Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Quem recorre à Justiça precisa da garantia
da neutralidade dos juízes e da universalidade do direito que os orienta
A obsessão materialista, porque
oportunista, do presidente da República de indicar um evangélico para uma vaga
no Supremo Tribunal Federal cria, em relação à escolha, o indevido pressuposto
da instrumentalização política de igrejas e seitas.
Nunca houve, em relação ao Supremo, a
preocupação de indicar alguém de determinada religião para compô-lo. No que diz
respeito à crença dos indicáveis, a religião é atributo privado.
O professante de qualquer religião, ou de
nenhuma, sendo profissionalmente vinculado ao direito e com reconhecido saber
jurídico, está habilitado à indicação ao Senado para que o examine e
eventualmente o confirme. A verificação de competência não passa pela teologia.
Ministros na história do STF, ou mesmo todos, têm sido de confissão supostamente católica, embora nenhum tenha sido um candidato do catolicismo, um pregador que dividisse a cátedra com o púlpito. Nenhum foi recrutado na hierarquia católica.
É possível até que algum tenha sido convictamente
acatólico, como eram definidos os não católicos no passado. O que não sabemos,
simplesmente, porque a religião ou não religião de cada ministro tem sido
cuidadosamente mantida fora da pauta de seus julgamentos.
Com a República, o Estado brasileiro deixou
de ser um Estado confessional. Nos tribunais, os juízes que professam alguma
religião a deixam do lado de fora da instituição. Colocar uma identidade entre
parênteses para não perturbar outra que com ela possa conflitar é um requisito
do funcionamento do Estado moderno.
O problema que se põe, no caso da indicação
de um evangélico para o STF, como pretende o presidente da República, é que o
nome cogitado e já de domínio público não é apenas protestante, mas pastor
ativo de uma igreja presbiteriana de Brasília.
Terá a sociedade brasileira a segurança de
que no trânsito semanal do púlpito para a cadeira de ministro da Corte Suprema
os respectivos valores e orientações ficarão devidamente confinados e
separados? De modo que a dupla personalidade do ministro não leve a uma troca
de lugares de uma e de outra?
Os valores da Justiça devem ser universais.
Os que a ela recorrem precisam da garantia da neutralidade dos juízes e da
universalidade do direito que os orienta.
O conflito de religiões na estrutura do
Estado se manifestou no Brasil já em 1891. Um convocado para servir na sessão
do júri do Rio de Janeiro, Miguel Vieira Ferreira, militar e pastor, recusou-se
a servir como jurado se, nas sessões, permanecesse na sala do júri um
crucifixo. Invocava a separação entre Estado e religião, já decretada.
Houve reações de rua à exigência cidadã. O
efeito foi a entronização de Cristo nas salas de júri de todo o país. A sala do
plenário do STF é ornada por uma cruz, o que já foi objeto de desconforto
cauteloso de um dos ministros atuais.
O pastor levantara, pois, a questão da
neutralidade religiosa da Justiça no regime republicano e, implicitamente, a da
própria composição do STF. Os ministros julgam sob tutela da lei, e não do
símbolo ou das convicções de uma religião.
Numa sociedade pluralista quanto às
ideologias e quanto às religiões, composta também de gente filiada a confissões
religiosas não cristãs, é uma aberração que alguém seja indicado para o Supremo
por motivo religioso e por ter perfil religioso. Como ficaria um judeu, um
muçulmano, um adepto do candomblé, se julgado por um tribunal simbolicamente
inspirado por uma religião que lhe é historicamente adversa? Ou se ateu?
Em sermão numa igreja evangélica de
Goiânia, o candidato de Bolsonaro a ministro declarou: “Nós não podemos nos
curvar a qualquer poder que não seja o poder de Deus”. Na verdade, no regime
republicano, os que professam uma religião têm o direito, na vida privada, de
dar o testemunho de sua fé. Mas não têm o direito de se valer das instituições
públicas para fazê-lo.
A separação dos poderes foi proclamada pelo
próprio Cristo. Está lá em Mateus 22:21: “Dai, pois, a César o que é de César,
e a Deus o que é de Deus”. Evangélicos têm utilizado esse versículo para
justificar o autoritarismo bolsonarista. Na verdade, o César do versículo, na
leitura moderna, é o Estado e suas instituições, e não o governante. Nesse
sentido, “Deus é republicano”. Para os seguidores de Calvino, pai fundador da
religião que o candidato a ministro professa, o republicanismo e o respeito às
suas instituições foram a garantia do direito à sua convicção religiosa.
Na sociedade moderna, cristãos e não
cristãos têm assegurado o direito de professarem suas religiões enquanto
cidadãos. A cidadania é a garantia desse direito e a exigência de que aquele
por ele protegido não transformará o poder de César em poder de Deus.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “No Limiar da Noite” (Ateliê, 2021).
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