quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Em defesa do Estado - Martin Wolf

Valor Econômico

Uma sociedade complexa é mais bem atendida por um serviço público competente, profissional e neutro

Sociedades civilizadas dependem das instituições. Quanto mais complexa a sociedade, mais vital são essas instituições. Instituições proporcionam estabilidade, previsibilidade e segurança. Empresas, escolas, universidades e tribunais são instituições. No entanto, as instituições mais importantes são as do Estado. É por isso que a ofensiva de Donald Trump contra o que seus apoiadores de forma enganosa chamam de “o Estado profundo” é tão perigosa. Alguns deles acreditam que o Estado deveria ser servil aos caprichos do grande líder. Outros acham que deveria estar a serviço dos mais ricos. Ambos esses lados concordam que a capacidade do Estado de atender às necessidades do grande público é de pouca importância. Esses pontos de vista são perigosos. Prenunciam autocracia, plutocracia e disfunção.

Em uma importante série de artigos, “Valuing the Deep State” (Valorizando o Estado profundo, em inglês), Francis Fukuyama, de Stanford, examina por que a evisceração do Estado se mostrará tão destrutiva. Fukuyama devotou grande parte dos últimos 20 anos para explicar que “um Estado de alta capacidade, profissional e impessoal, é crucial para o sucesso de qualquer sociedade”, inclusive, notavelmente, as democracias modernas liberais. Esse ponto de vista é abominado por muitos americanos: eles veem o Estado - ou simplesmente o “governo” - como o inimigo.

No entanto, qualquer um que tenha trabalhado na área de desenvolvimento econômico, como eu, sabe que, sem um serviço público neutro, competente e profissional, nada na sociedade realmente funciona. Quanto mais complexa e refinada uma sociedade e economia moderna se torna, mais isso é verdadeiro. Como Fukuyama observa acertadamente, o sucesso extraordinário das economias do Leste da Ásia se deve em grande medida ao fato de que eles entenderam como administrar esse Estado muito antes do que o Ocidente. Ainda mais relevante, ele argumenta que uma “democracia bem-sucedida [...] precisa de um Estado que seja restringido pelo Estado de Direito e pela prestação de contas democrática”.

Nos EUA, a criação de um Estado como esse começou em 1883, argumenta Fukuyama, com a Lei Pendleton, que criou a Comissão de Serviço Civil e estabeleceu critérios baseados no mérito para as contratações e as promoções no serviço federal. Isso é o que o governo Trump - ou, como rotula o historiador Timothy Snyder, o “governo Mump”, para dar o devido crédito ao papel singular desempenhado por Elon Musk - deseja derrubar.

Como explica Fukuyama, o sistema burocrático dos EUA está longe de ser perfeito. O problema, porém, não é, como argumentam os críticos de direita, o fato da delegação de decisões. Alguém imagina que decisões técnicas sobre a segurança das aeronaves ou dos medicamentos, os controles de poluentes perigosos ou a gestão do lixo nuclear deveria ser decidida, em seus detalhes, por parlamentares? Obviamente, decisões desse tipo precisam ser delegadas a especialistas qualificados. A noção de que, em vez disso, elas deveriam ser decididas por pessoas cuja principal qualificação é a lealdade cega ao grande chefe é absurda.

Você não torna um sistema complexo mais “eficiente” cortando-o de forma aleatória. No entanto, você pode, sim, aterrorizar seus funcionários. Portanto, os verdadeiros objetivos são a intimidação e a substituição de servidores públicos genuínos por discípulos

A realidade é que essas “reformas” não têm nada a ver com tornar o governo mais eficiente. O objetivo é, na verdade, tornar “Mump” todo-poderoso. O jogo foi revelado pelo próprio J. D. Vance, segundo o qual, se Trump voltasse a vencer a presidência em 2024, ele deveria “demitir todos os burocratas de nível médio, todos os funcionários públicos do Estado administrativo, substituí-los por nossa gente [...]”. “E quando os tribunais te impedirem, apresente-se diante do país, como Andrew Jackson fez, e diga: ‘O presidente da Suprema Corte de Justiça tomou sua decisão. Agora, deixe-o [tentar] aplicá-la’”. Até aí, portanto, chegou a noção de que os EUA são “um governo de leis, não de homens”. Isso é um golpe.

Esse esforço também não vai transformar as contas públicas. No acumulado do ano fiscal de 2025 até agora, 78% dos gastos federais foram feitos pela previdência social, saúde, defesa, segurança de renda, benefícios para veteranos e juros líquidos. Musk diz que a Doge pode economizar US$ 2 trilhões ao ano. Com gastos de 2024 na faixa de US$ 6,8 trilhões, isso parece absurdo.

Em suma, você não torna um sistema complexo mais “eficiente” cortando-o de forma aleatória. No entanto, você pode, sim, aterrorizar seus funcionários. Portanto, os verdadeiros objetivos, como Anne Applebaum observa, são a intimidação e a substituição de servidores públicos genuínos por discípulos. Os benefícios são claros: isso permitirá que os responsáveis usem os poderes do governo para processar “inimigos”, intimidar jornalistas, espalhar mentiras, ignorar a ciência e atacar governos estaduais e municipais que saiam da linha, se necessário à força. E quanto ao Estado de Direito? Vance já disse o que pensa dessa ideia. O objetivo, então, é transformar os EUA em uma ditadura plebiscitária, na qual o detentor do poder é rei. Essa revolução será compatível com eleições justas no futuro? É preciso ter dúvidas quanto a disso.

Afinal, grande parte de tudo isso será irreversível. Uma vez que a lealdade substitua a integridade e as mentiras substituam a verdade, o caminho de volta será longo. Uma vez que você demita servidores públicos competentes e honestos, com que facilidade você encontrará pessoas similares no futuro? Os serviços de inteligência, os de dados e os de análises científicas dos EUA eram referências mundiais. Quanto disso sobreviverá? Um dos testes para o emprego será se alguém aceita a mentira de que Trump venceu em 2020. Provavelmente, apenas concordarão os carreiristas e os fanáticos do movimento “Maga” (Make America Great Again).

Se o tipo de Estado elogiado por Fukuyama for substituído pelo que se pretende agora, é inevitável o surgimento de uma mistura venenosa de incompetência, predação e corrupção. Entre as características prejudiciais estará o que Daniel Kaufmann, pesquisador sênior da organização sem fins lucrativos Results for Development, chama de “captura do Estado” - a exploração do poder por aqueles que são capazes não apenas de dobrar as regras, mas de criá-las, para seu próprio benefício. Para um país de alta renda, os EUA já estão relativamente capturados. Isso, contudo, está prestes a piorar, agora que as regras de proteção à independência dos funcionários públicos estão por ser abolidas.

O que está acontecendo é destruição, não reforma. Não importa o que tenham dito a eles, os americanos comuns não se beneficiarão do caos. Mas sabemos quem vai se beneficiar. (Tradução de Sabino Ahumada)

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