É
de esperar que o novo chanceler consiga operar as mudanças que essa agenda
requer
A
dinâmica das transformações técnicas, econômicas, sociais e culturais tornou o
mundo contemporâneo especialmente finito e interdependente. Unificou-se, para o
bem e para o mal, o campo estratégico-diplomático. Daí os desafios da inserção
internacional dos países, ainda mais complexos por conta da vertiginosidade da
era digital.
É
o que explica, com a porosidade das fronteiras, a internalização do mundo no
âmbito dos países, alcançando suas populações. Um paradigmático exemplo é a
pandemia de covid-19. Com a sua letalidade, alterou em escala planetária o
cotidiano. Magnificou as ameaças à vida, fazendo da diplomacia das vacinas item
de primeiro plano da pauta internacional e expressão do papel da gestão de
riscos da política externa.
A multiplicidade e variedade do impacto do mundo na especificidade da vida dos países é uma das razões por que a política externa deixou de ser o domínio reservado e exclusivo dos governantes e seus agentes diplomáticos. Não resulta mais da restrita visão e do cálculo de poucos. Requer incorporar sensibilidades, interesses e paixões de muitos, que se manifestam pelos canais de articulação da voz da sociedade. É o que obriga o palácio a levar em conta a visão dos governados, traduzida numa agenda de opinião pública.
Estar
atento a ela é um dado, numa democracia, de sustentabilidade da política
externa. Essa pauta se exterioriza pela mídia, pela dicção dos interesses e
valores da sociedade e pela ressonância que adquirem no Congresso, ao exercer
suas funções de fiscalização da ação do Executivo. Pode alcançar o Judiciário
quando temas da política externa são passíveis de judicialização.
Lidar
com essa pauta é responsabilidade do chanceler como principal colaborador ex
officio do presidente na condução da diplomacia. A ele cabe explicar de
maneira ampla e convincente como a agenda da opinião pública se ajusta à
política externa, apta a traduzir apropriada ponderação de necessidades
internas numa qualificada avaliação dos possibilidades externas. A ele cabe
indicar como a política externa está em consonância com a moldura dos
princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil.
Incumbe-lhe dar as razões substantivas de novas ênfases e prioridades que
diferenciam a diplomacia de um governo da dos seus antecessores. Precisa
esclarecer e justificar por que as mudanças patrocinadas são válidas.
Dessa
responsabilidade se desincumbiram todos os chanceleres da Nova República – e
falo com um saber de experiência –, lidando com a pluralidade de perspectivas
da agenda de opinião pública e enfrentando os embates instigados pelas
oposições aos governos a que serviram.
No
exercício dessa responsabilidade fracassou de maneira retumbante Ernesto
Araújo. A sua queda como chanceler é um inédito “impeachment informal”
conduzido pela agenda da opinião pública, a qual ele antagonizou com plúmbea
carência de sensibilidade, surpreendente para quem teve uma formação
diplomática. Como diz o provérbio latino, quos Deus vult perdere, prius
dementat (a quem Deus quer perder, primeiro tira o juízo – incluído o
juízo diplomático).
É
certo que a sustentabilidade da visão das coisas internacionais do presidente
Bolsonaro é cada vez mais difícil de explicar à sociedade brasileira. Só
encontra ressonância no âmbito mais restrito dos seus raivosos apoiadores
ideológicos. Não indica uma capacidade do presidente de se orientar no mundo,
pois almeja uma diplomacia de extremos, voltada para a vocação de rupturas;
desejosa de construir muros e dinamitar pontes e assim fomentar o isolamento
internacional do País, que nos afasta de nossos parceiros bilaterais e
compromete a nossa atuação multilateral; que dilapida o soft power acumulado
do capital diplomático brasileiro; que ignora a sensibilidade internacional em
relação ao meio ambiente, com consequências restritivas para as exportações
brasileiras e para o investimento em nosso país. É o que nos vem levando, pela
primeira vez na História, à condição de pária internacional, que o seu
ex-chanceler se sentia à vontade de sustentar e defender.
São
crescentes as manifestações da voz da agenda da opinião pública em relação aos
rumos que vem imprimindo ao País. A mais aguda diz respeito ao opaco
negacionismo no trato da pandemia e suas consequências para a vida e a morte
dos brasileiros.
Ela
alcança, no entanto, amplo espectro de políticas públicas, com destaque a
política externa, que, para a agenda da opinião pública, requer mudanças.
É
de esperar que o novo chanceler, Carlos Alberto Franco França, tenha condições
de operar essas mudanças. O seu discurso de posse, ao indicar que a missão a
ele confiada é a de enfrentar as urgências no campo da saúde, da economia e a
do desenvolvimento sustentável e do clima, é pertinente. Tem o mérito
conceitual de estabelecer o quadro geral dos problemas e definir uma agenda
relevante.
*Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
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