Falta-nos
um projeto capaz de construir consensos políticos majoritários e resgatar nossa
coesão social, para uma grande reforma democrática do Estado e a redução das
desigualdades
Num
de seus ensaios sobre a França no século XX — O peso da responsabilidade
(Objetiva) —, o historiador britânico Tony Judt, falecido em 2010, aos 62 anos,
analisa a vida pública francesa entre a Primeira Guerra Mundial e os anos 1970.
Como se sabe, o primeiro grande Estado-nação da Europa influenciou toda a
história moderna do Ocidente, em razão da Revolução Francesa e da Comuna de
Paris. Por essa razão, Judt não esconde seu espanto com “a incompetência, a
‘insoucience’ indiferença e a negligência injuriosa dos homens que governavam o
país e representavam seus cidadãos” nesse período, e dedica o livro a Léo Brum,
Albert Camus e Raymond Aron, intelectuais franceses que nadaram contra a maré e
confrontaram seus pares.
Segundo
Judt, o problema da França era mais cultural do que político. Os deputados e
senadores de todos os partidos, presidentes, primeiros-ministros, generais,
funcionários públicos, prefeitos e dirigentes de partidos “exibiam uma
assombrosa falta de entendimento de sua época e do seu lugar”. Para um país que
no começo do século teve grandes líderes políticos, como o socialista Jean
Jaurès, que tentou evitar a I Guerra Mundial e morreu assassinado num comício
pela paz, e George Clemenceau, primeiro-ministro durante a guerra e um dos
artífices do Tratado de Versalhes, chama atenção a petrificação das suas
instituições políticas no período. Traumatizada pelo sangrento desastre que foi
o conflito mundial, a França foi polarizada pela radicalização ideológica que
antagonizava comunistas e socialistas, de um lado, liberais e fascistas, de
outro, em toda a Europa, e imobilizava o país.
Dividida
entre um anseio pela prosperidade, equivocadamente inspirada no passado, e pela
estabilidade dos anos anteriores à guerra, de um lado, e as promessas de
reforma e renovação a serem pagas com recursos financeiros da punição à
Alemanha, de outro, a elite francesa não tinha a menor chance de acertar.
Qualquer tentativa de mudança em favor de melhores condições de vida para os
franceses era barrada por uma política polarizada entre esquerda e direita,
toda reforma institucional ou econômica era tratada como um jogo de soma zero.
O desfecho foi a ocupação alemã, período ainda mais traumático, do qual a
França foi salva pela vitória dos aliados, sem embargo da heroica resistência
dos maquis.
A
crítica de Judt é duríssima: “Que a França tenha sido salva de seus líderes
políticos, de um modo como não podia ser salvar década antes, se deu graças a
grandes mudanças no pós-guerra nas relações internacionais. Membro da Organização
do Tratado do Atlântico Norte (Otan), beneficiária do Plano Marshall e cada vez
mais integrada à nascente comunidade europeia, a França não dependia de seus
próprios recursos e decisões para ter segurança e prosperidade, e a
incompetência e os erros de seus governantes lhe custaram muito menos do que
ocorrera em anos anteriores”.
Um
paralelo
A
tradução literal de “insoucience” é imprudência. Essa é a palavra-chave do
paralelo entre esse período da história francesa e a política brasileira atual.
Talvez a maior imprudência visível seja a atual política ambiental, que está
fadada ao desastre absoluto, porque assentada em base políticas e ideológicas
com 50 anos de atraso, ou seja, que remontam à estratégia de ocupação e
exploração econômica da Amazônia do regime militar. Suas consequências de curto
prazo — perda de investimentos, dificuldades de comercialização de produtos e
isolamento internacional —, apontam para um desastre muito maior, porque o
mundo passa por uma mudança de padrão energético que está nos deixando muito
para trás, como aconteceu na Segunda Revolução Industrial, à qual só viemos a
nos incorporar na década de 1950.
A
questão ambiental é apenas a ponta do iceberg: falta-nos um projeto capaz de
construir consensos políticos majoritários e resgatar nossa coesão social, para
uma grande reforma democrática do Estado e a redução das desigualdades, no
espaço de uma ou duas gerações. Ninguém tem uma fórmula pronta e acabada para
isso. A única certeza é que os velhos paradigmas, que alimentam a polarização
ideológica atual, não são capazes de dar as respostas adequadas aos problemas
brasileiros. O pior é que o velho nacional desenvolvimentismo e os populismos
de direita e de esquerda rondam as instituições políticas, sem que nenhuma
dessas vertentes tenha a menor capacidade de dar respostas adequadas às
contradições atuais.
A
Revolução Francesa inspirou nossas instituições políticas, assim como a
Revolução Americana, matriz das nossas ideias federativas. Tanto a França como
os Estados Unidos, porém, vivem novos dilemas, com a revolução tecnológica e a
globalização, em que perdem protagonismo econômico e político, a primeira para
Alemanha, os segundos para a China. Esses quatro países protagonizam as linhas
de força do desenvolvimento mundial, no qual precisamos nos inserir de maneira
mais proativa. Nenhum deles, porém, nos serve de modelo de desenvolvimento.
Os Estados Unidos não nos darão de bandeja um Plano Marshall, o Mercosul está cada vez mais na contramão da União Europeia e não nos interessa a militarização do Atlântico Sul. Precisamos traçar o nosso próprio rumo. Nossos gargalos econômicos e sociais têm raízes ibéricas (patrimonialismo, compadrio, clientelismo) e escravocratas (a exclusão social e o racismo estrutural). O xis da questão é produzir uma nova síntese sobre a realidade brasileira e, politicamente, desatar os nós institucionais que impedem o nosso desenvolvimento sustentável. Nossa elite política não tem se demonstrado capaz de cumprir essa tarefa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário