- Valor Econômico | Eu & Fim de Semana
Há 13 anos uma nova língua passou a ser ouvida no Brasil com frequência cada vez maior, a língua das ocultações do poder. Desde o mensalão, os fatos relativos aos meandros do Estado e da política ganharam visibilidade e expressão em uma fala nova, incomum, cada vez mais invasiva do cotidiano de todos nós, desacostumados a ouvi-la.
Juízes se tornaram protagonistas de enredos em que a fala do poder é a atriz principal. Políticos, que se achavam "os tais", se tornaram meros coadjuvantes, falando a língua dos desmentidos ou mesmo a das mentiras desmentíveis. Vamos também descobrindo as armadilhas da fala jurídica. Mais importante do que o fato é o argumento.
Termos que não conhecíamos e assuntos que ignorávamos invadiram nosso dia a dia e vem desafiando nossa compreensão do que é o poder e do que é a política. Uma das grandes revelações dessa língua é a de que somos um povo partidarizado, mas não politizado. Aos poucos vamos descobrindo, como diz ditado antiquíssimo, que não basta a mulher de César ser honesta. Ela tem que parecer honesta. Tão importante quanto ser verdadeiro, é importante ser teatral. Isso é a modernidade, que nos chega pela via dos inquéritos policiais e dos interrogatórios.
Essa nova heroína do Brasil, a fala do poder, não é a mesma fala do cidadão. Porque nela há desencontros que a desconstroem. É uma fala lógica no que diz, mas ilógica e reveladora no que desdiz. A língua do poder é dupla, diz e desdiz para fazer supor.
Se o político usa fala de botequim, sua fala política se perde. Se usa língua de religião, esvazia o que é próprio da política. Se reduz a política à economia, como estamos vendo, esvazia a política de seu principal conteúdo. Os mistérios da fala têm se apresentado em diferentes âmbitos. Nas contradições que encerram, revelam extenso número de maus atores do processo político brasileiro. Maus autores porque a fala vazia ou equivocada retira de quem fala o que a fala representa, a instituição em nome da qual é dita. Ninguém é dono dos conteúdos e das consequências do que diz. As instituições têm seu próprio dizer silencioso.
Na arguição recente de um candidato a uma das 11 cadeiras de nossa Suprema Corte, o arguido não o foi sobre a língua e o modo de falar. Eram esses apenas pressupostos da competência para a indicação pretendida. Expressou-se, porém, numa linguagem cheia de frases incompletas e subentendidos. É verdade que os senadores que o arguiram nem sempre se expressaram melhor. Dizer pela metade é um modo de não dizer ou de dizer para ser compreendido segundo um descabido código de cumplicidade entre quem fala e quem ouve, geralmente um código de subcultura, excludente, privado da universalidade que é essencial ao Direito. Algo como "aqui entre nós", o que trucida o cidadão a quem a fala deveria ser dirigida e que não faz parte desse nós.
Usar palavras de códigos judiciários e de manuais de direito com tons e gestos de esquina empobrece a grandiloquência e esvazia o discurso de quem deveria ser única e simplesmente funcionário da Justiça, personificador da instituição. Vimos esse atropelo em cerimônia recente de posse de um ministro do Supremo. Desaforos grunhidos entre duas altas figuras da República que, não obstante a linguagem de indiretas e de meios termos, foram ouvidos como fala de uma instituição em crise.
Desaforo se diz em casa, como assunto privado e pessoal. Não ir com a cara de outro é comum, mas não é civilizado nem é próprio de quem desempenha um papel, ainda que transitório, numa instituição grave como a Justiça. São situações em que a pessoa deve deixar de ser quem pensa que é para ser quem deve ser. Porque durante essas falas o que cada um é está sendo redefinido. Entre o início e o fim de uma conversa, de um discurso, de um interrogatório, quem fala pode sofrer uma metamorfose de identidade. No fim, já não é quem supunha ser no começo.
É inútil satanizar o juiz e desdenhar a Justiça. Estamos vendo esse equívoco nestes dias na tentativa de um ex-presidente da República de transformar seus deveres com a Justiça numa performance eleitoral, como se fosse um embate entre dois times de futebol de várzea. Ali, os protagonistas são apenas personificações das funções que devem desempenhar, no restrito momento dos esclarecimentos: a de réu e a de juiz.
A língua do poder tem que ser, obrigatoriamente, a língua da nação. Não pode ser a língua dos subentendidos que facilmente derivam para a malícia. Não pode ser uma língua que puxe a fala do povo para baixo, que a empobreça, que lhe tire os conteúdos ricos da diversidade e das diferenças, privando quem a ouve da compreensão do que está sendo dito, do que está sendo decidido.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Sociologia como Aventura (Contexto), dentre outros.
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