Parto
do entendimento de que, por enquanto, não há roteiro positivo seguro (no
sentido de um elenco de proposições concretas sobre um imediato amanhã), em
nenhum dos dois campos que se apresentam, hoje, como adversários do bolsonarismo,
a saber, a esquerda e a nebulosa política que se faz chamar de centro e que
inclui grande parte da centro direita e parte da centro-esquerda. Aviso que
essa terminologia de geografia ideológica não deve ser tomada ao pé da letra.
Usada aqui sem rigor e sem poder explicativo de nada, é mais um recurso para não alongar o
texto. O que importa é constatar a relativa ausência (ou incipiência) de alternativa
positiva clara à barbaridade que aí está. O não cada vez mais urgente e
uníssono ainda não está acompanhado de algum sim que a sociedade entenda. É na
permanência dessa situação politicamente tosca que populismos diversos apostam.
Pauta
da oposição liberal-democrática
O
déficit de discurso e ação do chamado centro (agora “polo”) liberal-democrático
está no terreno da oposição plebiscitária a Bolsonaro. Ação e discurso nesse
terreno até aqui são precários, porque uma parte desse centro, por mais que
proclame o contrário, está presa a 2018, por um antipetismo que a impede de se
jogar por inteiro na oposição, sem temor de se ver comprometida, em eventual
segundo turno, a cooperar com o PT. O enraizamento extremo do tema da corrupção
em parte do eleitorado que centristas querem conquistar é uma constante trava
que os inibe tanto para o diálogo com a esquerda eleitoralmente mais relevante
(diálogo necessário, dada a regra de pleito em dois turnos) quanto para uma
relação mais fluente com o campo do pragmatismo de varejo, que atende pela alcunha
de Centrão. Essa segunda relação é também crucial por outro motivo: procurar dividir
o campo governista e, eventualmente, barrar o seu acesso ao segundo turno.
O que torna crível um centro político, convertendo-o em alternativa de poder, não é a propensão a se distinguir retoricamente da direita e da esquerda, mas a capacidade de se entender, simultaneamente, com ambas, criando marcos governativos na democracia. Trata-se de exigência de política prática. Se ignorada, desaparece a razão de ser do centro.
Por
outro lado, se nem o Centrão nem Lula representa políticos autodeclarados de centro
liberal-democrático, centristas precisam, como é óbvio, fazer, de sua unidade
prática, atitude estratégica. Essa é a primeira de três condições (outras são
um programa e uma candidatura que o encarne e aglutine) para terem voz e fala próprias,
como oposição, na arena da disputa presidencial. Oposição que não precisa se dizer
de esquerda, centro ou direita. Precisa ser democrática no programa, nos
valores e na atitude política positiva.
A
disposição declarada em manifesto recentemente assinado por seis possíveis
candidatos que se situam nesse campo é um inegável avanço nessa direção. Está
longe, contudo, de expressar uma agregação satisfatória daquelas três condições.
Sem elas, resta a pregação apostolar contra presumíveis “extremos”. Esse é um
mantra incompatível com o discurso de ampla frente democrática contra um
extremismo concreto, como é o que Bolsonaro e seu governo expressam. Em suma,
ainda é precária a identidade oposicionista do centro. Inútil querer que o Congresso preencha a
lacuna, através de políticos republicanos e lúcidos, mas institucionalmente
condicionados, como o Presidente do Senado. Seu papel é outro (conter, não
enfrentar o presidente), tão relevante para a preservação da República, quanto
o de todas as oposições democráticas de disputarem o eleitorado com Bolsonaro.
Pauta
da oposição de esquerda
No
campo da esquerda a pauta não é menos desafiante. A reabilitação de Lula para
uma eventual candidatura mexeu com todo o cenário político, mas de modo
especial com o campo em que ele é identificado e ao qual ele vinha se
restringindo cada vez mais, desde que seus problemas com a Justiça o confinaram
à prisão e depois a um relativo ostracismo. Acuado, adotara atitude defensiva e
reativa, que era compreensível, do ponto de vista pessoal, mas também
imobilizadora do seu partido, num contexto em que o mesmo necessitava tomar
iniciativas positivas de diálogo com a sociedade e as demais forças políticas,
para sair do isolamento crescente em que vivia desde o impeachment de
2016.
Embora
o comando político de Lula sobre o PT jamais tenha sido desafiado de modo
relevante, era visível a situação de desconforto de quadros partidários mais
afeitos a uma política de frente, seja por atitude política pessoal, seja por
posição institucional que ocupam, como nos casos dos governadores do Piauí,
Ceará e Bahia. Desconforto que aumentava quando os aliados na esquerda com os
quais o PT contou na maioria de suas empreitadas eleitorais começaram, não
apenas a abrir alternativas de centro-esquerda ao viés hegemônico do petismo –
processo que transcorria desde 2010, com a candidatura de Marina Silva, com as
de Eduardo Campos/Marina em 2014 e Ciro Gomes em 2018 –, como a se entender,
agora, para oferecerem contraponto eleitoral ao PT no campo da esquerda,
atraindo para isso até o PCdoB, o mais próximo dos aliados e assíduo apoiador
de Lula.
Outro
relevante fator de alteração no status quo da esquerda brasileira foi a
inserção de novo tipo na cena política, obtida por Guilherme Boulos, em sua
recente candidatura à prefeitura de São Paulo. Chamou a atenção o contraste
entre a postura relativamente moderada que adotou dessa vez e a atitude
disruptiva que, para além de seu ativismo de movimento social (mas de modo
sintonizado com ele), marcara suas primeiras aparições na cena política,
inclusive no contexto da resistência ao processo de impeachment e à
prisão de Lula. Essa atitude inicial, típica de “esquerda negativa” orientada
ao confronto, rendeu-lhe, naquelas circunstâncias, palavras de estímulo e
recomendação pública, da parte do líder petista. Talvez a hábil e experimentada
raposa política enxergasse no jovem leão que rugia forte um aliado útil para
elevar a temperatura do ambiente político e o moral da militância, num momento
adverso. Mas se Lula contava manobrar
com Boulos e, depois de o ter atiçado, retirar-lhe a escada com algum movimento
moderado posterior (como toda a vida fez com militantes mais radicais do PT), certamente
teve uma surpresa. O suposto manobrado revelou-se, na campanha paulistana, um
perito manobrista, capaz de numa só campanha emular três Lulas pretéritos – o
semeador de sonhos de 89, o adversário implacável do PSDB de 94 e 98 e o
conciliador de 2002 – com o cuidado de se afastar do Lula ex-governante petista,
que virou alvo de acusações de corrupção. Mas ainda assim avançou com apetite
sobre a parte sobrevivente do espólio eleitoral também daquele que parecia ser
o último Lula e que – sabemos agora – era o penúltimo.
O
fator Boulos tem pouco ou quase nada a ver com um hipotético deslocamento do PT
da posição de partido mais relevante da esquerda. O PSOL não tem a menor
condição de ser o ator beneficiário desse suposto deslocamento que as urnas de
2020 se encarregaram de desmentir. Delas o PT saiu figurando entre os
relativamente vencidos, mas exibindo a resiliência própria de uma instituição
partidária genuinamente enraizada na experiência democrática que a sociedade brasileira
vive nas últimas quatro décadas. Experiência rica em paradoxos, dos quais o
mais notável é ter se aprofundado um processo de inclusão de novos grupos
sociais na vida política (e aí o PT foi ator proeminente de democratização) ao
mesmo tempo em que se dá, a partir da segunda metade da penúltima dessas
décadas, uma séria avaria de um longevo hardware republicano. Democratizado sob os auspícios da Carta de
1988, o hardware serviu de incubadora daquela democratização contínua. Na
inflexão institucionalmente regressiva, o PT foi ator proeminente também, inserindo,
num hardware virtuoso, um software espaçoso, que se fez pesado,
pelo baixo teor de república.
Boulos
demonstra estar atento a isso e aí está a potencialidade de sua liderança
pessoal para uma eventual reanimação da esquerda, projetada para além do curto
prazo. De um lado, a visita ao centro, por uma aliança entre o PDT, o PSB e o
PCdoB; de outro, um difícil processo de aproximação e entendimento entre um
Boulos que emerge e áreas do PT dispostas a não deixar o partido se afogar no
abraço de uma personalidade política que a cada instante parecia submergir mais fundo
nas águas turvas de um populismo ressentido. Quando Lula reassumiu, como uma
fênix - feliz, apaziguado e investido de uma relativa moderação e malícia que
lembram seus melhores momentos - o lugar de protagonista, era essa a pauta
interna de uma esquerda que, desde 2019, se mantinha como coadjuvante quase
ausente de embates públicos decisivos de Bolsonaro com instituições
republicanas, Se antes já se mostrava improvável e não muito racional (se falarmos
de uma razão que dialoga com a realidade) convencer o maior partido da esquerda
a abrir mão de apresentar um candidato, depois da fênix e de reflexos do
retorno de Lula à cena, em sondagens da recepção que ele teve no eleitorado, isso se torna
virtualmente impossível.
O
retorno de Lula coloca a oposição de esquerda em clara vantagem sobre a
oposição de centro no que se refere ao quesito candidatura que encarne o campo na
arena plebiscitária de enfrentamento a Bolsonaro. E também sinaliza um processo
mais simples que o do centro em relação ao quesito construção de uma disposição
à unidade. Isso porque, enquanto o centro precisa cumprir um diálogo horizontal
entre suas partes, na esquerda os movimentos tendem agora a ser animados pela
força gravitacional da sensação difusa de que Lula pode não só salvá-la, eleitoralmente,
como salvar o país de Bolsonaro.
A
pauta da esquerda anterior à fênix não desapareceu. Ela foi suspensa pela
contingência. Adiadas as decisões de médio e longo prazos, os problemas que as
requeriam tendem a se avolumar, ainda que a força de gravidade mantenha o campo
razoavelmente unido em 2022. É curioso, chega mesmo a parecer armadilha
astuciosa da nossa história política, o partido que sempre virou as costas às
urgências das frentes políticas em prol da sua construção particular adiar
decisões cruciais para seu destino, pela necessidade de Lula cumprir um papel
nacional. Só nesse papel Lula pode ser pensado hoje como protagonista. Num
cenário sem Bolsonaro, ele passa a ser mais uma entre diversas opções e lhe
será cobrada reflexão pública sobre o desfecho da experiência governamental
petista. Mesmo seu virtual retorno à presidência da República não eliminaria anticorpos produzidos, nos
últimos anos, na sociedade e na política, contra o modo petista de
governar.
E
se Bolsonaro derreter?
Falei
muito mais sobre a esquerda porque o problema do centro já tem sido mais
discutido, não só por mim. Mas tudo o que até aqui argumentei, sobre o centro e
sobre a esquerda, parte da premissa de que o arranjo bolsonarista que está no
governo, embora perca força de maneira gradual e sustentada, representa um
perigo real para a república, pelas chances que ainda persistem de que o presidente
possa se reeleger. Chances que não podem ainda ser bem mensuradas, diante não
apenas da volatilidade de variáveis propriamente políticas, como da insegurança
da situação social e econômica.
A
experiência internacional das últimas décadas mostra que quando autocratas têm
mandatos renovados, a autocracia que buscam deixa de ser um perigo e se torna
realidade fatal. Por isso não se pode relaxar ao constatar que as instituições
brasileiras resistem a ataques com sucesso efetivo e que uma opinião pública
sólida se formou contra a aventura autocrática, já começando a reposicionar
parte do eleitorado que a chancelou em 2018.
Partindo
da premissa do perigo, o eixo que orienta a conduta de democratas de todos os
matizes é uma frente pela defesa da Constituição, bem como das instituições e
práticas democráticas que vivem à sua sombra, pelo combate à pandemia e pelo
socorro aos vulneráveis. Essa frente pode ter tradução eleitoral no segundo
turno de 2022, precisando, para tanto, assegurar a realização das eleições e uma
disputa em primeiro turno dentro de limites civilizados que permitam a unidade
posterior. O adversário comum identificado é Bolsonaro, incluído, nessa
identificação, como elemento inseparável, o seu governo.
Uma
análise realista precisa, contudo, considerar outra possibilidade. A de que o
presidente se torne incapaz de obter a reeleição. Sem fazer previsões ou
especulações sobre desdobramentos políticos e institucionais de uma constatação
dessa ocorrer antes mesmo da campanha eleitoral começar, é preciso admitir que
um derretimento irreversível da popularidade do presidente que o retirasse
antecipadamente do jogo teria impacto imenso sobre a situação política e
provocaria reposicionamento de forças em relação a 2022 mais abrangente que o atualmente
em curso com o retorno de Lula ao jogo.
As
áreas de oposição que se ativerem exclusivamente a uma contestação da pessoa do
presidente tendem a perder seu discurso se ele sair de cena, de algum modo, ou
mesmo se ele se mantiver na cena, mas sem força eleitoral para chegar ao
segundo turno. Podem se tornar política e eleitoralmente irrelevantes, como
oposição ou, então, aderir a uma solução governista pós-Bolsonaro, a qual, no
limite, pode ser bolsonarismo sem Bolsonaro.
Por
esse motivo cabe examinar com atenção o estágio das oposições diante daquelas
três exigências do momento, de que aqui se falou. A esquerda, por ora, tem um
virtual candidato, que se revela o mais competitivo, enquanto o centro
liberal-democrático, de tantos nomes, ainda não tem nenhum. A agregação na
esquerda também se revela hoje menos complexa, pela já comentada força de
gravidade do fator Lula. Mas há uma das condições que ambos os campos de
oposição ainda estão longe de cumprir: resolver o que dirão à sociedade sobre o
dia seguinte a Bolsonaro, caso amanheça com algum desses dois campos de
oposição no comando do país. Que promessas suas mensagens podem fazer?
Qual
será o “novo normal” da política num pós-bolsonaro?
Um
amplo consenso institucional, em defesa da constituição e da democracia já é,
hoje, algo que saiu do terreno da promessa para o da realidade. Firmou-se ampla
resistência nacional aos ataques à Carta de 88 e aos poderes da república, resultado
compartilhado por instituições do estado, governos subnacionais, partidos,
lideranças e representações parlamentares de vários matizes do campo
democrático e republicano, da direita à esquerda. E igualmente por amplos
setores da sociedade civil, com especial destaque ao papel da imprensa. Do
mesmo modo está em curso um pacto cívico de enfrentamento da pandemia para
redução de danos sanitários e sociais. Nem um nem outro chega perto da
unanimidade porque a divisão política e o esgarçamento do tecido social são
fatos. Mas se alcançou um patamar de convergência que permite dizer que esses
dois consensos transcendem a oposição. Alcançam até alguns inquilinos da esplanada dos ministérios.
Mas
é das oposições que aqui se trata. A sociedade e a parte do eleitorado que já
pensa em 2022, mesmo na pandemia (não
conheço mensuração do percentual que está nesse caso), precisa ouvir, de seus partidos e lideranças responsáveis,
uma mensagem mais explícita e menos genérica sobre o que pensam acerca das
bases de construção da sua decantada unidade e sobre o grau de civilização da
política que se pode esperar dessa pactuação.
Todos
os que estão convencidos do desastre econômico, social, político e cultural
causado ao país pelo governo Bolsonaro compreendem que se trata, mais do que uma
obra de um indivíduo, do desastre de um governo. Sendo assim, a saída melhor e
mais desejável é pelas urnas, pelo fato de delas sair um novo governo. A vitória eleitoral sobre o presidente
subversivo pode ser previamente facilitada pelos efeitos benévolos dos
consensos cívicos.
Mas
além de derrotar o protagonista do mal, é preciso fazer cessar automatismos
malévolos que contaminaram espaços da República. Para isso a unidade implica em
fazer um chamado a que se coloque entre parênteses, neste momento, os juízos de
retrovisor acerca das responsabilidades políticas pelo desfecho eleitoral que
ensejou o desastre. Admitir que um inventário dessas responsabilidades pode
envolver tanto quem se aliou, ou de algum modo apoiou, em 2018, a chapa
vencedora, quanto quem, opondo-se a ela, imaginou vencê-la promovendo um acerto
de contas, em revide ao desfecho da crise de 2015/2016. A comum avaliação sobre
o desgoverno em curso no país e sobre a profundidade das sequelas que isso já
produz no seu tecido social e político é suficiente para que o foco se
concentre no presente e aponte ao menos a um amanhã imediato que supere
polarizações extremadas e o clima de confrontação política.
A
tradução eleitoral dessa disposição não precisa ser candidatura única de todas
as oposições. Precisa ser articulação e consolidação de candidaturas
agregadoras de seus respectivos campos, que sinalizem agregações parciais, no
primeiro turno das eleições; disposição comum dessas candidaturas
oposicionistas de explicitarem suas diferenças e divergências, para qualificarem
o debate democrático sem prejuízo de entendimento entre elas no segundo turno;
concretização desse entendimento numa agregação mais ampla para enfrentar a
candidatura governista no segundo turno, ou na ausência de tal adversário, para
travar uma disputa republicana entre candidaturas diversas do campo
democrático. A reciprocidade é condição
importante para haver chance das ações oposicionistas de ambos os campos darem
vida a um “novo normal” também na política.
Essa
é a premissa política para haver dia seguinte. A partir dela pode-se pensar em
programas eleitorais que dirão o que ele pode ser, ou, ao menos, o que se quer
que ele seja.
* Cientista político e professor da UFBa
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