O Globo
Caso André Mendonça se torne ministro do
STF, por causa da pressão dos pastores evangélicos, a boiada, enfim, terá
passado — ao vivo e em cores.
Será a consagração da ideia de cotas
forjada sob a guerra identitária. A esquerda inventou, a direita copiou. Parece
estranho, mas é como a política hoje enxerga a sociedade, a partir de nichos,
setores, clivagens e grupos organizados.
Com vocês, as cotas religiosas.
Porque, afinal, como dizem os pastores,
representam 30% dos brasileiros. Pois é.
O conceito de um país formado por cidadãos com direitos iguais, respeitados em suas liberdades individuais, como falavam pensadores como Stuart Mill e Tocqueville, diante da declarada guerra santa no Bozoquistão, é uma doce canção. Com muita fé, o que se avizinha é uma reedição dos tempos de Constantino, no século IV, quando os arcaicos cristãos destruíam estátuas desnudas, apagavam obras de filósofos pagãos ou derrubavam templos de deuses greco-romanos. Além de perseguir e exterminar o que chamavam de hereges, como aconteceu com a matemática Hipátia, cuja pele foi arrancada pelos fanáticos da época (outros ultrajes em “The Darkening Age”, de Catherine Nixey).
Exagero? Passa longe a empatia religiosa
quando se fala das religiões afro-brasileiras. São contundentes os relatos de
ataques a terreiros em várias cidades, em sinal de evidente intolerância. O
direito das minorias, ou o princípio do Estado laico, é violentado pelo Bozo
quando promete — e cumpre — indicar alguém “terrivelmente evangélico” para o
STF. Ou ao revelar que pediu a André Mendonça, caso aprovado no Senado, que
abra sempre as sessões da Corte com uma oração.
Trump, ao escolher os ministros da Suprema
Corte, dizia cumprir a promessa de indicar perfis conservadores. Jamais se
ateve ao primado religioso como preâmbulo. Podia ser um batista ou um católico
apostólico romano, tanto faz, desde que fiel a princípios tradicionalistas.
Quais sejam: mandar no corpo do outro, na
vontade e na consciência alheias em nome de uma pretensa superioridade moral
(outras invasões em “Ascensão e queda de Adão e Eva”, de Stephen Greenblatt).
Tais ditaduras pareciam superadas, ao menos
aliviadas, dentro da imensidão das metrópoles contemporâneas, com o
esvaziamento de ameaças como o fogo dos infernos, o medo dos trovões e a
excomunhão diante do avanço da ciência. Os grandes centros urbanos sugeriam ser
recantos paradisíacos inacessíveis ao olhar repressor da autoridade religiosa.
Era um engano?
Desde a Segunda Guerra Mundial, quando se
montou uma aliança para derrotar os diversos tipos de retrocesso, a humanidade
caminhou célere com a chegada das novas tecnologias. Diversas conquistas, como
vacinas contra doenças destruidoras, enquanto prolongavam a vida, ao mesmo
tempo ajudavam a desmontar as teologias ancoradas em equivocados pressupostos.
Como pega mal queimar hereges nas
fogueiras, a saída foi retornar de fato à política. Deixar a prosaica
evangelização, hoje vista como ingênua, para ganhar poder e submeter a
sociedade às leis do Estado.
Em nome de Deus, alianças com populistas de
extrema direita, arrivistas de variados quilates, quase sempre sátiros. Do tipo
Trump.
Um livro como “A quarta revolução”, de John
Micklethwait e Adrian Wooldridge, conta como os lobbies (não importa o credo,
mesmo sendo incréus) ajudaram a dividir a sociedade, em busca de suas
exclusivas vantagens, e vergaram o Estado. Grupos organizados, aos poucos,
colocaram nas costas de todos o peso de suas regalias — ou reivindicações. Aí
entram os sindicatos de trabalhadores e os subsídios/isenções a setores
específicos — como as multinacionais fabricantes de refrigerantes e automóveis.
Comparecem os militares com aposentadorias especiais e as pensões para suas filhas
solteironas. Rezam junto os quadros do funcionalismo público — com destaque
fervoroso para o Judiciário.
O avanço dos grupos organizados, escrevem
os autores, se deu a partir de estratégias e visões defendidas pelos movimentos
de esquerda. Quando o Estado aparece como o pai de todos — ao menos daqueles
capazes de gritar mais alto.
Depois de os movimentos identitários de
esquerda forjarem as diversas reivindicações, justas ou não — na representação
política, nos cargos do funcionalismo público, nas vagas das universidades etc.
—, a turma de Malafaia avança no butim ao criar a cota evangélica. Às favas os
desorganizados.
Quem não rezar, não mama.
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