sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Tragédia em forma de calor – Flávia Oliveira

O Globo

Nas favelas, multiplicam-se as interrupções de energia em decorrência do excesso de carga

Outrora invisível, o inimigo está mais evidente do que nunca. É implacável o calor extremo que alcança, em particular, o Rio de Janeiro desde a virada do ano. O segundo mês de 2025 nem chegou ao fim, e os especialistas já atestaram a terceira onda de calor da temporada. É fenômeno que impacta a saúde, a mobilidade, a aprendizagem, a atividade econômica. Como de resto, escancara desigualdades tatuadas na sociedade. E flerta com a tragédia.

A Prefeitura do Rio, via secretarias de Saúde, Meio Ambiente e Centro de Operações, elaborou protocolo de enfrentamento ao calorão. O conjunto de alertas e ações tomou forma no ano passado, meses depois da morte, por exaustão térmica, da jovem Ana Clara Benevides Machado, aos 23 anos. Ela sucumbiu à sensação de 60 oC que a cidade experimentou em novembro de 2023, durante o show da mega-star Taylor Swift no Engenhão.

Na ocasião, ficou exposta a desumanidade das condições impostas aos fãs: proibição de entrada com garrafas nas arenas, bem como de oferta gratuita do líquido vital. Prioritárias eram as receitas financeiras dos patrocinadores. O episódio fatal selou a série de normas impostas pela Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça aos organizadores de eventos de massa. Tem de haver atendimento médico e ambulância, mangueiras para banhar e resfriar a plateia. Foi autorizada a entrada com recipientes para bebidas; tornou-se obrigatória a hidratação gratuita. Água, afinal, é direito, não item de consumo.

Nesta semana, a capital fluminense alcançou pela primeira vez o nível 4 na escala de calor, que varia de 1 a 5. Significa dias seguidos com temperatura de 40 oC a 44 oC. Nenhuma hipótese de chuva. Equipamentos públicos, de naves do conhecimento a bibliotecas e museus, foram indicados como pontos de resfriamento com ar-condicionado, água potável, área de descanso. Distribuidoras saíram às ruas para entregar copos d’água em pontos de grande circulação e calor, como costumavam fazer apenas nas áreas de dispersão do carnaval

São medidas bem-vindas, necessárias, mas ainda insuficientes. Alunos se manifestaram contra ambientes escolares tornados saunas de aula. Há estudos que confirmam que o calor excessivo é inimigo da aprendizagem, tal como a fome e a violência. Os chamados ao Samu saltaram 45% nos dias de temperatura recorde, segundo a Secretaria estadual de Saúde. Na capital, em 15 dias, houve 2.400 atendimentos em unidades de saúde em razão do calor.

O sistema de transportes aprofunda o inferno, com a combinação de longos trajetos em veículos sem refrigeração, como se ar-condicionado fosse luxo, não necessidade. O sol, de tão forte, fez um trem da Supervia descarrilar após um trilho do ramal Guapimirim derreter sob o calor de 71 oC.

Nas favelas, multiplicam-se as interrupções de energia em decorrência do excesso de carga. A demanda por energia na Região Sudeste bateu dois recordes em um mês, segundo dados do Operador Nacional do Sistema. A Light, concessionária em 31 municípios fluminenses, reportou 1.150 transformadores queimados por sobrecarga em 45 dias deste ano. O consumo adicional na primeira quinzena de fevereiro foi equivalente ao de todo o estado de Roraima.

Na Rocinha, no Alemão, em comunidades da Zona Oeste e da Baixada Fluminense, o emaranhado de fios em curto entra em chamas. Inflama-se pela energia consumida pela avalanche de aparelhos ligados simultaneamente. Prenúncio de castatrofe.

Na favela da Zona Sul, a associação de moradores apelou a comércio e serviços por extintores. A população formou brigadas de incêndio improvisadas para deter o fogo até a chegada dos bombeiros. Homens, mulheres, crianças contam consigo e com Deus, na falta de condições de moradia, infraestrutura adequada, assistência do poder público. Residências ficam mais de 24 horas sem energia. Há casos de pessoas dormindo ao relento, diante da impossibilidade de suportar o calor em imóveis densamente habitados com circulação de ar deficiente.

Até a inflação do ovo se relaciona ao calor extremo. Sim, as galinhas, afetadas, também produzem menos. Hortaliças e frutas historicamente ficam mais caras na temporada. Ainda que anuncie medidas de emergência, o poder público segue devendo. A conta de anos, décadas, séculos de descaso e urbanização mal feita chegou pesada com o calorão. Todo mundo paga, mas os de sempre (pobres, pretos, favelados, subocupados) pagam muito mais. E as chuvas nem deram as caras. Ainda.

 

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