quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Congresso tem dever de dar fim aos supersalários

O Globo

Levantamento do GLOBO estima em R$ 6,7 bilhões os penduricalhos que juízes receberam além do teto salarial

Na abertura do ano judiciário, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, minimizou o peso da Justiça nos cofres públicos. Afirmou que o custo dos tribunais para os contribuintes, atualmente em 1,2% do PIB (ou 1,6% se considerado o Ministério Público), é decrescente. Ora, Barroso esquece o essencial: a Justiça brasileira é, por todas as medidas disponíveis, a mais cara do mundo para a sociedade. Nos países emergentes, os tribunais custam 0,5% do PIB. Nas economias avançadas, 0,3%. Além de caríssima, a Justiça brasileira é ineficiente. O Índice do Estado de Direito, medida da percepção sobre o trabalho dos tribunais elaborada pelo World Justice Project, põe o Brasil em 80º lugar entre 142 países.

O argumento de que, em contraste com outros países, o Brasil tem uma Constituição que judicializa toda sorte de tema — portanto, necessariamente terá uma Justiça mais cara — não justifica os supersalários recebidos pela elite nos tribunais e nas procuradorias, que corresponde a apenas 0,06% do funcionalismo. Só os juízes custaram em 2024, de acordo com levantamento do GLOBO, R$ 6,7 bilhões em auxílios e indenizações recebidos além do teto salarial (R$ 46.266, a remuneração mensal dos ministros do STF). Isso sem contar benefícios comuns na iniciativa privada, como auxílio-saúde, auxílio-alimentação ou gratificação natalina. Levando tudo em conta, o total chega a R$ 12 bilhões, ou um décimo do custo do Judiciário. Na média de todos os tribunais do país, o pagamento acima do teto por magistrado foi de R$ 270 mil. Isso para uma categoria que está na fatia de 1% de maior renda no país.

A situação tem piorado. Em 18 estados analisados pelo centro de pesquisa Justa, as despesas com tribunais, Ministério Público e Defensoria Pública saltaram até 36% entre 2022 e 2023. Acrescentando ao próprio salário toda sorte de “penduricalho” que possa ser considerado “verba indenizatória”, mais de 90% dos juízes e procuradores ganham acima do que a Constituição permite, segundo o economista Bruno Carazza. A Carta prevê expressamente que verbas indenizatórias fiquem fora do teto salarial, mas não define a categoria. Isso deveria ter sido feito por lei federal, mas até hoje não foi. No vácuo, uma infinidade de decisões burla o espírito da lei com auxílios de todo tipo, de moradia a pré-escola.

Na semana passada, em ato tão necessário quanto raro, o ministro do STF Flávio Dino anulou decisão da Justiça Federal em Minas Gerais que concedeu a um ex-juiz federal valores retroativos de auxílio-alimentação. Dino faz eco a posições assumidas pela ex-ministra Rosa Weber e pelo ministro Gilmar Mendes contra tais abusos. É mais que bem-vindo o desafio à postura corporativista do Judiciário, que só tem contribuído para agravar as distorções.

Chegou a hora de o Brasil enfrentar de forma sistemática os desvarios. É papel dos congressistas fazer valer o limite legal para remuneração do funcionalismo. Infelizmente, em dezembro, o Congresso promulgou uma emenda constitucional mantendo os supersalários inalterados até a lei regulamentar as verbas fora do teto. Venceu o lobby da elite do funcionalismo, perdeu o país. O governo promete para este ano um Projeto de Lei sobre o assunto. Executivo e Legislativo têm o dever de dar um fim aos supersalários e à farra dos auxílios extrateto.

Criação de força armada municipal no Rio é uma iniciativa acertada

O Globo

Novos agentes deveriam ser obrigados por lei a usar câmeras nas fardas, como outras corporações

O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), apresentou à Câmara de Vereadores o projeto para criar uma força municipal armada com foco no combate aos roubos na capital fluminense. É iniciativa oportuna diante da insegurança que aflige os cariocas. Em entrevista ao GLOBO, Paes afirmou que a Força Municipal de Segurança não combaterá tráfico e milícia, nem participará de operações em comunidades, como as polícias Militar e Civil. O plano, diz ele, é que faça “policiamento preventivo comunitário” nas áreas com maior incidência de roubos de celulares ou veículos. “A ideia é liberar a PM de certas tarefas que ela tem hoje para cumprir missões mais complexas”, afirmou.

Pelo projeto da prefeitura, a nova força, que será independente da Guarda Municipal, terá 4,2 mil agentes, recrutados de preferência entre militares da reserva das Forças Armadas, com salário inicial de R$ 13,3 mil. A meta, segundo o vice-prefeito Eduardo Cavaliere, é treinar 600 guardas por semestre. A prefeitura diz que tentará colocar os primeiros na rua ainda neste ano, mas reconhece que a estreia poderá ficar para 2026.

Não se duvida da necessidade de um policiamento comunitário no Rio, especialmente nas áreas de maior incidência de crimes. A exemplo de moradores de outras cidades do país, os cariocas estão alarmados com a violência. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que, enquanto os homicídios na capital caíram 5,5% em 2024 em relação a 2023, os roubos subiram (de veículos, 40,4%; de celular, 40,1%; de carga, 24,3%; a pedestres, 4%). Por fazerem parte do cotidiano das cidades, roubos de rua costumam ter impacto na sensação de insegurança.

Seria imperativo que a nova corporação adotasse desde o início câmeras nas fardas. Por enquanto, isso não está previsto na proposta. Seguindo tendência de outros países, câmeras acopladas aos uniformes já são adotadas em maior ou menor grau em pelo menos dez estados do Brasil, entre eles São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Estudos mostram que o equipamento tem sido importante para tornar operações e abordagens mais eficazes. As gravações protegem tanto cidadãos quanto policiais. São essenciais nas investigações sobre suspeitas de uso excessivo da força ou de acusações infundadas contra agentes. O uso de câmeras seria útil, pois uma simples abordagem pode originar conflito.

A chegada do projeto à Câmara, onde passará por comissões e audiências públicas, é uma oportunidade para discutir a adoção das câmeras corporais. É preciso considerar que, em contraste com os guardas municipais, os novos agentes andarão armados e atuarão em áreas de grande circulação. Terão, portanto, responsabilidade maior. Reforçar o policiamento ostensivo num momento em que a violência acua moradores é iniciativa acertada. É essencial dotá-la de instrumentos modernos para que as ações ocorram dentro da lei, com total transparência.

Commodities determinam grandes saldos comerciais

Valor Econômico

Países que compram produtos industriais brasileiros deslocaram sua demanda para os concorrentes chineses, às voltas com superprodução em vários segmentos da economia

A América Latina sumiu do mapa dos países com os quais o Brasil obtém seus maiores saldos comerciais. A Argentina, tradicional parceiro, mais Chile e México figuravam em 2023 entre os que propiciavam os dez maiores superávits brasileiros. Foram substituídos no ano passado por países do Oriente Médio e da Ásia, basicamente pelas compras de commodities do Brasil. O resultado total do comércio exterior produziu um superávit de US$ 74,6 bilhões no ano passado, 25% menor que em 2023, mas, ainda assim, o segundo maior da série. Esse bom desempenho, no entanto, não encobre fragilidades conhecidas.

A área natural de trocas econômicas do Brasil, maior economia da região, são seus vizinhos - e deixou de ser. Eles estavam entre os principais compradores de bens manufaturados, mas estão adquirindo menos, seja por problemas domésticos, como é o caso evidente da Argentina, seja porque os produtos brasileiros passaram a ser substituídos, já há algum tempo, por importações da China. A complexidade tecnológica das exportações brasileiras, um dos fatores com que se pode medir o grau de competitividade de um país, tem diminuído constantemente. O avanço das vendas externas de commodities supre a lacuna da vulnerabilidade das vendas industriais de maior valor agregado, como mostram os números da balança comercial. Mas isso tem um preço.

Na balança comercial, os saldos positivos continuam muito concentrados. Mais de dois terços do superávit total em 2024 foi obtido com apenas quatro países - China, Holanda, Cingapura e Espanha. Só o saldo com a China foi de 41,4% do total (em 2023 fora maior, de 51,7%). Outro exemplo de concentração: 75% do que a China importa são soja, petróleo e minério de ferro.

O fôlego exportador perdeu algum ímpeto, logo depois do desempenho recorde de 2023, e veio acompanhado de um aumento vigoroso das importações, decorrente do compasso acelerado da economia. Os bens agrícolas tiveram alguma redução de quantidade, devido a problemas climáticos, e o minério de ferro teve preços um pouco menores. O déficit industrial, no entanto, subiu. Alguns mercados reduziram muito o consumo de manufaturados, como a Argentina, que passou por grave recessão no ano passado, mas outros fatores interferiram. Países que compram produtos industriais brasileiros deslocaram sua demanda para os concorrentes chineses, às voltas com superprodução em vários segmentos da economia.

A baixa competitividade da indústria brasileira faz com que o país dependa cada vez mais das commodities. As exportações da indústria de transformação somaram 54% do total do Brasil vendido ao mundo, mas as importações em alta trouxeram um déficit do setor de US$ 56,9 bilhões, segundo cálculos do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). Por outro lado, vendas da agropecuária, mineração e pesca asseguraram um saldo positivo de US$ 131,4 bilhões.

O Iedi classifica os bens nas categorias de alta, média-alta, média, média-baixa e baixa tecnologia. Os bens da indústria de transformação, como são intensivos em tecnologia, são enquadrados como alta e média-alta, e eles apresentaram no ano passado um resultado negativo de US$ 123,8 bilhões. Os de média-baixa e baixa tecnologia, que englobam bens industriais e commodities, foram superavitários em US$ 192,2 bilhões. Na indústria de transformação são também computados como exportações celulose, carnes, açúcar, açúcares, farelo de soja, óleos combustíveis, fruto de processamentos, com maior ou menor grau de complexidade, de commodities agrícolas ou minerais.

Apesar do robusto superávit comercial, a balança de bens de alta intensidade teve déficit de US$ 45,8 bilhões, segundo o Iedi o maior da série em dólares correntes. As vendas ao exterior não deixaram de crescer (subiram 11,4%), performance atribuída basicamente aos produtos da indústria aeronáutica, que também importa muito, contribuindo com 39% do saldo negativo - o restante veio do avanço das compras de bens do complexo eletrônico e farmacêutico.

Os produtos de média-alta intensidade não foram muito melhor. Registram saldo negativo de US$ 78 bilhões, o segundo maior da série e o maior déficit nas cinco categorias de intensidade tecnológica. Os bens de média tecnologia tiveram superávit de US$ 5,6 bilhões, que foi o menor desde 2020, com queda de 4,2% nas exportações e alta de 9,7% nas importações.

Independentemente de conceitos - uma boa parte dos especialistas atribui alto uso de tecnologia na produção de commodities - o problema maior está, há um bom tempo, na competitividade da indústria, tradicionalmente a maior impulsionadora dos ganhos de produtividade, dos melhores salários e dos melhores empregos na economia. Quanto mais restrito o ímpeto exportador de manufaturados, menores serão os avanços de produtividade e maiores as chances de que percam espaço em seu próprio mercado doméstico. A proteção tarifária, que favorece em muitos casos a ineficiência, será cada vez menos capaz de barrar as importações.

Lula faz demagogia ao criticar preço dos combustíveis

Folha de S. Paulo

Presidente diz que intermediários são responsáveis por 'assalto' contra consumidores, mas gasto público gerou inflação

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) alardeia ter descoberto um modo de diminuir o preço dos combustíveis. Basta acabar com os "intermediários", que distribuem e revendem esses produtos, os responsáveis pelo "assalto" do povo. Além do mais, o valor pago nas bombas pouco teria a ver com a Petrobras e com o governo federal, já que os estados cobram impostos.

Não se sabe se Lula acredita nessa propaganda, mas parece crer que, assim, tiraria das costas o peso do desgosto popular com a inflaçãoAtormentado pela baixa inédita de sua popularidade, o presidente se esquiva de suas responsabilidades.

Há quase um mês, afirmou que tomaria medidas para reduzir os preços dos alimentos, sem apresentar providência. Vaticina que os pobres logo terão mais "dinheiro na mão". Antecipa que o Banco Central baixará a taxa Selic, assunto sobre o qual não tem ou não deveria ter ingerência.

A pretexto de esclarecer "o povo", Lula difunde informação falsa. Com o objetivo de causar indignação, o petista disse que o diesel deixa as refinarias da Petrobras a R$ 3,03 por litro e é vendido por quase o dobro nos postos —a R$ 6,47, na média, segundo levantamento da Agência Nacional do Petróleo (ANP).

Na tabela publicada pela própria Petrobras, com base em dados da ANP, a parcela da petroleira no preço médio final é de 46,8%. O de impostos estaduais, 17,3%; os federais, 4,9%. A mistura de biodiesel custa 12,5% do total. Distribuição e revenda, 18,4%.

O presidente abrirá mão do imposto federal ou forçará estados a fazer isso, como fez Jair Bolsonaro (PL)? Em seu governo, Lula voltou a tributar o combustível e ofereceu compensações aos estados pelas perdas de arrecadação.

O mandatário prega intervenção estatal na distribuição e revenda de combustíveis. Pediu à Petrobras que se encarregasse da tarefa. Parece achar que os custos de logística, armazenagem, transporte, negociação e administração assim desapareceriam.

Talvez Lula esteja a dizer que há cartéis ou distorções na distribuição e na revenda. Tomou alguma atitude a respeito ou ao menos solicitou estudos a fim de verificar problemas nesse mercado?

Não há notícia de tais iniciativas. Restam fantasias desinformadas, arengas demagógicas e insinuações de intervenção estatal daninha. Lula queria retomar o poder sobre a Eletrobras, empresa que teve graves prejuízos com o aparelhamento em governos petistas, assim como no caso da Petrobras e dos Correios, para citar os mais escandalosos.

Desnorteado, o presidente reabre o baú de palavras vazias e ensaia intervenções equivocadas. Teme-se que o governo tente evitar um possível desaquecimento da atividade econômica com medidas populistas e mais gastos, que estão na raiz do dólar caro que pressiona tanto os alimentos quanto os combustíveis.

Espera-se que Lula tenha clareza dos riscos dessa estratégia para seu futuro político.

Rio aos 44 graus é mais um alerta para conter emissões

Folha de S. Paulo

Eventos extremos evidenciam projeções sobre crise do clima; é preciso implementar o Acordo de Paris e plano de adaptação

Em 1955, Nelson Pereira dos Santos lançou o filme "Rio 40 Graus". Houve na época quem considerasse exagero tal temperatura, que 70 anos depois parece se tornar fenômeno corriqueiro com o planeta assolado pelo aquecimento global.

Guaratiba, na zona oeste da capital, registrou 44ºC na segunda (17), a maior marca da série histórica iniciada em 2014 —o recorde anterior foram os 43,8ºC de 18 de novembro de 2023.

Numa escala que vai até 5, foi atingido o nível 4 de calor (quando os termômetros indicam mais de 40ºC por três dias seguidos) no protocolo municipal para temperaturas extremas, o que levou à abertura de 58 pontos de resfriamento pela cidade.

Alertas de calor extremo foram emitidos para 17 localidades do estado. No total, o aviso seguiu para 92 prefeituras, incluindo cidades vizinhas, para prontidão da defesa civil. Crianças e idosos são os mais vulneráveis.

O Rio Grande do Sul viveu situação similar na semana passada, com temperaturas em torno dos 40ºC na fronteira oeste do estado. Agora os alertas do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) são para a ocorrência de temporais no Sul. Já na segunda-feira havia 17 cidades gaúchas relatando danos com chuvas.

Os flagelos se repetem em linha com o antecipado há décadas por climatologistas, impotentes contudo para motivar medidas de governantes para adaptação de populações e infraestrutura à mudança do clima: uma atmosfera aquecida produziria eventos extremos —ondas de calor, estiagens graves, inundações devastadoras, incêndios florestais— cada vez mais frequentes.

Para tentar conter a escalada de gases do efeito estufa, adotou-se no Acordo de Paris (2015) a meta prudencial de manter o aquecimento médio global em 1,5ºC acima de níveis pré-industriais, no máximo 2ºC. Mas as emissões continuaram subindo.

O ano mais quente registrado foi 2024 (+1,6ºC), com o fenômeno El Niño. Mesmo com a chegada em 2025 de La Niña, que resfria as águas do Pacífico e usualmente arrefece o clima planetário, o mundo teve o mais quente janeiro medido na história.

Alguns estudos indicam que a Terra pode já ter entrado num período sustentado de temperaturas acima de 1,5ºC, algo que só seria declarado após ao menos uma década de observações.

Não há ainda boa explicação para o janeiro escaldante, mas incertezas inerentes ao entendimento de sistemas climáticos nunca foram boa razão para cruzar os braços diante de riscos prognosticados. O tempo virou.

Bolsonaro a caminho do banco dos réus

O Estado de S. Paulo

Denúncia da PGR contra ex-presidente sob acusação de tentativa de golpe tem de ser analisada com serenidade pelo STF. Não pode haver dúvida sobre um processo que tende a sacudir o País

A Procuradoria-Geral da República (PGR) ofereceu denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros 33 suspeitos de envolvimento numa suposta trama golpista para impedir a posse do presidente Lula da Silva, legitimamente eleito em 2022. Todos foram acusados pelo procurador-geral, Paulo Gonet, de terem cometido os crimes de organização criminosa, tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, entre outros delitos. Somadas, as penas podem chegar a quase 30 anos de prisão.

O Estadão apurou que, no caso de Bolsonaro, Gonet concluiu que o ex-presidente não só tinha conhecimento da sedição, como tomou a frente das articulações para dar um golpe e, assim, permanecer no poder.

O oferecimento da denúncia já era esperado à luz do robusto conjunto de elementos de autoria e materialidade contra os acusados reunidos pela Polícia Federal (PF). O momento, no entanto, é de serenidade, a bem da própria Justiça, já que se trata de um processo que tende a sacudir o País. Em que pesem a gravidade da acusação e a substância desse arcabouço probatório – ao menos o conteúdo que veio a público até o momento –, é o caso de lembrar que nem Bolsonaro nem os demais denunciados ainda são réus, que dirá culpados de qualquer dos graves crimes que lhes foram imputados pela PGR.

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) – composta pelos ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Flávio Dino – ainda decidirá se aceita ou não a denúncia, o que determinará o início de uma eventual ação penal. Só então os denunciados deixam essa condição para se tornarem formalmente réus.

Embora não integre a Primeira Turma, o ministro presidente do STF, Luís Roberto Barroso, afirmou em entrevista que a Corte selará o destino penal de Bolsonaro “com seriedade, examinando provas”. É o que este jornal espera, e não de agora, de qualquer juízo ou tribunal. Mas é forçoso dizer, evidentemente, que Barroso só disse o que disse para responder às justas críticas que têm sido feitas à notável politização do Supremo.

Obviamente, o mínimo que se pode esperar do julgamento de Bolsonaro e dos outros acusados é que ele seja mesmo despolitizado, vale dizer, que o processo seja conduzido com rigor técnico. Todavia, o simples fato de esse anseio elementar ter de ser externado diz muito sobre o contexto que envolve o caso mais importante sob a guarda do Supremo em 2025. Se para todo julgamento a aura de equidade e retidão dos julgadores não pode ser tisnada sem que todo o processo seja comprometido, essa verdade é particularmente relevante no julgamento de um ex-presidente acusado de tramar um golpe de Estado.

Foi o próprio sr. Barroso, convém lembrar, quem alimentou essa desconfiança ao se colocar pessoalmente como um dos responsáveis por “derrotar o bolsonarismo”. Quando admoestado no exterior – indevidamente – por um bolsonarista, Barroso repeliu a abordagem com o hoje famoso bordão “perdeu, mané”.

Essa atmosfera de desconfiança na atuação do STF no que concerne à denúncia contra Bolsonaro foi diligentemente cultivada pela Corte – e só por ela há de ser dissipada. Para isso, é fundamental que agora o Supremo se ocupe da denúncia com técnica e temperança, não se deixando arrastar por pressões políticas ou ideológicas externas e, sobretudo, internas. As desventuras da Operação Lava Jato, movida pela crença messiânica de que trabalhava pela regeneração nacional, devem servir de exemplo do que acontece quando a exceção se torna regra e, em nome da luta contra o mal – seja a corrupção, seja o golpismo –, o Judiciário se permite ignorar o devido processo legal.

O que está em jogo, ao fim e ao cabo, não é apenas o futuro de Bolsonaro, mas também a própria credibilidade do sistema de Justiça. Disso depende o vigor e a legitimidade da duríssima resposta que deve ser dada a todos os que tentaram solapar a democracia brasileira.

O pior cego

O Estado de S. Paulo

Pesquisas mostram que cresce na população a percepção de um ecossistema cada vez mais profícuo para a corrupção. Mas o governo está mais preocupado em recriminar os mensageiros

O Brasil atingiu sua pior colocação no Índice de Percepção da Corrupção (IPC) da Transparência Internacional (TI), caindo da 69.ª posição, com 43 pontos (numa escala de integridade de 0 a 100) no início da série histórica em 2012, para a 107.ª (entre 180 países), com 34 pontos.

Como já virou rotina, o governo, via Controladoria-Geral da União (CGU), abriu fogo contra o mensageiro. “Conversa de boteco”, desdenhou o ministro Vinícius Marques, cobrando a TI por aquilo que ela não promete: um índice de ocorrência da corrupção. A ironia é que esse mesmo índice ora espinafrado pelo governo de Lula da Silva foi considerado confiável e pertinente pelos petistas quando apontou problemas nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro.

A corrupção é, por natureza, um crime elusivo. Assassinatos ou roubos são facilmente mensuráveis, ainda que os criminosos não sejam identificados ou punidos. Mas, quanto mais competentes os corruptos, mais invisíveis são seus crimes.

Por isso, o IPC cruza dados de 13 organizações internacionais reputadas com enquetes com lideranças jurídicas, empresariais e acadêmicas para medir a “percepção”. Não que ela seja uma mera emoção sem esteio objetivo. Fatores como arbitrariedade e falta de transparência criam um ecossistema fértil à ilicitude. Interpretando as percepções dos especialistas, o relatório da TI elenca condições concretas de risco ou probabilidade de corrupção, ou seja, o cardápio de “ocasiões” que fazem os ladrões. Em 2024, muitas foram gestadas no Executivo, Judiciário e Legislativo.

O loquaz presidente Lula da Silva não só cultiva um silêncio ensurdecedor sobre a pauta anticorrupção, como concertou com o Congresso o fortalecimento das emendas ao Orçamento – uma usina de irregularidades –, omitiu-se diante de indícios de desvios na Codevasf e de mau comportamento de seu ministro das Comunicações, premiou com benefícios bilionários os irmãos Batista – outrora relacionados a cabeludos casos de corrupção –, interferiu na gestão de estatais para acomodar apadrinhados, bateu recordes de negativas a pedidos de acesso à informação e mantém nas sombras as operações do “Novo PAC”.

Para a surpresa de ninguém, a TI constata que “foi no âmbito do Judiciário, em particular no STF, onde mais se avançou, em 2024, o desmonte da luta contra a corrupção”. As canetadas monocráticas de Dias Toffoli anularam no atacado provas e multas contra centenas de criminosos confessos condenados na Operação Lava Jato. A Procuradoria-Geral da República apresentou recursos contra todas estas decisões, mas – emaranhados em conflitos de interesses, espremidos entre eventos de lobistas – os ministros não encontraram tempo para julgá-los.

Já o Congresso, mesmo se dedicando sofregamente à legalização de cassinos e bets, encontra tempo para ampliar com apetite pantagruélico o volume e as modalidades das emendas, que, sob uma cortina de fumaça regimental, degradam políticas públicas, pulverizam a corrupção e distorcem a competição democrática.

À captura do Estado por corporações oligárquicas, some-se a infiltração cada vez mais desabrida do crime organizado nos espaços de poder.

Em sua nota, a CGU sugere que o governo está sendo penalizado por seu afinco no combate à corrupção, já que a “exposição de casos e investigações impacta negativamente a percepção sobre o problema”. Longe de reconhecer a gravidade dos fatores de risco cotejados pelo IPC, a CGU entende que ele mesmo mina a “confiança nas instituições democráticas” ao se embasar em pesquisas com “empresários” que não exprimem a “percepção da população” e distorcem o debate. Faltou pouco para denunciar a TI como um agente de desinformação da extrema direita, empenhada em atacar a democracia e conspirar contra o governo do povo.

Ironicamente, no mesmo dia, uma pesquisa do PoderData revelou que em um ano cresceu de 39% para 45% a parcela da população que acha que aumentou a corrupção sob Lula; e outra da Atlas informou que as maiores preocupações da população são, de longe, a criminalidade e a corrupção, e entre as maiores reprovações ao governo estão, ora vejam, o combate à criminalidade e à corrupção.

Displicência com a inflação

O Estado de S. Paulo

No Brasil, inflação nunca é algo que possa ser relativizado, especialmente pelo ministro da Fazenda

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, acredita que a inflação esteja “relativamente” dentro da normalidade brasileira desde o Plano Real, em 1994. “O Brasil deixou de ter uma inflação de dois dígitos. Hoje, tem inflação entre 4% e 5%, relativamente dentro da normalidade desde que o real foi implementado”, afirmou, ao participar de um painel na conferência do Fundo Monetário Internacional (FMI) na Arábia Saudita.

Qualquer cidadão com mais de 40 anos tem memória vívida dos anos de hiperinflação. Felizmente, o País deixou para trás um período em que havia remarcações diárias de itens de supermercados, seguidas por troca de moedas, confiscos, congelamentos e tabelamentos, iniciativas tão conhecidas quanto fracassadas para controlar os preços. A hiperinflação deixou traumas profundos na sociedade brasileira, e não foi por acaso que o ministro da Fazenda que lançou um plano capaz de debelá-la foi eleito e reeleito presidente da República na década de 1990. A população estava cansada de tanto amadorismo e, no momento em que conheceu a estabilidade econômica, passou a defendê-la como um valor a ser preservado.

Dito isso, não se pode dizer que a inflação esteja dentro da normalidade quando o índice está acima da meta de 3%. Meta, como se sabe, é para ser cumprida, e os limites inferior e superior servem para acomodar choques. Em janeiro, o IPCA acumulado nos 12 meses ficou em 4,56%, mas o índice teria chegado a 5,13% não fosse o bônus nas contas de luz da energia gerada pela usina de Itaipu – uma contribuição que, aliás, não se repetirá em fevereiro.

Ademais, o IPCA espelha uma cesta de consumo média da população, mas há muitos itens que subiram bem mais e que pesam no bolso das famílias mais carentes, entre eles alimentos. Não parece ser mera coincidência, portanto, que a popularidade do presidente Lula da Silva tenha atingido o pior nível de seus três mandatos e caído mais entre mulheres e habitantes do Nordeste.

Inflação nunca é algo a ser relativizado, mas é especialmente preocupante quando é o ministro da Fazenda quem o faz. O gasto público excessivo é um motor que estimula a economia e aquece a demanda, e o governo, quando se recusa a fazer sua parte por meio de uma política fiscal mais austera, deixa toda a responsabilidade de conter a inflação para o Banco Central.

A atual taxa básica de juros, em 13,25% ao ano, é reflexo disso, e nada indica que o cenário deva melhorar no curto e médio prazos. Mesmo com a perspectiva de que o Copom eleve a Selic a 14,25% ao ano em março, a mediana das expectativas para o IPCA deste ano subiu pela 18.ª semana consecutiva, para 5,60%, segundo o Boletim Focus.

Com a experiência de quem coordenou o Índice de Preços ao Consumidor da Fipe por 26 anos, o economista Heron do Carmo disse ao Estadão que projeta uma inflação de 5,5% neste ano. Mas a previsão dele depende da adoção de medidas adicionais de controle do gasto público, já descartadas pelo presidente. Nada, portanto, parece relativamente dentro da normalidade, a não ser a displicência com que governos petistas lidam com a inflação.

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