- Valor Econômico | Eu & Fim de Semana
Brasil, país do futuro. Eis uma frase que marcou o século XX. O problema é que nos atrasamos na criação da política mais importante para catapultar uma sociedade a um estágio melhor: a educação. Muitas transformações sociais ocorreram desde 1930, mas mantivemos uma enorme desigualdade porque a escola para todos, e de qualidade, não esteve no DNA do desenvolvimento brasileiro.
Essa situação só começou a mudar a partir da Constituição de 1988, quando foi proposta, de forma inédita em nossa história, a universalização do ensino fundamental. Nesse campo houve vários avanços, mas a desigualdade educacional atual é evidente no ensino médio. Exatamente na faixa etária em que os sonhos mais precisam ser alimentados, para que o adulto de amanhã seja plantado.
Quem quiser saber por que ainda estamos distantes de nos tornamos o país do futuro, precisa assistir o documentário "Nunca me Sonharam", que estreia na próxima quarta-feira, dia 24, feito pelo Instituto Unibanco e dirigido por Cacau Rhoden. É preciso ouvir e entender esses jovens da escola pública para irmos além do Brasil oficial, das promessas das campanhas políticas, dos números sem alma. O filme é uma lição das desesperanças e esperanças de uma nação que não está sendo discutida pela opinião pública e pela mídia.
O documentário percorre escolas de ensino médio de várias partes do país e traz depoimentos dos jovens, de pessoas da comunidade, de professores, de diretores e de pesquisadores em educação. As imagens, os olhares e, sobretudo, as falas constroem a história de uma juventude com poucas oportunidades e para a qual é preciso dar uma chance se quisermos que o futuro do país seja melhor.
As falas do filme tecem uma narrativa singular da juventude pobre. Por conta dessa riqueza de ideias, palavras e expressões, resolvi construir o texto de uma maneira inusitada, utilizando, de forma literal ou aproximada, diversas frases que aparecem ao longo do documentário, sem citar diretamente os autores. Convido os leitores a procurar depois o que foi dito por mim nas passagens do filme.
O início de tudo é a definição do que é ser jovem. Essa fase de tempestade e trovão, de intensidade sempre à beira de uma ruptura. Mas ser jovem supõe o plural - juventudes -, o que no caso brasileiro tem muito a ver com nossa desigualdade. Os alunos da escola pública definem-se pela falta. Como disse uma aluna, "eu sou um defeito de fábrica (...), diferente de todo mundo". Não que não se tenha esperança, é que ela parece não caber na realidade. Como dito por outro jovem: "a partir do momento que o sonho foi tirado de mim, eu desisti dele também". Fica a pergunta no ar: quais jovens podem sonhar?
A desigualdade de origem é claramente percebida na comparação com os jovens mais abastados. Nesta linha, o conceito de meritocracia é visto de forma crítica, porque ele põe na mesma competição um pobre que sai do subsolo e outra pessoa que parte do quinto andar - e ainda sobe de elevador. Como dito no filme, a juventude mais vulnerável começa a desenhar seu destino com o encurtamento da infância, tendo menos tempo para brincar, um menor número de atividades extraescolares e uma educação meramente instrumental. Desde cedo se aprende a não ter muita ambição de ascensão social pela via educacional, levando-os a atuar no mercado de trabalho de forma precária e precoce. Daí surge uma lição muito importante do documentário: ao restringir o que o jovem mais pobre pode ser, restringe-se também o que o Brasil pode ser.
Na visão dessa juventude, esse fosso social deriva de duas fontes: a família, que seria o passado, e a escola, que seria o presente. Da soma dessas duas dimensões temporais é que pode emergir o futuro. Em relação à herança familiar, num dos momentos mais emocionantes do filme, um jovem diz: "como meus pais não foram bem-sucedidos na vida, eles não me incentivaram. Nunca me sonharam eu sendo um psicólogo, um professor, um médico. Não me ensinaram a sonhar. Eu aprendi a sonhar sozinho". É por conta deste legado social que os jovens mais pobres precisam muito de uma boa escola.
Só que o funcionamento das escolas públicas no Brasil ainda deixa muito a desejar, segundo os jovens do filme. Primeiro, elas são desinteressantes, tendo dificuldade de dar sentido ao que se ensina, desperdiçando milhares de possíveis talentos. Segundo, há problemas estruturais de gestão que se tornam um empecilho para o aprendizado efetivo - "ficamos três meses sem professor", reclama um aluno. Terceiro, as unidades escolares não conseguem lidar com a diversidade, com a situação social prévia de seus alunos. Uma aluna expressou bem seu problema: era difícil ser, a um só tempo, menor de idade, mulher, negra e pobre. Por isso, como bem notou uma entrevistada, o problema da educação passa também por resolver melhor os conflitos éticos numa sociedade heterogênea, mas que não é capaz de encarar e aceitar seu próprio espelho.
A fragilidade do ensino médio brasileiro fica estancada claramente num dado: 38% dos jovens de 15 a 17 anos não estão nem na escola nem trabalhando. Trazê-los de volta e manter os que estão vai depender de uma nova concepção educacional. Para tanto, é necessário aperfeiçoar a atuação de professores e gestores. Obviamente que é fundamental aumentar a atratividade das carreiras educacionais, mas também é essencial mudar a formação docente, dando aos professores os instrumentos pedagógicos necessários para ensinar bem as disciplinas, de forma criativa e estruturada, e para saber lidar com os jovens - duas coisas que as faculdades não ensinam adequadamente. Não se quer um professor-herói, mas alguém preparado profissionalmente para tão grande tarefa.
Os professores precisam, ademais, ter empatia com seus alunos, saber que a situação prévia deles é peça-chave para o processo pedagógico. Há uma história emocionante no filme de um professor de matemática que só descobriu o que era a pedagogia correta quando conheceu a situação social de um aluno que tanto amava sua disciplina, algo que ele não sabia. A descoberta se deu quando o docente saiu do seu casulo, do mero papel de transmissor de conteúdos, para ver o que estava no seu entorno escolar.
O corpo docente precisa ter maior sintonia com o discente, sobretudo entre alunos com legado de vulnerabilidade social, uma das coisas que mais faz diferença é ter alguém que acredita nesses jovens. Apostar que eles não serão eternamente fracassados, que vão além dos estereótipos do jovem da periferia, descobrir as coisas que os movem a querer mudar o mundo, escrever um poema de apoio no caderno de quem já tinha perdido a esperança.
A distribuição das oportunidades educacionais é desigual para os jovens das escolas públicas. Mas o documentário também apresenta experiências bem-sucedidas e histórias de superação. Em muitos lugares pelo Brasil afora há professores e diretores corajosos, criativos, perseverantes no processo de aprendizagem e que alimentam os sonhos da juventude, única maneira de construir uma educação melhor em condições tão adversas. Seguindo essa linha, há escolas que conseguem trazer de volta alunos que tinham evadido ou aprovam, em circunstâncias sociais muito vulneráveis, a grande maioria dos alunos no vestibular.
Dentro dessas experiências pedagógicas, uma das fórmulas mais bem-sucedidas é conversar muito com esses alunos, que tanto almejam alguém para escutá-los, dado que vivem num mundo surdo para suas angústias e expectativas. Tanto se fala da juventude, inclusive na última reforma do ensino médio aprovada pelo Congresso, embora exista pouco espaço para ouvi-la. O fato é que há um grande déficit democrático nas escolas e no sistema educacional em geral. A superação do fosso social passa por dar informação, autoestima e voz aos alunos. É preciso ressaltar: vários jovens que aparecem no documentário dizem que a educação é única forma para saírem do banco de reservas da sociedade. Eles entenderam o que foi bem resumido por um dos maiores especialistas no assunto: o processo educacional é a porta para todos os direitos.
Tanto é verdade que os alunos acreditam na escola, almejando uma educação melhor e mais instigante, que ao final do filme eles dizem querer seguir vários caminhos profissionais: ser médico, psicólogo, cineasta, advogado, administrador, veterinário, dançarino, e tudo mais que seja desejável, inclusive fazer doutorado e estudar em Londres. O sonho mais fantástico veio de uma aluna: se eu não for professora, quero ser presidente do Brasil.
O futuro do país e a criação de um país do futuro dependem da melhoria da escola pública, dando à juventude mais pobre as condições de viver melhor que seus pais, fazendo com que os filhos de hoje ensinem sua prole a sonhar. Claro que o processo educacional é uma tarefa de longo prazo, contudo, após ver as angústias e esperanças expostas no filme, é preciso gritar para que esse passo seja dado logo. Afinal, como na metáfora da tâmara apresentada pelo documentário, a educação é algo que "você planta, mas não colhe, alguém vai colher. O importante é você começar a plantar".
---------------
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,
Nenhum comentário:
Postar um comentário