sábado, 25 de janeiro de 2025

Perdemos o sentido de proporção – Pablo Ortellado

O Globo

O vocabulário político está viciado. Não conseguimos mais falar das coisas com sentido de proporção. Comportamentos não são mais machistas ou racistas, mas misóginos e supremacistas. As posições não são mais de esquerda ou de direita, mas sempre de extrema direita — quando referidas pela esquerda — ou de extrema esquerda — quando referidas pela direita. Ações voluntárias e involuntárias foram equiparadas, e a intenção e a boa-fé deixaram de valer como atenuantes. Todo comportamento que pode ser condenado precisa ser condenado nos mais duros termos. O resultado político é a intolerância e a incapacidade de convívio.

Antes, o termo machismo era usado para designar comportamentos discriminatórios que promoviam a superioridade dos homens sobre as mulheres, e misoginia era um termo incomum, usado excepcionalmente para se referir a uma hostilidade extrema e patológica às mulheres. Hoje se tornaram intercambiáveis, e há predomínio do termo mais forte sobre o mais fraco.

Uma pesquisa no Google Trends mostra que, nos anos 2000, o termo machismo era 14 vezes mais recorrente que misoginia. Essa relação começou a mudar nos anos 2010 e se inverteu nos anos 2020. No último ano, misoginia foi 50% mais recorrente que machismo. O termo que descreve o comportamento mais extremo e patológico tornou-se mais frequente do que o usado para designar atitudes preconceituosas mais comuns.

Outra mudança importante é a disseminação das críticas às discriminações estruturais e implícitas. Em 1967, o ativista americano do movimento negro Stokely Carmichael cunhou o termo “racismo institucional” para se referir aos efeitos discriminatórios de políticas públicas — efeitos que não recebiam o mesmo grau de atenção e condenação do que atos abertamente discriminatórios de grupos abertamente racistas:

— Quando terroristas brancos bombardeiam uma igreja negra e matam cinco crianças negras, isso é um ato de racismo individual. Quando, porém, na mesma cidade de Birmingham, Alabama, 500 bebês negros morrem a cada ano devido à falta de alimento, abrigo e instalações médicas adequadas, isso é função do racismo institucional.

Em 2013, no livro “Ponto cego”, Mahzarin R. Banaji e Anthony Greenwald mostraram a prevalência de vieses raciais implícitos, comportamentos racistas involuntários. Definiram o viés implícito como “conhecimento associativo de que podemos não ter consciência. Por exemplo, alguém pode explicitamente sustentar crenças igualitárias e, ao mesmo tempo, fazer associações automáticas, como associar ‘negro’ a ‘desagradável’, que não são conscientemente reconhecidas. Esses vieses implícitos frequentemente se dissociam de atitudes reflexivas ou explícitas e podem influenciar comportamentos sem intenção ou consciência”.

Quando o campo da denúncia do racismo se expandiu do racismo aberto — a crença na superioridade de brancos sobre os negros — para essas formas institucionais e inconscientes, a condenação não se abrandou porque o racismo, nesses casos, não era intencional. O princípio basilar de que a boa-fé é um atenuante, quando não diretamente um exculpante, é desprezado por essas acusações desproporcionais.

A razão para esse estado de coisas é que nosso debate político foi moralizado. Não dispomos mais de vocabulário para graduar a caracterização das faltas porque a moderação da resposta é vista como conivência, portanto ela mesma uma falta a condenar.

Se, diante de um pequeno ato que prejudica o direito das mulheres, o chamamos apenas de discriminatório ou desrespeitoso, em vez de machista ou misógino, a falta será nossa. Somos nós que não temos sensibilidade social, que perdemos a capacidade de indignação com a violência contra a mulher. Num mundo político moralizado como o nosso, todos os incentivos são para que as condenações sejam as mais severas e mais rigorosas. Quanto mais dura a reprovação, maior a virtude daquele que condena.

A hiperbolização do discurso político tem levado a um ambiente de intolerância, em que a falta de proporção na caracterização das faltas desvaloriza tanto a gravidade dos comportamentos extremos quanto a possibilidade de estabelecer diálogos construtivos. Ao perdermos a capacidade de distinguir entre faltas menores e ofensas graves, tornamo-nos incapazes de oferecer respostas proporcionais e de reconhecer a boa-fé como atenuante legítimo. Precisamos resgatar o sentido de proporção, adotando um vocabulário político que permita criticar sem distorcer e condenar sem perder a noção de justiça.

 

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