Valor Econômico
O misticismo bolsonarista submete a política
à crendice, é apocalíptico e sacrificial. É sacrifício humano pela nação. É,
portanto, antipolítico e não só antidemocrático
A intentona de 8 de janeiro de 2023 não
terminou apesar do julgamento dos participantes diretos da baderna daquele dia
contra as instituições. Os depoimentos nos interrogatórios do STF contêm
indícios de protagonistas invisíveis na mobilização dos manifestantes em
diferentes cantos do país. Os depoentes não depuseram. Expuseram a inocência
planejada e fingida, não o acontecido. Aquela era uma multidão de dupla
personalidade.
Mas não foram questionados pelas incoerências dos relatos. Muitos disseram ter ido a Brasília para conhecer a cidade, embora tenham se limitado ao acampamento da porta de quartel e aos recintos invadidos do STF, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto. Brasília não era destino, era um alvo.
Não poucos invadiram para invocar a bênção de
Deus sobre os recintos do poder, coisa que poderiam ter feito de qualquer
parte, de suas próprias casas, pois Deus nas crenças que perfilham é
onipresente e onisciente. A coincidência de motivos e de justificativas sugere
a prévia uniformização dos pretextos.
Numa das casas do Congresso, manifestantes
fundamentalistas e pentecostais, próximos uns dos outros, movimentando-se de um
lado para outro, falavam aos berros diretamente para Deus. Nem por isso,
igrejas e seitas por trás dos agressores foram identificadas e chamadas às
falas perante a lei. O golpe não terminou e nessa lógica nem terminará.
O conjunto de textos e pretextos de
justificação da tentativa de golpe tem uma articulação precisa. Não é coisa de
amadores. Reúnem suposições imaginárias e falsas, recolhidas de vários momentos
dos confrontos da guerra ideológica que foi a Guerra Fria.
O bolsonarismo é ateu e falsamente religioso
no evangelismo pecaminoso de palanque e de comício, o do Deus ausente. A
cultura de autojustificação que o move vem do fundamentalismo religioso.
Durante seu problemático governo, Bolsonaro violou a Constituição e as leis, as
tradições republicanas, ao transformar o Estado brasileiro num Estado
confessional.
A Presidência teve um capelão informal e
ilegal, na pessoa de um pastor pentecostal. Não é espantoso que os abusos
tenham ocorrido. Espantoso é que ninguém, nenhum cidadão, nenhum partido
político, tenha ido à Justiça para interromper a ilegalidade e enquadrar os
responsáveis
Durante a campanha eleitoral de 2022, no dia
7 de agosto, uma multidão reunida em Belo Horizonte para celebrar o
cinquentenário da ordenação de um pastor famoso e amigo do presidente da
República e de sua esposa ouviu a primeira-dama fazer emocionado sermão de
conteúdo desabridamente partidário e bolsonarista.
Sua fala foi preciosa expressão de
competência transdutiva para fazer um discurso eleitoral bolsonarista como se
fosse emocionada pregação do bem contra o mal.
Esse discurso é o mais notável documento
sobre a lógica em que se situa Bolsonaro. O discurso é bem protestante. Revela
que nem Bolsonaro nem sua mulher são eles próprios. Acham-se apenas figurantes
da suposta vontade divina.
Os bolsonaristas são seres vicários de um
personagem místico oculto que por meio deles fala e age. Não são personagens,
são personificações de vontade invisível. O militante é isento das
responsabilidades da militância. Sua conduta não é racional porque é o avesso
da democracia e da cidadania.
O sermão que ela fez em BH tem momentos
preciosos do escapismo místico. Foi referência simbólica à cadeira
presidencial. “Essa cadeira é do presidente maior, que é o rei que governa esta
nação.” E mais: “Por muitos anos, por muito tempo, aquele lugar foi lugar
consagrado a demônios e é hoje consagrado ao Senhor Jesus”. E o próprio
Bolsonaro dirá: “A missão que ocupo é função de Deus”.
A esposa explicou que o lugar de Deus está
ameaçado: “É um momento muito difícil, irmãos, não tem sido fácil, como ele
mesmo fala é uma briga, é uma guerra do bem contra o mal, mas eu creio que nós
vamos vencer porque Jesus já venceu na cruz do Calvário por nós. E as promessas
do Senhor irão se cumprir em nossa nação”.
O misticismo do casal submete a política à
crendice, é apocalíptico e sacrificial. Não é apenas ambição de poder. É
sacrifício pela nação. É, portanto, antipolítico e não só antidemocrático.
Bolsonaro faz que não quer o poder para consegui-lo como um bem hereditário.
As oposições democráticas a esse tipo de
religiosidade tosca e a essa usurpação da política pela religião não conseguem
mobilizar instrumentos teóricos e interpretativos para enfrentar essa
mistificação.
Antes da eleição de 2022 eles semearam a
suposição de que sem Bolsonaro a cadeira estaria vazia, o país governado pelo
mal. Essa lógica invertida sem cura se expressa nas pesquisas de opinião sobre
o atual governo.
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