municípios. Já as
participações especiais são compensações financeiras extraordinárias pagas por
petroleiras pela exploração de campos de petróleo e gás natural com grandes
volumes de produção para a União.
Os dados da ANP indicam que a receita com
royalties e participações especiais seguirá crescendo nos próximos anos. As
projeções apontam um total arrecadado pela União, Estados e municípios com
essas participações governamentais de R$ 404,1 bilhões entre 2024 e 2027, 12%
acima dos R$ 360,9 bilhões obtidos entre 2019 e 2023. Nos anos recentes, houve
um pico de arrecadação em 2022 devido ao aumento do preço do petróleo no
mercado internacional, em consequência da invasão da Ucrânia pela Rússia. No
ano passado, os preços recuaram, mas o aumento da produção compensou o
resultado final.
A Petrobras é uma máquina de bombear dinheiro
para o caixa da União, como ficou claro no recente debate a respeito do
pagamento de dividendos. Entre 2019 e 2023, a Petrobras transferiu R$ 871,5
bilhões para a União. Desse total, 44%, ou R$ 386 bilhões, foram provenientes
de royalties e participações. Outros R$ 370 bilhões foram pagos em tributos
variados, e houve R$ 115 bilhões de dividendos.
Especialistas em contas públicas dizem que a
receita de royalties e participações especiais é uma das que proporcionam mais
flexibilidade de gasto ao governo. Uma parcela de 22% dos royalties deve ir
para o Fundo Social, canalizado para Saúde e Educação, entre outros destinos.
Entretanto, a destinação de recursos advindos da exploração para adaptação e
mitigação climática, assim como transição energética, tem sido pífia até agora
(Claudio Angelo, Valor, 24 de maio).
Outra fonte de receita proporcionada pelo
petróleo para a União vem dos leilões de exploração. Nas concessões, as
empresas que arrematam os blocos para explorar pagam bônus de assinatura, valor
baseado na estimativa de geração de recursos. No regime de partilha, adotado
para parte do pré-sal, os vencedores de áreas destinam parcela da produção,
denominada óleo-lucro, para a União, por meio da estatal Pré-Sal Petróleo
(PPSA), que, posteriormente, é vendida em leilões no mercado. Da receita obtida
com a comercialização do petróleo, quase 70% são revertidos para a União em
tributos, royalties e participações especiais. No entanto, além de volátil, a
receita do petróleo é finita. No caso da Petrobras, as projeções indicam que a
produção continuará crescendo até 2030, quando deve entrar em declínio.
Grande parte de ambientalistas e cientistas é
contra a exploração de petróleo temendo, com razão, afetar uma região de enorme
biodiversidade, como a Margem Equatorial. O argumento de governadores e
políticos é que há um mar de petróleo, e de dinheiro, que poderia contribuir
para melhorar as condições de vida da população pobre, o que também é verdade.
Tecnicamente, a decisão está nas mãos do Ibama, e a tendência é a de veto. Mas
há um coro para que a decisão seja política, feita pelo presidente da República.
Não fará sentido abdicar totalmente da
exploração se não houver energia alternativa substituta, assim como explorar os
recursos apenas para aumentar exportações de um combustível nocivo e condenado.
A solução precisa ser equilibrada, tendo a ameaça climática mortífera como
norte.
Sheinbaum e mais mulheres na política
Correio Braziliense
Se nada mudar, quando Sheinbaum for
empossada, em 1º de outubro, dos 20 países latinos, apenas dois — o equivalente
a 10% — estarão sob o comando de mulheres eleitas pela população
Eleita, no último domingo, presidente do
México, Claudia Sheinbaum se torna a primeira mulher na Presidência do país e a
oitava na América Latina a assumir o posto. Antes, pleitos na Argentina, no
Brasil, no Chile, na Costa Rica, em Honduras, na Nicarágua e no Panamá tiveram
o mesmo resultado, também de forma pioneira. Uma das escolhidas, Xiomara Castro
é presidente hondurenha desde 2022. Se nada mudar, quando Sheinbaum for
empossada, em 1º de outubro, dos 20 países latinos, apenas dois — o equivalente
a 10% — estarão sob o comando de mulheres eleitas pela população.
A representatividade é pequena e reflete um
desafio histórico para além da região. Levantamento divulgado, no ano passado,
pela União Parlamentar Internacional mostra que há uma sub-representação
crônica nas lideranças governamentais pelo mundo, embora tenha havido um avanço
de 2013 a 2023. Há pouco mais de 10 anos, elas ocupavam 5,3% dos cargos de
chefe de Estado. Em 2023, o número subiu para 11% — ou seja, de cada 10 países
que não são monarquias, um tinha uma mulher no comando. Nessa mesma década, não
necessariamente no mesmo período, cinco das sete mulheres eleitas na América
Latina estiveram na Presidência: Michelle Bachelet (Chile), Cristina Kirchner
(Argentina), Laura Chinchilla (Costa Rica), Dilma Rousseff (Brasil) e Xiomara
Castro.
À época da divulgação do relatório, a
diretora-executiva da ONU Mulheres, Sima Bahous, enfatizou que o aumento da
participação feminina nos processos decisórios é fundamental para a democracia
plena, mas a violência política e a de gênero as desencoraja a encabeçar esse
processo.
A futura presidente do México, aliás, venceu
o pleito mais violento do país — 38 candidatos foram assassinados ao longo da
campanha eleitoral — e terá, entre os principais desafios, o aumento do
narcotráfico e do feminicídio. Dados oficiais indicam que, no ano passado,
ocorreram, em média, 10 assassinatos de mulheres por dia no país.
Com população maior e média de feminicídio
menor — quatro casos oficiais por dia em 2023, segundo dados do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública —, o Brasil também tem a violência de gênero
como um dos principais empecilhos à participação feminina na política. De
agosto de 2021 — quando a violência política contra a mulher passou a ser
tipificada como crime — até dezembro de 2022, somente o Ministério Público
Federal contabilizou 112 procedimentos relacionados ao tema — o equivalente a
sete casos a cada 30 dias.
O crime consiste em ações para excluir ou
dificultar a participação de mulheres em espaço público no processo eleitoral
ou durante o mandato. A proximidade das eleições municipais acende o alerta em
relação ao aumento de ações para ofuscar a presença feminina na política. Desta
vez, despertam as expectativas para que artimanhas adotadas por partidos
políticos para dificultar esse processo sejam punidas.
Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no pleito de 2020, apenas 11,9% dos municípios brasileiros elegeram prefeitas e 17% não escolheram nenhuma vereadora. Na tentativa de mudar o cenário, o tribunal lançou, em maio, uma campanha com o slogan "Mulher na política é outra história". Que essa outra história seja em direção ao movimento, ainda que tímido, de melhor representatividade política no Brasil, em seus vizinhos e no resto do mundo. E que essas novas composições representem, de fato, fortalecimento da perspectiva feminina nas decisões tomadas na esfera publica.
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