- Revista Época
Nelson Rodrigues dizia que os idiotas — ou estúpidos — tomariam conta do mundo pela simples quantidade.
A confusão do Brexit é estúpida. As políticas comerciais de Donald Trump são estúpidas. O nacionalismo populista que ameaça a coesão global e a economia mundial é estúpido. As brigas entre o ciclo de bolsonaristas-olavetes fundamentalistas e os militares do governo são estúpidas. A exposição excessiva que a mídia dá aos filhotes do presidente é estúpida. Voltaire achava que para ter sucesso não bastava ser estúpido, mas ter boas maneiras. Líderes mundiais desmentem a tese. Flaubert dizia que ser estúpido, egoísta e ter boa saúde eram as condições ideais para ser feliz — sem a estupidez, entretanto, tudo estaria perdido. Carlo M. Cipolla afirmava com embasamento lógico e matemático que sempre subestimamos o número de estúpidos a nosso redor e que ser estúpido é atributo que a natureza impõe sem dó ou piedade. O dramaturgo brasileiro e o historiador italiano chegaram mais próximos da verdade que os escritores franceses, talvez por uma questão de época, talvez pela ausência de um romantismo irônico incoerente com a aspereza ardente da estupidez.
Adianta dizer que o Brexit já castigou a economia britânica de forma quase irreversível? Adianta mostrar com dados e fatos que o protecionismo de Trump já gerou perdas para vários dos setores e trabalhadores que ele prometera defender? Adianta apontar no nacionalismo populista as sementes que já levaram a exaltação da política industrial a criar rivalidades transnacionais e estraçalhar a solidez fiscal e a estabilidade monetária? Adianta repetir que as brigas no entorno de Bolsonaro podem prejudicar toda a agenda de reformas de que o país tanto necessita? Adianta avisar que a constante atenção dispensada à família de Bolsonaro é diversionismo barato, entretenimento pobre, distração dos problemas que realmente afligem o país? A resposta para todas essas perguntas é um ruidoso “Não”. De nada adianta escrever, apontar, ponderar nada disso. Ninguém está interessado. Ou a pequena parcela de pessoas que está interessada em refletir sobre como todas essas coisas são danosas é frequentemente devorada pela sanha das redes sociais, onde sempre há um argumento estúpido para uma reflexão cheia de complexidades e nuances.
Para além da reforma da Previdência — tema sobre o qual prevalece o obscurantismo e o debate embalado por um grau elevado de estupidez —, temos agora o debate sobre o Censo. O governo pretende economizar recursos com o Censo reduzindo o número de perguntas. Segundo o IBGE, o Censo completo custaria R$ 3,4 bilhões. Segundo o Orçamento de 2019, os gastos públicos totais somam R$ 1,4 trilhão. Supondo que os gastos projetados para o ano que vem sejam mais ou menos equivalentes aos deste ano, o Censo — que é conduzido a cada 10 anos e contém informações valiosíssimas para a avaliação das políticas públicas e para sua formulação — representaria ônus de 0,2% para o total dos gastos públicos. Diz o IBGE que, ao reduzir o número de perguntas, economizará 25% dos R$ 3,4 bilhões, ou desembolsará R$ 2,5 bilhões. O montante economizado representa 0,06% dos gastos públicos.
E o que se perderá de informações em troca? O IBGE afirma que pouco ou nada. Contudo, o instituto tem apenas duas semanas para produzir proposta de questionário reduzido, o que não é tempo suficiente para fazer uma avaliação adequada e assegurar que não haverá perda de informação ou descontinuidade de séries históricas importantes para a pesquisa acadêmica e para a formulação de políticas públicas. Entre as informações que poderão deixar de constar no Censo estão a taxa de desemprego — essa já coberta por outras pesquisas do IBGE —, dados mais detalhados sobre a renda das famílias — possivelmente já cobertos por outras pesquisas do IBGE, mas seria útil ter a certeza — e perguntas sobre mobilidade urbana. Defensores da redução do questionário afirmam que a mobilidade urbana pode não fazer sentido nos municípios menores, apesar de ser de grande relevância nas cidades maiores. Qual a lógica de excluir perguntas como essa para economizar 0,06% do gasto total sem saber quão valiosa é a informação para pesquisadores e aqueles que elaboram políticas públicas?
A discussão a toque de caixa sobre o encolhimento do Censo é mais um exemplo daquilo que se perde quando a estreiteza da estupidez se impõe. Pode até ser que toda nudez seja castigada em tempos de retrocesso. Mais do que nunca, entretanto, toda estupidez será soberana.
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
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