O Estado de S. Paulo
Sem respeito ao dinheiro público, todos brigam, quase ninguém tem razão e o pão continua a faltar. O essencial, cuidar dos interesses dos que mais dependem do Estado, torna-se secundário
O clássico Os donos do poder, de Raymundo Faoro,
publicado em 1958, nunca foi tão atual. Na Escola de Economia de São Paulo da
Fundação Getulio Vargas, onde me graduei, ganhei um exemplar das mãos do
estimado Professor Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, há 20 anos.
Apreendi sua mensagem, que é muito clara: o
Estado brasileiro compõe-se, em muitos casos, de estamentos, fatias ou nacos de
poder voltados a interesses privados. Atacar esses interesses desperta os
instintos mais primitivos dos que operam esse sistema não republicano.
O episódio do decreto presidencial do IOF,
especialmente no capítulo mais recente – sua derrubada pelo Congresso seguida
de judicialização – é sintomático. Vivemos uma situação delicada e perigosa, em
que a responsabilidade fiscal é confrontada diuturnamente.
Sem respeito ao dinheiro público, todos brigam, quase ninguém tem razão e o pão continua a faltar. O essencial, cuidar dos interesses dos que mais dependem do Estado, torna-se secundário. O privilégio aos amigos do rei, principal. Responsabilidade fiscal não é tecnicismo de especialista, mas o único caminho para promover políticas públicas sustentáveis, fazendo cumprir a Constituição Cidadã.
O Poder Legislativo age como se fosse o
responsável por governar o País e o Executivo está, cada vez mais, de mãos
amarradas. Não consegue conduzir o programa de governo pelo qual se elegeu. As
propostas, sem entrar no mérito, são dinamitadas pelo Congresso, que nada
coloca no lugar.
Veja o exemplo da tentativa de aumentar a
progressividade e a justiça do sistema tributário da renda. A alíquota mínima
de 10% (em termos efetivos) aguça os donos do poder, que se fazem presentes por
meio de pressões sobre políticos eleitos. Tende-se à preservação de sinecuras,
facilidades, benefícios e incentivos de toda sorte.
A situação econômica do País é boa, neste
momento. Mesmo com juros muito elevados, o crescimento econômico ainda é
relevante e o desemprego segue em patamares baixos. É verdade que a
desaceleração encontrará lugar, até como resultado da política monetária
contracionista em curso. Os dados mais recentes do comércio e dos serviços
indicam o início desse processo. Mas, justamente por isso, a inflação está mais
contida e as projeções já apontam patamar abaixo de 5% até o encerramento do
ano.
Para crescer de modo sustentável, perene e de
modo robusto, precisaremos reencontrar a rota do planejamento e do Orçamento
transparente e equilibrado.
As contas públicas estão desorganizadas. A
despeito do esforço do ministro Fernando Haddad e do amplo conjunto de ações
aprovadas desde 2023, as soluções pelo lado dos gastos públicos pendem de
propostas estruturais, como a que Josué Pellegrini e eu formulamos em artigo no
Estadão ( Propostas para Fernando Haddad, 5/6,
A6), e de apoio político.
O Congresso, ao contrário do discurso de suas
lideranças, dá de ombros a qualquer agenda de controle de despesas. Aumenta
subsídios, distorce projetos como o da reforma tributária, fabricando exceções
e penduricalhos, e espeta mais e mais faturas bilionárias no Tesouro.
O caso das emendas parlamentares é o mais
escancarado. Em audiência pública organizada pelo ministro Flávio Dino, no
Supremo Tribunal Federal, falei sobre a inconstitucionalidade do modelo atual.
Os gastos novos, ano a ano, derivados das emendas, não são compensados por
reduções de outras despesas, como manda o artigo 166 da Carta.
A sustentabilidade da dívida, preceito
constitucional, desmancha-se no ar na esteira do aumento de 700% das emendas,
entre a média do biênio 2016/17 e os valores pagos de 2024. Não sobra qualquer
espaço para o Executivo entregar as metas fiscais estipuladas e restabelecer as
condições de sustentabilidade da dívida pública como proporção do PIB.
O Executivo tem culpa no cartório, também,
por não ter proposto, bem antes, uma agenda de saneamento das despesas
públicas. Mas as iniciativas concebidas, incluindo o pacote do fim do ano
passado e a MP 1.303, recebem do Congresso torcidas de nariz e atitudes de
reiterada deslealdade.
O País torna-se, assim, ingovernável. O
Orçamento é a base para garantir o bom financiamento das políticas públicas,
planejar o futuro e financiar o desenvolvimento econômico e social. Hoje, ele
se transformou em verdadeiro piloto automático. Os gastos obrigatórios crescem
sem parar, as despesas discricionárias estão cada vez mais comprometidas,
principalmente pelo avanço das emendas impositivas, e as receitas já não dão
mais conta de resolver a equação fiscal.
O corte de benefícios tributários está
prestes a ser anunciado. São centenas de bilhões de reais, como mostrei no
artigo da última quinzena neste espaço (19/6, A6), que seguem erodindo as
contas públicas, sem qualquer avaliação a sério e corte efetivo. Nessa frente,
mesmo com o atual mandato presidencial já em estágio avançado, pode-se promover
importante conjunto de mudanças.
Vejamos se, desta vez, prevalecerão os
interesses públicos ou se o Congresso, novamente, escolherá o lado dos donos do
poder de sempre.
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