- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Poderia ter sido outra coisa, mas não foi. Em menos de dois meses, ficou claro que a inclusão de uma ave-maria em tupi, no discurso de posse do novo ministro das Relações Exteriores, não era uma promessa. A de que a voz dos historicamente tratados como gentios e bárbaros, os indígenas, fora reconhecida, pelos novos donos do poder, como a língua de nossa busca de identidade e de destino.
Muito ao contrário, os atos deste governo em relação às populações indígenas são atos para sua integração forçada e apressada, a pressa que mata, física e culturalmente, num capitalismo que é corrosivo para todos os desvalidos, para os quais não há nele lugar nem esperança. Sociologicamente, exclusão social é isso: integrar para banir, o traço cruel do neocapitalismo anticapitalista.
Ainda que a fala seja outra e de outro, é a voz da língua dos fundamentos profundos de uma nacionalidade, a língua dos significados, daquilo que dizemos ou fomos proibidos de dizer, mas compreendemos, do que, em boa parte, é o silêncio histórico dos simples. Língua proibida pelo rei de Portugal, em 1727. Vivíamos os tempos do ímpeto nativista da Guerra dos Emboabas (1707-1709), em que os paulistas, em nome da pátria, palavra que usaram em sua proclamação, enfrentaram os forasteiros, sobretudo reinóis, em terras das Minas Gerais.
Não sei se o ministro e os outros membros do governo atual sabem que muitos, no Executivo e no Congresso, falam português com sotaque nheengatu, designação que o general Couto de Magalhães deu à nossa antiga língua geral. Língua bonita, em português, traduziu ele. Dívida sagrada que temos com as populações indígenas.
A língua, não importa qual, é instrumento da consciência social. É por meio dela que nos tornamos nós, nos expressamos de maneira culturalmente singular e nos tornamos racionais. No desprezo por ela e por aqueles de quem a aprendemos está o desprezo por nós mesmos, como povo e nação. O começo do fim da nacionalidade.
A língua de nossos ancestrais indígenas sobrevive no sotaque caipira e sertanejo de nossa fala cotidiana. Não é coisa de gente atrasada. É legítimo dialeto, devidamente estudado por Amadeu Amaral, membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Letras, em livro de 1920. Livro que, na reedição de 1955, teve uma apresentação explicativa, erudita, de Paulo Duarte, jornalista e professor, que seria cassado pela ditadura, em 1969.
Temos literatura nessa língua dialetal no regionalismo literário paulista, nas obras de Otoniel Mota, linguista e pastor protestante, professor na USP, e de Waldomiro Silveira, ambos membros da Academia Paulista de Letras. Língua cuja lógica dos avessos é constitutiva das obras dos escritores Ruth Guimarães, também da APL, e de Guimarães Rosa, da Academia Brasileira de Letras.
O oposto daqueles pouco presidenciais e nada solenes "n'é?" e "tá ok?", do presidente da República. Tanto o "n'é" quanto o "tá" são nossas versões dialetais do "não é?" e do "está certo?". Coisas do fato de sermos um povo que se expressa em duas línguas, a escrita e a falada. As do acentuado desencontro entre o belo português literário de Machado de Assis, mulato cultíssimo, e o completamente diferente português da nossa língua de rua, a do pão nosso de cada dia.
Há nela gradações que podem chegar ao extremo dessa fala que ouvi de um caboclo no sertão do Mato Grosso, nos anos 1970. Quando lhe perguntei se era casado, desconversou. Só me respondeu quando se certificou de que já não havia outras pessoas por perto: "Ói, moço. Eu tenho uma muié de à meia co'aquele um que é meu vizinho". Uma preciosidade linguística, antropológica e histórica, fala e mentalidade do começo do século XVIII. Língua de muitos mestiços que ficaram imobilizados e aprisionados no meio do caminho do desenvolvimento econômico colonialista e excludente.
O dialeto caipira nasceu porque os nativos e os mamelucos tinham dificuldade para pronunciar palavras portuguesas com consoantes duplas e os infinitivos dos verbos. Inundaram a língua com vogais, tornaram-na doce e suave em relação à língua de Portugal.
A língua brasileira foi gerada nas duas escravidões que tivemos, língua para obedecer e não para mandar, língua da incerteza e do medo. Coisa de quem discorda concordando. Como notou Euclides da Cunha ao ouvir as vítimas da repressão do Exército contra os sertanejos simples na Guerra de Canudos: "É, não", diziam os prisioneiros, para responder perguntas nos interrogatórios. É esse subalterno que se expressa nos "n'é?" e nos "tá, ok?" presidenciais. Língua das classes subalternas, na definição do filósofo Antônio Gramsci, que apavora o poder atual com um fantasioso marxismo cultural.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).
Nenhum comentário:
Postar um comentário