Parte
da reação mais rápida do que o previsto se deve ao pagamento do auxílio
emergencial, que deve terminar abruptamente na virada do ano
Em
meio à tristeza de 150 mil mortes pela covid-19, a economia brasileira
apresentou nas últimas semanas uma série de dados positivos. Números como a
alta recorde das vendas do varejo motivam revisão generalizada de previsões
para o PIB.
O
movimento mais recente foi do Banco Mundial, que havia irritado o governo com
sua catastrófica projeção de queda de 8% e que passou a prever recuo de 5,4% no
ano. Ainda é um tombo feio, mas embute uma recuperação bem mais rápida.
Nos
bastidores, a equipe econômica tem comemorado o ritmo de expansão e acreditam
que isso terá continuidade. A visão é que o setor de serviços começará a ter um
ritmo melhor daqui para frente, consolidando a recuperação do PIB.
Mas
é necessário cautela. Os dados que mostram forte ritmo no varejo e na indústria
têm efeito de medidas como o auxílio de R$ 600 pagos a quase 70 milhões de
pessoas. Só isto já injetou R$ 237 bilhões na economia. A partir de setembro,
porém, ele foi reduzido a R$ 300 e assim deve seguir até dezembro.
Como
a economia se comportará com o corte pela metade de seu principal impulso
fiscal? É verdade que o auxílio e outras medidas, como a liberação do FGTS,
devem injetar cerca de R$ 150 bilhões entre setembro e dezembro. Não é pouco.
Mas a dúvida mais inquietante é para 2021, quando não só o auxílio, mas os
outros programas, como o benefício para o emprego e as ações de crédito às
empresas, chegam ao fim. Qual será a resposta do setor privado à contração
fiscal prevista, em meio às sequelas deixadas pelo coronavírus, como os milhões
de desempregados e o fim de milhares de empresas?
A
equipe econômica parece mais preocupado em sustentar o discurso de que a partir
de 1º de janeiro a vida fiscal do país volta ao limite do teto de gastos, salvo
uma segunda e forte onda da covid-19, do que em responder a essas perguntas.
É
preciso reconhecer que de forma geral, Paulo Guedes e sua equipe tiveram uma
ação econômica correta, com medidas relativamente bem calibradas - sem, claro,
esquecer da atuação do Congresso em seu desenho final. Essa retomada do
crescimento reflete isso, ainda que não se deva deixar de comentar que o
resultado final seria muito melhor não fosse a sabotagem do presidente da
República às medidas de isolamento social, que prejudicou o combate ao vírus e
até hoje cobra seu preço em vidas e resultados econômicos.
Agora,
cabe se discutir a transição da política econômica. É verdade que esse processo
já começou com a redução do auxílio emergencial, mas seu fim parece abrupto em
2021. O problema é que a vida no tecido econômico não muda só porque o
calendário passou de 31 de dezembro para 1º de janeiro. E aí reside uma enorme
incerteza.
Documentos
do próprio governo lançam dúvidas sobre a persistência desse ritmo de
recuperação. Em seu relatório de inflação, o Banco Central disse que a ausência
de uma clara retomada do mercado de trabalho “pode impor restrições à
velocidade futura de recuperação da economia, especialmente após redução das
transferências extraordinárias”.
Já
o Ipea aponta que a questão relevante é como manter a economia em ritmo
satisfatório, no restante do ano e ao longo de 2021. “O desafio reside em
buscar um ritmo adequado de transição das medidas excepcionais de política
voltadas para a preservação de empregos, renda e produção para um regime de
política que continue a prover suporte ao setor produtivo e assistência aos
mais necessitados, mas que seja fiscalmente sustentável”, diz.
É
essa sinalização que a equipe econômica falha em dar. O problema não é trivial,
dada o elevado endividamento do país. Mas o desempenho do PIB é parte do
processo de ajuste fiscal. O ponto é que a discussão econômica se tornou
binária em torno do teto de gastos, algo que equivocadamente tem sido
estimulado pelo próprio Ministério da Economia. É um tudo ou nada que já está
cobrando o seu preço.
“A
grande questão é como se consegue tirar o estímulo fiscal sem causar uma
recessão. É muito difícil a economia resistir a uma retirada de estímulos de 8%
a 10% do PIB. Devia ser gradativo, enquanto o setor privado vai se
recuperando”, comentou o pesquisador do Ibre/FGV e ex-secretário de Política
Econômica, Manoel Pires.
Ele
explica que não é uma questão de calendário, e sim econômica. “Tem o outro
lado: é evidente que isso pode gerar outra crise se não houver clareza sobre
como retirar esse incentivo fiscal. Tem um dilema de curto prazo a ser
resolvido”, afirmou, explicando que isso deve ser feito sem se descuidar de uma
solução fiscal de longo prazo para o país.
Para
a especialista em contas públicas e procuradora do Ministério Público de Contas
de São Paulo Élida Graziane, planejar a transição de 2020 para 2021 “é esforço
de justiça fiscal que pode ser feito de forma transparente e equilibrada até
para que seja resguardado o custeio dos serviços essenciais”.
Ela
lembra que o pais já alterou o teto para repassar os recursos do petróleo e
adotou o Orçamento de Guerra diante da necessidade da pandemia. “Não podemos
interditar reflexão equitativa sobre nossas regras fiscais em um plano bienal
de enfrentamento da pandemia”, disse a procuradora ao Valor.
Guedes
tem discutido com o Congresso uma boa e engenhosa ideia: prever de forma
permanente, dentro da PEC do Pacto Federativo, a possibilidade de se acionar o
Orçamento de Guerra, que hoje só vale para essa pandemia. A medida poderia ser
uma saída caso haja uma intensa segunda onda de covid-19 no Brasil, que force
uma ação do governo em 2021.
Mas
esse arcabouço jurídico poderia ser complementado, definindo-se alguma margem
de manobra para o governo fazer uma retirada gradual desse tipo de estímulo,
mesmo com a “operação de guerra” já encerrada. Isto evitaria o que Pires chama
de “abismo fiscal”.
Para
o ex-diretor do BC e economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio
(CNC), Carlos Thadeu de Freitas, faz sentido falar em algum mecanismo de
transição para o início de 2021. Mas ele alerta que isso só é viável se o país
demonstrar compromisso de voltar ao teto de gastos, com a adoção de medidas
estruturais de ajuste fiscal. “Tem que ter força política e mostrar que quer o
teto”, afirmou.
Ao defender com unhas e dentes o teto de gastos, Guedes e sua equipe miram na confiança de investidores do mercado financeiro. Falta também falar com o restante da sociedade.
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