Valor Econômico
Para normalizar o descompasso atual entre
oferta e demanda, é preciso mais do que uma postura burocrática, que é o que
demanda a maioria dos analistas do mercado financeiro
Podemos hoje dizer que o desequilíbrio
causado na economia mundial pela pandemia da covid 19 deve ser entendido como
um Cisne Negro. Esta expressão caracteriza um evento econômico totalmente
inesperado - e agora também desconhecido - e pode ajudar a explicar a crise
inflacionária que atinge as maiores economias do mundo. Os sinais hoje são
claros com um choque de preços que atingiu mercados tão distintos como o de
componentes eletrônicos, petróleo e gás, fretes marítimos internacionais e
commodities agrícolas.
Anexo a esta coluna apresento um gráfico
com os dados da inflação ao produtor na Europa entre 2020 e setembro deste ano.
Ele mostra o comportamento da chamada inflação “na porta de fábrica” nos meses
iniciais da pandemia e após o início dos programas de estímulos adotados pela
grande maioria dos países para enfrentar a quase depressão econômica que se
previa à época. Gráficos semelhantes em outras economias do Primeiro Mundo e do
mundo emergente mostram o mesmo quadro de forma que podemos olhar para a Europa
como campo de teste para entender o surto inflacionário que vivemos hoje.
A informação mais importante do gráfico apresentado é a desproporção entre a deflação ocorrida entre fevereiro e maio de 2020, a recuperação dos preços a partir do segundo semestre e, finalmente, o pico que vivemos hoje. A passageira deflação inicial foi fruto de dois movimentos opostos criados pelo pânico que se instalou: de um lado o isolamento social que fez a demanda por bens e serviços despencar e de outro o movimento racional das empresas para liquidar rapidamente seus estoques - inclusive o representado por encomendas ainda não recebidas - antes que o choque de demanda se aprofundasse como era previsto por todos os analistas.
Este período de preparação para uma queda
da atividade econômica foi acelerado pela demora da maioria dos países em
encontrar uma forma de combater com credibilidade a pandemia apesar da
disponibilidade bastante rápida de vacinas efetivas. Neste cenário as medidas
monetárias - mas principalmente as de natureza fiscal - tomadas pelos governos
nacionais criaram uma geração de renda adicional nos consumidores, com boa
parte dela transformada inicialmente em poupança voluntária na preparação para
o pior que se esperava vir.
Mas a volta progressiva da circulação das
pessoas na medida em que a vacinação se mostrava eficiente - mesmo com o vai e
vem provocado por surtos localizados de piora da pandemia - fez com que a
atividade normal dos consumidores tomasse de surpresa o lado da produção. O
emprego começou a se recuperar na maioria dos países e deve continuar ao longo
dos próximos meses. Os dados sobre geração de empregos nos Estados Unidos
divulgados na última sexta feira mostram que, depois de perder 21 milhões de
empregos privados em abril de 2020, a economia americana já recuperou 16
milhões. A taxa de desemprego voltou a ficar abaixo dos 5% e os salários
aumentaram 4,6% nos últimos 12 meses até setembro. (vejam uma nota do Iedi
sobre o emprego no Brasil na parte final desta coluna).
Preparados para enfrentar uma demanda muito
fraca por longo tempo o setor produtivo não respondeu com rapidez necessária ao
aumento inesperado da demanda. Além disto, enfrentaram - pela primeira vez na
história da globalização da produção - um colapso no sistema de logística entre
países, com o congestionamento de portos e vias marítimas de transporte, e uma
explosão nos custos de movimentação de cargas via containers com um aumento de
mais de 8 vezes o seu custo por metro cúbico de espaço disponível nos navios.
Este descolamento no tempo entre a demanda final efetiva e a oferta de produtos
e componentes por parte do sistema produtivo, inclusive por questões
logísticas, ressuscitou de forma agressiva a velha inflação de demanda de
tempos passados.
Este quadro ficou agravado pelas condições
de liquidez monetária criada pelos Bancos Centrais ainda na fase do pânico
recessivo e que só agora está entrando no radar das autoridades monetárias no
Primeiro Mundo para sua correção. Os juros muito baixos adicionaram uma
componente especulativa em vários mercados mais sujeitos às operações com
contratos futuros. Foi o que aconteceu no Brasil com a taxa Selic em 2% ao ano
em função de projeções extremamente baixas definidas pelo sistema financeiro
para a inflação em 2021 e 2022. Dadas as nossas condições históricas, a
especulação contra o real adicionou um elemento muito forte para a elevação da
inflação.
Mas o desequilíbrio do lado da oferta que
vivemos hoje - e que só poderá ser corrigido ao longo de um tempo mais longo -
faz com que a inflação “da porta da fábrica” deva persistir por pelo menos mais
três ou quatro trimestres entrando, portanto, em 2022. Isto vai exigir das
autoridades monetárias cautela e precisão na gestão do aperto das condições
financeiras ao longo dos próximos meses para evitar uma recessão mais à frente,
sem que a inflação se normalize rapidamente.
É preciso entender que em uma situação de
Cisne Negro como estamos hoje, os protocolos conhecidos não repetem os mesmos
resultados de tempos normais. É preciso, para normalizar o descompasso atual
entre oferta e demanda, mais do que simplesmente uma postura burocrática, mas
que infelizmente é o que demanda a maioria dos analistas do mercado financeiro.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
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