Mudança
cultural para maior inclusão feminina só ocorrerá com melhora na condição atual
Alfred Nobel, cientista sueco morto em 1896, declarou em seu testamento o desejo de criação de uma fundação que premiasse, anualmente, as pessoas que mais tivessem contribuído para o desenvolvimento da humanidade. Em 1900, a Fundação Nobel foi criada, e com ela foram definidas cinco áreas de premiação: Química, Física, Medicina, Literatura e Paz Mundial. O Nobel de Economia veio quase 70 anos depois e, embora não seja pago pela Fundação Nobel, tem o mesmo rigor e prestígio.
Desde
1901, quando os primeiros Nobel foram concedidos, 57 mulheres foram premiadas
(uma delas, Marie Curie, cientista e física polonesa, foi a primeira mulher a
receber o prêmio e a primeira pessoa a recebê-lo duas vezes, em 1903 e 1911).
Neste ano, de forma inédita, os prêmios de Química e Física foram concedidos a
três mulheres: a francesa Emmanuelle Charpentier e a americana Jennifer A.
Doudna, em Química e a também americana Andrea Ghez, quarta mulher a ganhar o
prêmio de Física. No ano passado, tivemos uma mulher premiada pelo Nobel de
Economia. A franco-americana Esther Duflo foi a segunda mulher na história a
ganhar o prêmio, e também a mais jovem, com 46 anos.
O
ineditismo de termos três mulheres ganhando os prêmios de ciências traz de
volta a discussão em torno das aptidões femininas e a base das escolhas
profissionais e acadêmicas de jovens mulheres. Afinal, há quem defenda – como
fez o economista Larry Summers, em discurso em 2005, quando era presidente de
Harvard – que a escassez feminina nas áreas de ciências estaria ligada a uma
menor aptidão inata – assim como sua menor representatividade em algumas
profissões também estaria ligada a preferências inatas. Será mesmo? Os prêmios
Nobel deste ano parecem duvidar disso.
O
Relatório Global de Gap de Gênero de 2020, publicado pelo Fórum Econômico
Mundial, avalia o progresso de 153 países em quatro dimensões de igualdade de
gêneros: participação econômica e oportunidades; acesso à educação; acesso à
saúde e representatividade política. Neste ano, inclui-se também uma análise de
perspectivas em relação às profissões do futuro. A mensagem final do relatório
é ambígua. Ao mesmo tempo que se observa uma aceleração importante no número de
mulheres que entraram na educação superior e em empregos formais, reduzindo
substancialmente o gap de gênero global, mudanças estruturais no mercado de
trabalho estão ameaçando essa tendência de avanço.
Enquanto
o acesso a educação e saúde atinge números próximos à paridade
(respectivamente, 96,1% e 95,7%), houve recuo em participação econômica e
oportunidades, que não chegou a atingir 60%. Isso equivale a dizer que a
paridade nessa área não será atingida antes de passados 257 anos, devolvendo
assim boa parte dos avanços conquistados nas outras áreas.
A
explicação para essa reversão: (I) a representação feminina está concentrada em
atividades que estão sendo automatizadas; (II) há menor número de mulheres em
profissões onde o nível salarial está crescendo mais – por exemplo, tecnologia
– e (III) as mulheres continuam tendo acesso limitado a capital e sofrem mais
com as ineficiências na infraestrutura pública como creches, transporte
público, etc.
O
Relatório mantém a Suécia, sede do Nobel, juntamente com Islândia, Noruega e
Finlândia, nas primeiras colocações do ranking de países mais igualitários do
mundo.
Não
por coincidência, são também esses os países onde a infraestrutura social
permite que as mulheres tenham condições adequadas para buscarem as profissões
e as atividades profissionais que lhes apeteçam, sem que restrições culturais,
econômicas e sociais prevaleçam. Também não é por coincidência que esses são
países onde a desigualdade de renda é menor e o acesso a oportunidades mais
equilibrado. É um ciclo virtuoso em que todos ganham.
Há
de se buscar, em particular nos países em desenvolvimento como o Brasil, onde a
desigualdade social é maior e as oportunidades mais estreitas, investir em
fechar o gap de gênero e garantir que talentos emerjam e colaborem com o
desenvolvimento econômico e social. Isso se faz com mudança cultural, mas essa
só vem com melhora nas condições atuais, que estreita ao invés de ampliar as
possibilidades de inclusão feminina no mercado de trabalho. Políticas públicas
voltadas à melhoria da infraestrutura social e políticas privadas de apoio à
diversidade de gênero e à inserção de mulheres nas atividades de fronteira se
juntam às iniciativas de formação e de mentoria que podem eliminar de vez o
falso dilema das aptidões que muito mal escondem um profundo preconceito.
Sim,
há questões culturais que pesam – e muito – nas escolhas femininas. Mas há mais
do que tudo uma assimetria de oportunidades que gera a perpetuação dos
desequilíbrios e a redução de alternativas. A par da maternidade, prerrogativa
maravilhosa e indelegável, não há nada nem antes, nem durante nem depois dela
que justifique um tratamento que alije talentos ou carimbe aptidões. Afinal,
isso nada mais faz do que tornar a humanidade pior.
* Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.
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