terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O mundo está mudando

Alfredo Reichlin
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: Gramsci e o Brasil


Michele Salvati reconhece, no Corriere della Sera, que não explodiu só uma bolha especulativa.

Aconteceu algo muito grande que marca uma virada. Chegou ao fim da linha um ordenamento econômico. Mudam as relações entre os poderes mundiais. Peço desculpas por não ser economista, mas se deve falar disso. Assistimos a um acontecimento inteiramente novo na história moderna, isto é, ao fato de que uma oligarquia político-financeira quis governar o mundo submetendo a política ao seu poder, entendendo política como soberania do Estado (inclusive a moeda), direitos universais do cidadão, independentemente da sua capacidade de consumo, e entendendo sociedade como histórias, culturas, laços, projetos não redutíveis à troca econômica. Disso é que se tratou. E é bem verdade que o mundo exulta, porque os Estados europeus mostraram a intenção de restituir o comando ao “Soberano”.

Era evidente (pelo menos para as mentes livres) que não podia continuar ao infinito um sistema com base no qual somas imensas de dinheiro (muitas vezes maiores do que a riqueza real produzida) movimentam-se de um lugar para o outro do mundo em tempo real, prescindindo das necessidades reais das pessoas, das relações humanas, dos direitos sociais, dos recursos reais, dos territórios. O fenômeno foi, de fato, grandioso, e certas polêmicas anticapitalistas de “revolucionários” envelhecidos não têm efeito algum. Daquele modo também se favoreceu a abertura de novos mercados e o financiamento de coisas extraordinárias, como a inteligência artificial, os remédios (e, por que não, as armas do século XXI). E tudo isso também possibilitou um salto no desenvolvimento dos países emergentes.

Todavia, graças a este sistema é que o país mais rico do mundo pôde viver de crédito e muito acima dos seus recursos, atraindo, graças ao papel imperial do dólar, 80% da poupança mundial. Ao mesmo tempo (mas não só dentro dos Estados Unidos), desenvolvia-se um enorme jogo especulativo: crédito fácil, endividamento de massa, muito além do rendimento do próprio trabalho, criação de uma economia de consumo, a qual se traduziu num crescente aumento das desigualdades e numa pressão devastadora sobre os bens públicos e os recursos naturais. E, enquanto se oferecia aos trabalhadores e às camadas médias a eterna ilusão de que, endividando-se, podiam se enriquecer ao infinito, com a idéia de que se pode fazer dinheiro por meio do dinheiro, ocorria na realidade uma impressionante redistribuição do poder e das riquezas em favor das oligarquias dominantes.

Um enorme jogo de espelhos, que se quebrou quando — como dizia Keynes — “o desenvolvimento do capital real de um país torna-se o subproduto das atividades de um ‘cassino’”. Salvati não usa estas palavras. Mas me pareceu significativa sua referência ao livro de Robert Reich, ferozmente polêmico com este sistema. Bem. Mas, se é assim, não pode deixar de se colocar um problema muito grande — político, mas também intelectual e moral. E não só para quem escreve. Parece-me evidente que começar a pensar num modelo diverso para a gestão da economia mundial é uma tarefa (mas também um dever ético-político) não mais adiável. Além do mais, os governos europeus puseram na mesa algo como dois ou três trilhões de dólares (tirados, evidentemente, do bolso das pessoas, inclusive de aposentados e operários). Muito bem. Será que se pode pelo menos começar a pensar num futuro diferente?

Salvati não evita este problema. Não nega que seria necessária uma alternativa e reconhece que os modelos capitalistas podem ser diferentes entre si, até mesmo profundamente: o modelo keynesiano, isto é, o compromisso entre o capitalismo e a democracia era inteiramente diferente da virada ultraliberista dos anos 1970. O problema que ele levanta é outro, e é o verdadeiro problema que desafia hoje a esquerda e justifica sua inércia. Faltam — diz — as condições. E as condições de que fala não são tanto as objetivas (a profundidade da crise, a insustentabilidade do modelo atual) quanto as “grandes reorientações ideológicas, culturais, teóricas e, por fim, reorientações políticas igualmente profundas”, que permitiram aquelas duas grandes transformações (o keynesianismo entre os anos 1930 e 1940 e o neoliberismo dos anos 1970).

Tenho muito respeito por Salvati, um velho amigo que sempre escuto com atenção. Mas não resisto à necessidade (até moral) de lembrar, a propósito de condições culturais, o que foi nestes anos a verdadeira destruição do pensamento político da esquerda e de qualquer visão autônoma dessa mesma esquerda em relação ao pensamento único da oligarquia financeira. Um martelar cotidiano, nunca visto antes, contra os salários (sempre altos demais), os sindicatos (inúteis), a privatização das aposentadorias como condição para o desenvolvimento (é o que vão perceber os aposentados americanos ligados aos títulos de Wall Street). Para não falar das empresas que valem só pelo preço das ações e não por aquilo que produzem. E a escala dos valores dominantes: a reverência até ridícula diante da riqueza e da genialidade dos banqueiros, estes novos heróis do nosso tempo.

Talvez fale em mim um velho comunista, que deveria ficar calado. Então que falem os liberais. Expliquem-nos aonde vai terminar não a “classe”, mas a liberdade da pessoa, se a sociedade for reduzida a sociedade de mercado, se os homens forem postos em relação entre si sem tomar como referência sua substância humana, mas sim suas “máscaras”, sob as quais não existem criatividade nem projeto de vida, só indivíduos que se medem com uma só medida: a capacidade de consumo, o dinheiro.

Por que Salvati chama este sistema de “liberal”? Lamento, não estou de acordo. E não porque não perceba a necessidade de uma revolução cultural ou subestime a fraqueza da esquerda, que também paga pela ilusão de delimitar para si um espaço (uma “terceira via”?) no “cassino” destes anos. Não havia as condições: foi o que nos disseram. É muito triste ouvir isso de novo. Por certo, eu também, como Salvati, não vejo por aí um novo Keynes e não creio que Obama tenha a estatura de Roosevelt. Mas recuso a idéia da política que existe neste modo de pensar. É exatamente isso que nos levou não ao risco de perder (pode-se sempre perder e depois voltar a vencer), mas de sermos irrelevantes. Condições são criadas. É o que não se compreendeu e se continua a não compreender: mais do que a riqueza, conta a inteligência das pessoas. As condições não existirão nunca, se a política não voltar a ser, antes de mais nada, conhecimento, descoberta da realidade, liberdade de pensamento, idéias fortes e, portanto, novas energias recolocadas em movimento. A história destes anos deveria ensinar algo.

Homens como Salvati têm a inteligência e o nível para contribuir para criar estas famosas condições, pelo menos culturais. E muitos, muitos deles não o fizeram nestes anos. No entanto, não era preciso nenhuma cigana para adivinhar que este gigantesco jogo de dívidas era insustentável. Por isso, não gosto quando, agora, são os mesmos a nos dizer que a crise é grave, acrescentando, porém, que não existem as condições para mudar. Também sei que não será fácil mudar. Mas ponho uma condição: poder dizer às pessoas que existe uma grande e nobre razão pela qual construímos um novo partido. E esta consiste na convicção de que chegou o momento de lutar por um mundo mais justo, no qual uma nova esquerda européia seja protagonista.


Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe — Centro Studi di Politica Economica, em Roma.

Em nota, Bloco Democrático e Reformista diz que PT e Lula já são o passado


Valéria de Oliveira
DEU NO PORTAL DO PPS


Os partidos que formam o Bloco Democrático e Reformista – PPS, PSDB e DEM – emitiram nota rechaçando o que chamam de “provocações mesquinhas do PT”, que culpa os tucanos pela crise econômica. O texto chama a atenção para a “incongruência” da tese petista explicitada em reunião realizada neste fim de semana em São Roque (SP): “se o presidente Lula oficializou a versão, evidentemente falsa, de que o Brasil não sofre os efeitos da crise econômica, como atribuir a onda de desemprego e de forte recesso das atividades produtivas ao ‘governo anterior’”?.

Para os três partidos integrantes do bloco, “o Governo Lula já representa o próprio passado de que reclamam os petistas, que, portanto, atingem a si mesmos” com o discurso que insistem em manter

Na nota, PPS/PSDB/DEM, afirmam que após seis após “de juros altos, permissividade nos gastos públicos, populismo cambial, escândalos financeiros e corrupção disseminada e acobertada, o PT e o governo não apenas têm todas as culpas como, além de procurar bodes expiatórios remotos, mostram-se incapazes de apresentar à Nação um programa efetivo e transparente de ações do Estado brasileiro para enfrentar os reflexos do quadro de evidente calamidade para o qual caminha a economia mundial e que se agrava a cada dia”. Leia a íntegra da nota:

“Nota à Imprensa

O PT esgotou seu prazo de carência para atribuir ao passado a culpa pelos efeitos da crise econômica. Depois de seis anos do Governo Lula, a legenda do oficialismo surpreende o País com uma dupla incongruência: se o Presidente oficializou a versão, evidentemente falsa, de que o Brasil não sofre os efeitos da crise econômica, como atribuir a onda de desemprego e de forte recesso das atividades produtivas ao “governo anterior”?

Como governistas no poder podem culpar o “passado” por uma “realidade” que o seu Presidente nega peremptoriamente?

As manifestações petistas refletem o pânico que vivem em função das reações da população, por eles mesmos expostas detalhadamente na reunião de São Roque (SP). Reconhecem a crescente incapacidade do Governo para enfrentar a crise e indicam que escolheram um perigoso e débil álibi: queixam-se de um passado remoto – o qual denominam “governo anterior” - a que já tiveram tempo suficiente não apenas para superar, mas para revogar e denunciar seus atos, o que jamais fizeram.

Após seis anos de juros altos, de populismo cambial, de permissividade nos gastos públicos, de escândalos financeiros e corrupção disseminada e acobertada, o PT e o Governo Lula não apenas têm todas as culpas como, além de procurar bodes expiratórios remotos, mostram-se incapazes de apresentar à Nação um programa efetivo e transparente de ações do Estado brasileiro para enfrentar os reflexos do quadro de evidente calamidade para o qual caminha a economia mundial e que se agrava a cada dia.

Em vez de convocar as forças vivas da Nação, independentemente e acima das divisões partidárias, para a indispensável mobilização da sociedade, os petistas partem para provocações mesquinhas e facilmente desmoralizadas.

O Governo Lula já representa o próprio passado de que reclamam os petistas, que, portanto, atingem a si mesmos.”

Roberto Freire
Presidente Nacional do PPS

Rodrigo Maia
Presidente Nacional do DEM


Sérgio Guerra
Presidente Nacional do PSDB

Serra diz que é bom estar 'bem na foto' e critica PT


Soraya Aggege
DEU EM O GLOBO

Para governador, é "engraçado" que petistas culpem PSDB por crise

SÃO PAULO. Animado com pesquisa Datafolha que o aponta como líder na corrida presidencial de 2010, o governador José Serra (PSDB) fez críticas ao PT e à condução da economia. Ele chegou a afirmar que almeja resultados rápidos de seu governo, já que em 2011 não estará mais no Palácio dos Bandeirantes. O governador, que tem evitado comentar pesquisas, afirmou que está "bem na foto", depois de considerar que elas são "um retrato" do momento. Segundo o Datafolha, ele tem entre 36% e 41% das intenções de voto, conforme o cenário.

- É bom estar na frente em uma pesquisa. Mas tenho presente que faltam dois anos para a eleição, e que pesquisa é uma fotografia do momento. Agora, estar bem na foto não é ruim. Evidentemente me agrada.

Serra rebateu a crítica que a cúpula petista fez ao PSDB, no domingo, numa reunião em São Roque (SP). Os petistas atribuíram ao PSDB e ao DEM a culpa pela atual crise econômica, "por terem patrocinado no país o modelo neoliberal". Serra reagiu:

- Ah, sim, claro! O PSDB saiu do governo em 2002. Então tem um poder extraordinário: seis anos depois, com o amplo apoio da opinião pública que o governo tem, maioria no Congresso, a culpa é do PSDB. Eu acho que é algo até engraçado. Sei que vocês (jornalistas) não vão dizer, mas também acharam engraçado. Não deixa de ser extraordinário!

O DEM, em nota, também rebateu o PT, afirmando que o partido "esgotou seu prazo de carência" para culpar o passado pelos efeitos da crise: "(Os petistas) Reconhecem a crescente incapacidade do governo para enfrentar a crise e indicam que escolheram um perigoso e débil álibi: queixam-se de um passado remoto - o qual denominam "governo anterior" - a que já tiveram tempo suficiente não apenas para superar, mas para revogar e denunciar seus atos, o que jamais fizeram."

Em discurso, Serra respondeu a outra crítica do PT a seu governo. Disse que "alguns poucos deputados da oposição" na Assembléia de São Paulo afirmam que ele não tem aumentado investimentos no estado, o que não seria verdade. Segundo o PT paulista, em vez de ampliar investimentos diante da crise, Serra vai quase dobrar os gastos do estado com propaganda: de R$166 milhões em 2008 para R$313 milhões em 2009.

Serra deixou escapar que não estará mais à frente do governo "em 2010, 2011". Ao discursar, questionou um funcionário sobre o número de bolsas para pesquisadores de um projeto. Ao saber que eram 60 e que o número só crescerá nos próximos anos, disse que esperava 120, e lamentou: -Mas em 2010 eu não estarei mais aqui.

Em entrevista, depois, disse:

- O meu mandato termina em 2010. Em 2011 eu não sei onde estarei. O fato é o seguinte: quero que as coisas importantes terminem até 2010. É natural. Serra lançou ontem a Investe São Paulo, Agência Paulista de Promoção de Investimentos e Competitividade. Ele anunciou ainda, para abril, a criação de um banco de investimentos, que apelidou "BNDES Paulista", com R$1 bilhão. Boa parte desse montante provém da venda do banco Nossa Caixa ao Banco do Brasil. O futuro banco complementará a agência, que herdou uma carteira de R$10 bilhões.

Serra criticou a política econômica. Disse que o país foi pego em condições desfavoráveis pela crise devido à política econômica, com as fragilidades fiscal, da balança de pagamentos e política cambial errada.

- A política de juros siderais e câmbio arrochado não deu certo. O Brasil entrou na crise com déficit em conta corrente do balanço de pagamentos, apesar de ter os preços das commodities nas nuvens.

Depois, disse que sua intenção não é fazer um "Fla x Flu":

- Tem algumas coisas que (o governo) está fazendo direito e outras que poderia fazer melhor.

Outro dia um grande jornal falou de escolas técnicas e ficou comparando... O Lula fez, o Serra não. A opinião pública não quer isso, não quer Fla x Flu. Quer coisas acontecendo.

O PT tropeça na crise

EDITORIAL
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Já não bastasse a fatalidade de disputar a próxima eleição presidencial, pela primeira vez desde 1989, sem a candidatura Luiz Inácio Lula da Silva, o PT terá contra si na campanha de 2010 os maus ventos da economia. Ainda que os estragos da crise financeira mundial não venham a mergulhar o Brasil numa recessão como a que já se instalou nos países centrais, bastará a ruptura do ciclo de bonança dos últimos anos para recobrir com pesadas nuvens as chances petistas de se manter no governo - com uma provável candidata, a ministra Dilma Rousseff, da escolha pessoal de Lula, sem raízes na agremiação e cujo apelo eleitoral por enquanto se traduz em índices de um dígito nas pesquisas de intenção de voto. Além disso, tampouco se sabe até que ponto a popularidade do presidente se manterá incólume, à medida que se frustrarem as atuais expectativas otimistas da maioria da população, e, menos ainda, qual será a sua capacidade de carrear votos para a sua afilhada política, no cenário de adversidade que se desenha.

O PT, portanto, tem motivos de sobra para se inquietar - e para procurar, desde já, uma estratégia eleitoral que atenue o dano inevitável da ausência, na cédula eletrônica, do nome que agrega votos numa escala a que a legenda não pode aspirar, para si, nem em sonho. Será, ao que tudo indica, uma jornada acidentada e de resultados duvidosos.

O primeiro passo, pelo menos, foi um tropeço. No último fim de semana, mais de 200 dirigentes partidários se reuniram em São Roque, no interior paulista, para um encontro da corrente Construindo um Novo Brasil, que controla o PT, nascida dos escombros do antigo Campo Majoritário, alcançado em cheio pelo escândalo do mensalão em 2005 (o que não abalou a liderança, no grupo, do ex-ministro José Dirceu). Ao cabo de três dias de palestras, com a presidenciável Dilma no papel de debutante, a elite petista chegou à notável conclusão de que a culpa pela versão brasileira da crise econômica cabe ao PSDB e ao DEM.

"A crise tem pai e mãe", proclamou no encerramento da reunião o secretário nacional de Comunicação do partido, Gleber Naime. "Ela é uma crise do modelo neoliberal, daqueles que no Brasil defenderam as idéias de desregulamentação do Estado, ou seja, o PSDB e o DEM. E esse debate o PT vai fazer." A confusão é geral. Para começar, os petistas agem como se as políticas que têm como anátema - aquelas iniciadas no primeiro governo de Fernando Henrique a partir da estabilização da moeda brasileira, com a criação do real, e sensatamente mantida, até hoje, pelo presidente petista - não fossem os alicerces de toda sua imensa popularidade. Além disso e mais importante ainda, foi graças a essas políticas, impropriamente rotuladas de neoliberais, que o Brasil é apontado hoje como o país mais apto entre os emergentes a resistir ao tsunami global. Ou, nos termos de um relatório da OCDE, divulgado na última sexta-feira, o cenário é de perda de ritmo, não de "forte desaceleração".

Se o PT, portanto, for aos palanques de 2010 com o dedo acusador apontado para o "modelo falido", como causador do que vier a ser, até lá, a crise no Brasil, estará fazendo campanha contra o governo de seu maior líder histórico e seu principal eleitor. O paradoxo é gritante - e revelador do bloqueio mental de que padece o petismo. O que a companheirada é incapaz de admitir é que não houve no Brasil, sob Fernando Henrique, nada que lembre a desregulamentação dos mercados financeiros nos EUA. Ao contrário, o Proer, que os petistas combateram a ferro e fogo, foi o que proporcionou ao sistema bancário nacional a estabilidade graças à qual não teve o destino dos seus congêneres da América do Norte e da Europa.

Também no plano do Estado, foi a "herança maldita" da administração FHC - com a Lei de Responsabilidade Fiscal e o equilíbrio das contas públicas - que hoje permite ao governo fazer praça do seu preparo para enfrentar a conjuntura ameaçadora.

"(No passado), o governo quebrava, perdia a capacidade de fazer política monetária, de expandir crédito", lembrou dias atrás Dilma Rousseff. "Hoje, estamos em situação diferente, temos todos os instrumentos para agir na crise. Podemos ampliar crédito e (adotar) tantas outras medidas para garantir uma aterrissagem mais suave." Para o PT, é porque Lula mudou tudo?

Aposta arriscada


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


O presidente Lula está dobrando a aposta na possibilidade de o futuro presidente dos Estados Unidos Barack Obama vencer rapidamente a crise econômica, e por isso já anuncia que em 2010 tudo terá passado. Prefere tentar preservar sua altíssima popularidade criando um ambiente fantasioso em torno de seu governo, a enfrentar a dura realidade que tem pela frente nos próximos anos. Corre o risco de ter contra si a desilusão dos 78% dos brasileiros que estão convencidos de que sua vida vai melhorar em 2009, certamente embalados pela retórica presidencial. Como todo mundo que fala muito, o presidente Lula vai deixando escapar pensamentos mais íntimos, que explicam suas posições públicas, muitas aparentemente descabidas.

Quando explicou candidamente que um médico não diria a um paciente que ele "sifu", mesmo sabendo que não tinha salvação, estava tentando explicar sua postura de animador de auditório enquanto a crise se agrava e o governo teima em negá-la. Ontem, quando garantiu que este Natal será o melhor dos últimos tempos porque o país está crescendo, e que a crise estará superada em 2010 porque nenhum governo consegue manter-se com uma crise indefinidamente, estava revelando sua aposta no governo Obama.

Enquanto pode, Lula vai valorizando os números passados como se representassem o presente, tentando ganhar tempo na memória do eleitor. Mas nunca o anúncio do crescimento de uma economia será tão anacrônico quanto o do PIB de 2008, que o governo comemora antes mesmo de ser oficial.

Um aumento do PIB que já foi superior a 5% e que poderá se tornar mais próximo de 4,5%, já indicando um processo irrefreável de desaceleração que está em andamento, enquanto o governo comemora as imagens no retrovisor que vão se distanciando cada vez mais.

O formidável índice de 70% de popularidade tem tudo a ver com os 78% que ainda acreditam que 2009 será melhor, enquanto é cada vez maior a possibilidade de haver uma recessão na economia já no primeiro trimestre do próximo ano.

O que está faltando para o governo agir? Tudo indica que a persistência em preservar a popularidade do presidente e, ainda por cima, sua capacidade de influir na sucessão presidencial, leva o governo a retardar uma aceitação mais clara de que a crise já está entre nós.

Ao contrário de 2003, quando Lula tinha tempo pela frente e, sobretudo, um ministro da Fazenda como Antonio Palocci para assumir a responsabilidade de atos impopulares que, sabia, dariam resultado mais à frente, hoje Lula já não tem nem tempo nem o convencimento de que precisa tomar medidas drásticas e urgentes para evitar uma crise futura mais séria ainda.

Os governos europeus e dos EUA, ao assumirem que há uma crise gravíssima a enfrentar, criaram comitês de crise, formularam planos que incluem uma mudança política e ideológica radical.

Mas, ao contrário do que pensam petistas mais afoitos que voltam a defender medidas de exceção diante da crise de autoridade do governo, nem o governo Bush admitiu que o capitalismo "sifu", nem os governos europeus estão estatizando o sistema financeiro por que se converteram ao socialismo diante da crise econômico.

O que eles estão fazendo é salvar o sistema capitalista, reforçando seus princípios e corrigindo distorções. O PT, ao tentar voltar ao passado para encontrar um bode expiatório para os problemas atuais da economia que, eles prevêem, trarão dificuldades políticas para o governo, está duplamente equivocado.

Critica a política econômica, que classifica genericamente como "neoliberal", responsável pelo relativo sucesso do governo Lula até o momento, e assume novamente posições econômicas retrógradas, como a redução do superávit primário para maior investimento em obras públicas, sem poder encarar o verdadeiro problema: o gasto do governo com a máquina do Estado, aparelhada pelo PT, é a verdadeira razão de o governo não poder investir mais em desenvolvimento.

A solução dos Estados Unidos de explodir o déficit e a dívida, que terá na futura administração Barack Obama um prosseguimento mais aprofundado ainda - o que levou ontem as bolsas mundiais à euforia - não serve para Lula por uma singela diferença: Obama emite dólar e Lula emite reais.

O mundo quer cada vez mais dólares, ninguém quer reais - se quisesse, os investidores não estariam saindo como boiada do país, fugindo do Real como o diabo da cruz, na definição de um economista.

A origem de nossos problemas está mais do lado da oferta, ou seja, sumiu o crédito para os empresários investirem e até produzirem. A necessidade é de liquidez. O Brasil pode e deve usar o Banco do Brasil, a Caixa e o BNDES para financiamentos da produção, mas de pouco adiantará se esses bancos estatais forem mal usados, se demorarem para agir, ou ficarem "trocando figurinhas dentro do próprio governo".

Todos descarregaram crédito para a Petrobras e, mais grave, a maior parte para capital de giro. Na melhor das hipóteses, significa que a Petrobrás está tirando crédito do resto da economia, como o próprio Lula reconheceu há alguns dias.

Da mesma maneira, se se confirmar a decisão do governo de acelerar os gastos das estatais para tentar evitar a recessão, haverá menos créditos para pequenas e médias empresas.

Em vez de tentar assumir o lugar da iniciativa privada para aquecer a economia, o governo brasileiro deveria estar empenhado em conter despesas públicas - de preferência buscando o déficit nominal zero - para poder atingir um índice de investimento entre 25% e 30% do PIB, e reduzir a carga tributária, além de retomar negociações para reformas tributária e previdenciária profundas.

O bagaço da laranja


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Difícil vai ser o PT convencer alguém com neurônios em estado razoável de conservação. Noves fora esse detalhe, é perfeita a estratégia do partido de transferir a culpa da crise econômica para o PSDB: se os tucanos importaram o modelo e ele desmorona, é preciso eleger uma pessoa comprometida com a mudança.

Seria apenas elementar o silogismo não fosse tosca e, sobretudo, cínica a tentativa do PT de ficar no poder mediante a reinvenção de um discurso de crítica aos fiadores originais da política econômica adotada pelo partido em dois períodos consecutivos frente à Presidência da República.

Isso depois de se negar a dividir com os autores os bons resultados obtidos ao longo de seis anos, de se apropriar do fim da inflação, da estabilidade da moeda e de todos os fundamentos, cuja adoção anterior permitiu ao governo Luiz Inácio da Silva desfrutar dos efeitos da bonança internacional e amealhar respeitável patrimônio de 70% de popularidade.

Tal decisão não é fruto de opiniões isoladas, coisa daquela ala antigamente denominada xiita.

Foi anunciada pelo tesoureiro do partido - "É a crise de um modelo do qual o governo FHC e o DEM foram os grandes patrocinadores no Brasil" - e corroborada pelo presidente da agremiação, deputado Ricardo Berzoini.

"Eles (os partido hoje de oposição) avalizaram o movimento neoliberal no Brasil", disse Berzoini todo convicto de que o ataque pesado à política inaugurada nos anos 90 é a saída ideal para o PT tentar eleger Dilma Rousseff ou quem quer que venha a ser o candidato, ou candidata, oficial à sucessão de Lula.

Pelo que se depreende do debate ocorrido entre dirigentes petistas no último fim de semana no interior de São Paulo, o partido pensa em patrocinar uma volta às origens, a fim de se credenciar ao recomeço; de preferência do zero naquilo que for conveniente.

Por exemplo: anula-se o desgaste de dois mandatos, a desmoralização resultante dos escândalos, a banalização das más companhias, a degeneração fisiológica, a perda da bandeira da ética em algum lugar no meio desse caminho e volta-se a preconizar ao eleitorado a "mudança".

A motivação para se dar um "boot" na máquina seria um problema, mas eis que a crise econômica surge para dar a solução aparentemente ideal: ao mesmo tempo permite ao PT dar o dito pelo não dito e ainda é uma maneira de atacar o principal candidato, o tucano José Serra, em primeiro lugar nas pesquisas.

O singular é que a nenhum dos dirigentes tenha ocorrido a hipótese de a argumentação soar tenebrosa ao eleitorado, do ponto de vista, senão da coerência (preceito devidamente revogado), pelo menos da amoralidade.

Evidentemente, o PT não espera que no meio da turbulência de conseqüências ainda desconhecidas o "seu" governo vá mudar radicalmente o rumo das coisas. Portanto, no essencial a política segue como está.

Sendo assim, como é que o PT pode pensar que o eleitor vá votar no representante de um governo que faz uma coisa, cujo partido diz que está errada, e promete, se eleito, fazer tudo diferente?

Como espera que alguém acredite que a responsabilidade seja dos dois partidos de oposição que estão há seis anos assistindo à comemoração do desempenho de uma política, sem direito a um mísero ingresso para a festa?

Pois então o governo usa e abusa de uma herança dita "maldita" no início, usufruiu de todos os méritos, subtrai do registro da História a assinatura dos autores e, quando o vento vira, devolve o capital dilapidado e sai ileso dizendo que não tem nada a ver com isso?

Foi isso o que propôs o PT em seu encontro de São Roque. Agora, pode ter havido um mal entendido. Se houve, urge o PT esclarecer as coisas o quanto antes.

Sob pena de fazer fama de mau caráter na praça, de querer crescer à custa de difamação, de não ter aplicado a fórmula correta a tempo de evitar o desastre e, pior, de não ter uma única idéia nova a apresentar ao eleitorado para justificar sua permanência no comando na Nação.

Antes que o leitor lembre a ausência de pensamentos (qualquer um, novos ou velhos) também na oposição, cumpre registrar ser este um fato sobejamente conhecido. Quem se apresentou ao debate com a novidade da estação foi o PT e, com isso, reservou mesa de pista na berlinda.

Mas admitamos que seja isso mesmo, que o PT pretenda reeditar em 2010 o discurso de 2006, atacando os neoliberais, os privatistas, os fiéis seguidores do Banco Central etc.

Ver-se-á frente a frente com um adversário de "top" semelhante. Com a diferença que José Serra discorre a respeito desse conteúdo de uma forma muito mais consistente, concorde-se com ele ou não.

Se o intuito do PT for justamente se preparar para enfrentar o adversário no campo localizado à esquerda, vai precisar de um invólucro melhor do que este da devolução da herança na antiga versão maldita, depois da satisfação obtida ao longo de dois mandatos consecutivos.

Sem lugar na Praça dos Três Poderes


Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO


É mais que uma ameaça do PT e do Palácio do Planalto o risco de o PMDB ficar sem uma cadeira institucional na Praça dos Três Poderes, nos dois últimos anos do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do qual tornou-se o principal aliado e pelo qual é tratado como parceiro preferencial para as eleições de 2010.

Trata-se de um risco real porque o acordo PT-PMDB, reafirmado semana passada pelos dois partidos, não basta para assegurar matematicamente a eleição do deputado Michel Temer (SP) para a presidência da Câmara.

Somadas, as duas bancadas contam com 174 deputados, sendo 94 do PMDB e 80 do PT. Supondo-se que Temer fique com todos eles, ainda faltariam 82 para a maioria absoluta exigida à eleição em primeiro turno.

Parece pouco, mas a desenvoltura da campanha do deputado Ciro Nogueira (PP-PI) é bastante para deixar preocupados os pemedebistas. Especialmente os senadores.

O Senado é um colégio menor (são 81 eleitores) e mais fácil de controlar, segundo dirigentes pemedebistas acostumados às duas disputas. A dúvida é a Câmara. O risco, avalia o partido, é abrir mão da presidência do Senado para o PT, como quer o governo, e Michel Temer perder a eleição entre os deputados.

Ciro é o candidato do que se convencionou chamar de baixo clero, como era Severino Cavalcanti (PE), seu colega de partido. A exemplo de Severino, tem amplo trânsito nessa maioria silenciosa que transita anônima os corredores da Câmara, mas não faz o estilo folclórico do "deputado das bananas" como Severino se qualificava, com orgulho. Ou na expressão politicamente incorreta de um dirigente partidário: "Ciro sabe comer com talher".

O deputado do PP está há mais de dois anos em campanha e é a nova cara de um baixo clero ressentido com as cúpulas partidárias, em geral por falta de oportunidades para trocar o fundão do plenário por um assento nos primeiros lugares, aqueles aos quais os holofotes da mídia reservam especial atenção.

Não bastasse o assédio de Ciro Nogueira, a trincheira do pemedebista está na mira também do "bloquinho" (PSB, PDT e PCdoB), que se ressente do acordo PMDB e PT que permitiu a eleição de Arlindo Chinaglia e a derrota do deputado Aldo Rebelo, para a presidência da Câmara, na eleição de 2007.

A manutenção do acordo de 2007 está ameaçada, mesmo, apesar das reiteradas juras feitas pelo PT de que não vai vincular as eleições para as duas Casas - ou seja, entregaria a Câmara para o PMDB, mas em troca levaria a presidência do Senado, em nome da harmonia dos poderes.

O PMDB até conversa sobre o apoio a Tião Viana (PT-AC), mas a candidatura do senador sofreu um baque esta semana, ao se descobrir que ele fez emendas ao Orçamento para a distribuição de 1,8 mil cadeiras de rodas no Acre - prática assistencialista que não condiz com seu discurso de campanha (os senadores seriam mais condescendentes com uma emenda coletiva, mas trata-se de uma emenda pessoal).

A insegurança em relação à Câmara, no entanto, levou a bancada de senadores a reclamar sua prerrogativa de eleger o presidente do Senado, em reunião realizada na semana passada, da qual participaram todos os seus 20 integrantes. Inclusive José Sarney.

O ex-presidente continuar a dizer que não é candidato, mas um novo argumento começou a circular em seu favor: embora filiado ao partido, ele seria o único nome que extrapola a bancada do PMDB, dispondo também de aliados em todas as outras bancadas, do Democratas ao PT.

Quebra de contrato

Os novos ataques do grupo dominante do PT à política monetária não chegam a surpreender. São inoportunos, mas recorrentes. Talvez reflitam apenas a frustração daqueles que viam no crescimento econômico a chance de se livrar de uma vez por todas de Henrique Meirelles, presidente do Banco Central (BC), e sua equipe. Ou talvez a tentativa de impedir que o tucano José Serra tome conta do discurso da queda dos juros, que o mercado futuro já contabiliza para mais dia, menos dia.

Discurso, aliás, que há mais de oito anos é também recorrente no governador de São Paulo. Serra costuma brincar dizendo que não deixou o Ministério do Planejamento, em 1996, para ser candidato a prefeito de São Paulo; na realidade, ele foi candidato (e perdeu) para deixar o ministério, onde acumulara um imenso contencioso com a equipe econômica. Entre outros motivos, juros altos, embora já se iniciasse um movimento de queda, e câmbio apreciado.

Mas a investida do Construindo um Novo Brasil, a nova denominação do antigo campo majoritário do PT, também pode esconder outras poções que fervem em caldeirões petistas, como a retirada da autonomia que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva até agora deu ao BC. Seria uma quebra de contrato, pois a autonomia, mesmo restrita ao fio de bigode entre Lula e o presidente do BC, foi a condição que Meirelles impôs para renunciar a um mandato de deputado federal e assumir o Banco Central numa época em que a cobiçada cadeira era evitada por outras cabeças mais cotadas para a função.

Roda mundo

As opiniões do senador José Sarney sobre o governador de São Paulo, José Serra, não são "imutáveis", como se habituou a acreditar o mundo político nos últimos seis anos, segundo interlocutores assíduos do ex-presidente e de sua filha Roseana Sarney. Uma operação da Polícia Federal num escritório do marido de Roseana, em 2002, envenenou a relação dos Sarney com Serra e jogou por terra a candidatura presidencial de Roseana, bem avaliadas por todas as pesquisas da época.

Nesse período, Roseana e o marido foram isentados pela Justiça. Os interlocutores da família, por outro lado, dizem que as opiniões de Sarney sobre Serra "não são imutáveis". Suas restrições seriam muito mais ao caráter "paulista" da candidatura Serra. O senador tem sido aconselhado a conversar com o presidenciável tucano.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

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segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Serra amplia liderança para 2010; Ciro cai, e Dilma sobe


DA REDAÇÃO
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Governador paulista lidera com taxas que variam de 36% a 47%, conforme o cenário

O deputado Ciro Gomes caiu de 5 a 6 pontos percentuais, enquanto a ministra da Casa Civil ganhou cinco pontos; Heloísa Helena ficou estável

O governador paulista José Serra (PSDB) reforçou sua condição de candidato favorito à sucessão presidencial em 2010 após as eleições municipais nas quais reelegeu Gilberto Kassab prefeito de São Paulo, consolidando sua aliança com o DEM.

A menos de dois anos da eleição, Serra lidera com taxas que variam de 36% a 47%, conforme o cenário. O segundo colocado, o deputado Ciro Gomes (PSB), caiu de cinco a seis pontos percentuais, enquanto a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), subiu cinco pontos e varia hoje de 7% a 12%. A ex-senadora Heloísa Helena (PSOL) manteve-se estável.

No cenário 1, Serra subiu de 38% para 41%, enquanto Ciro caiu de 20% para 15%. Heloísa

Helena manteve seus 14%, e Dilma subiu de 3% para 8%.

O governador mineiro Aécio Neves (PSDB) -que, com certa dificuldade, conseguiu eleger Marcio Lacerda (PSB) para a Prefeitura de Belo Horizonte- também melhorou um pouco seu desempenho: ele oscilou de 15% para 17% no cenário em que aparece como candidato do PSDB -ainda está atrás de Ciro (25%), mas aparece empatado com Heloísa Helena (19%).

Quando Ciro é retirado da disputa, Serra chega a alcançar 47%, contra 17% de Heloísa e 10% de Dilma; se Aécio é o candidato do PSDB, Heloísa assume a liderança com 27%, contra 23% do governador mineiro e 12% da ministra da Casa Civil.

Por fim, no cenário em que tanto Serra quanto Aécio são apresentados como candidatos (no mês passado o PMDB convidou o governador mineiro a se filiar ao partido), Serra lidera com 36%, com Ciro (14%), Heloísa (13%) e Aécio (12%) embolados em segundo. Dilma aparece mais atrás, com 7%.

Serra lidera em todas as regiões, mas tem seu melhor desempenho no Sudeste (no qual chega aos 50% dos votos no cenário sem Ciro) e no Norte/ Centro-Oeste (onde obtém 47% no cenário sem Ciro). Aécio vai bem no Sudeste -atinge 33% na simulação sem Ciro.Ciro é mais forte no Nordeste (onde alcança 34% quando Serra não é candidato), região em que Heloísa Helena também se destaca (chega a 35% quando disputa contra Aécio e Dilma).

A intenção de voto em Serra diminui conforme aumenta a escolaridade -o oposto do que ocorre com Aécio e Dilma. O perfil dos eleitores da ministra da Casa Civil ainda é muito diferente da base política que elegeu Lula, o que sugere que hoje a maioria da população ignora que o presidente tem defendido sua candidatura em 2010.

Apesar disso, na pesquisa espontânea Dilma já aparece com 2% -o mesmo percentual de Geraldo Alckmin (PSDB), que, dois anos atrás, teve 39% dos votos no segundo turno da eleição presidencial. Lula tem 25% de menções espontâneas, seguido de Serra com 6% e Aécio com 4%. Ciro Gomes, Heloísa Helena e Fernando Henrique Cardoso aparecem com 1%.

Eleições passadas

Nas últimas eleições presidenciais, o candidato que liderava as pesquisas dois anos antes do pleito em geral teve êxito, embora Lula, que liderava as pesquisas em 1992, tenha perdido em 1994.

Em dezembro de 1996 a emenda da reeleição ainda não tinha sido aprovada, mas 38% dos eleitores apoiavam a recondução de Fernando Henrique Cardoso ao cargo em 1998 (que venceu com 53% no 1º turno).

Em dezembro de 2000, Lula liderava as pesquisas com 26% a 30% das intenções de voto, enquanto Serra tinha 6%. Em 2002, Lula venceu o tucano por 61% a 39% no 2º turno. Em 2004, o apoio a Lula variava de 41% a 45%. Ele venceu Alckmin por 61% a 39% no 2º turno.

O Datafolha ouviu 3.486 pessoas com 16 anos ou mais em 180 municípios do país. A margem de erro máxima da pesquisa é de dois pontos percentuais.

Da reeleição ao fim das ilusões


Wilson Figueiredo
Jornalista
DEU NO JORNAL DO BRASIL


Com a asa pesada de chumbo desde o tempo do mensalão, o relator da reforma política na CCJ – deputado João Paulo Cunha (PTB, SP) – apronta o parecer sobre as 40 propostas, direta ou indiretamente, relacionadas com a reeleição, a duração de mandato e demais conexões de interesses menores. Apronta intransitivamente, à sombra da frondosa reforma política. A base parlamentar oficial e os três partidos de oposição estão de acordo em resolver pelo voto tudo que puder favorecer os políticos, mesmo com afronta aos brios nacionais. O ponto de partida será a extinção do segundo mandato consecutivo e, no lugar da reeleição, encaixar o mandato de cinco anos que vigorou de 1946 a 1964. Mas há outras ponderações.

Em princípio, o preço para arquivar a reeleição é barato, e a democracia pode pagá-lo com o troco de que dispõe. Sem reeleição, cinco anos são perfeitamente suportáveis num mau governo. Se o governo for bom, acabará acomodado em algum lugar na História do Brasil. O relator foi além da missão de tirar da sala o bode de mau cheiro denominado reeleição, que se insinuou desde o primeiro presidente pelo voto direto. A idéia ficou por perto e só se estabeleceu depois que Fernando Henrique se esbaldou. Quando Lula passou a ser presença obrigatória em todas as sucessões, a reeleição se beneficiou da ilusão de que o confronto plebiscitário era a garantia contra a esquerda. Foi, mas, ao contrário, a advertência de que estavam começando outro século e outro ciclo. O presidente Lula não se dá por achado. Planta-se na encruzilhada de hipóteses de candidaturas e da crise internacional, em que todos exorcizam fantasmas portadores de DNA do capitalismo.

É geral, mas vaga, a concordância com a retirada do bode eleitoral inserido na reforma. Não é o fim nem o começo de nada. O perigo é misturarem-se propostas queremistas do terceiro mandato e nostalgia social-democrata com decisões de pequeno calibre municipal. A premissa é a remoção do segundo mandato com que a social-democracia acreditou fazer história para trás. A conseqüência: o grau maior de imprevisibilidade. E depois que a crise passar? A reeleição foi a dissipação da vitória de Fernando Henrique Cardoso. Lula, ao contrário, foi social, mas do resto só depois se terá noção segura. A reeleição dele nada ficou devendo, em matéria de frustração, à do antecessor. Cada qual teve a ajuda agregada pela mão da crise financeira internacional. O roto nada tem a dizer do esfarrapado. Lula não confirmou nenhuma das expectativas à esquerda e, queira ou não, desse lado vai sair sem capital de giro.

O parecer do relator estende uma cortina de fumaça para esconder o desperdício de expectativa democrática dos dois beneficiários da reeleição: os mandatos de Fernando Henrique foram festivais de democracia, mas de novo-rico (inclusive pelo segundo mandato), e os de Lula quermesses sociais, festa de arraial cívico-rural, com a incorporação da faixa social de baixo ao que se entende como consumo elementar. Palavrório de dois falastrões. Não há indício de que a reeleição esteja com os dias contados. Que não se descarte a hipótese de que o terceiro mandato se recuse a sair da cabeça dos que trabalham à sombra. O benefício maior será a restauração do mandato de cinco anos, já devidamente testado. A eleição de vices por um lado e presidentes por outra chapa deixou vulnerável a Constituição de 1946. Que não se repita o precedente equivocado que fez de João Goulart um estranho no ninho de Jânio Quadros. O que parecia sutileza democrática foi a semente da tentadora renúncia presidencial para encurtar o caminho, e o fermento da crise crônica que não precisou mais esperar.

Entre as razões do relator não se incluem hábitos políticos que distanciam a democracia de seus fins. Democracia está mais para renovação do que para reeleição. Cinco anos são suficientes para um bom governo e, com mais razão, para maus governos. João Paulo Cunha passa ao largo e finge não perceber, no anonimato das pesquisas, um resíduo de popularidade em que fermenta a idéia do terceiro, que o presidente condenou oralmente. Mas apenas de palavra, sem nada escrito para documentar.

Triplo Marx


Frei Betto
DEU EM O GLOBO


O arcebispo católico de Munique, Reinhard Marx, lançou há pouco um livro intitulado "O capital". A capa contém as mesmas cores e fontes gráficas da primeira edição de "O capital", de Karl Marx, publicada em Hamburgo em 1867.

"Marx não está morto e é preciso levá-lo a sério", disse o prelado por ocasião do lançamento da obra. "Há que se confrontar com a obra de Karl Marx, que nos ajuda a entender as teorias da acumulação capitalista e o mercantilismo. Isso não significa deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades cometidas em seu nome no século XX."

O autor do novo "O capital" qualifica de "social-éticos" os princípios defendidos em seu livro, critica o capitalismo neoliberal, qualifica a especulação de "selvagem" e "pecado" e advoga que a economia precisa ser redesenhada segundo normas éticas de uma nova ordem econômica e política.

"As regras do jogo devem ter qualidade ética. Nesse sentido, a doutrina social da Igreja é crítica frente ao capitalismo", afirma o arcebispo. E acrescenta: "Um capitalismo sem marco regulatório é hostil às pessoas."

O religioso reflete bem a posição oficial da Igreja Católica perante o capitalismo: criticam-se seus "abusos", como se esses não fizessem parte de sua própria essência, baseada na acumulação privada da riqueza.

E quem haverá de pôr o guizo no pescoço do gato? O Estado capitalista é capaz de exercer a função de "marco regulatório" e impor limites à especulação e à exploração? Se um governo democrático-popular o faz, como ocorre hoje em países da América do Sul, desencadeia-se a grita geral de que é "populista" e "totalitário".

O livro se inicia com uma carta de Reinhard Marx a Karl Marx, a quem chama de "querido homônimo", falecido em 1883. Roga-lhe reconhecer agora seu equívoco quanto à inexistência de Deus. O que sugere, nas entrelinhas, que o religioso admite que o autor do "Manifesto comunista" se encontra entre os que, do outro lado da vida, desfrutam da visão beatífica de Deus.

O lançamento da obra coincide com a turbulência financeira que, de certa forma, confirma as teorias de Karl Marx quanto às crises cíclicas do capitalismo. Contudo, o arcebispo ressalta que seu homônimo acertou muito pouco em suas previsões revolucionárias, como o surgimento do socialismo em países de avançado desenvolvimento capitalista. O que se viu foi o contrário, o socialismo florescer, primeiro, num país semifeudal como a Rússia.

Falta ao livro explicar por que a Igreja Católica da Alemanha jamais excomungou Hitler, que se dizia católico, e também se equivocou ao aplicar boa parte de seus fundos no banco Lehman Brothers, cuja falência confirma, sim, as previsões do velho Marx.

Tudo indica que a obra de monsenhor Reinhard fomentará um novo interesse pelas do seu homônimo, assim como nas décadas de 1960 e 1970 muitos jovens, encantados em abraçar o marxismo, foram aprendê-lo no livro "O pensamento de Karl Marx", escrito, para refutá-lo, pelo jesuíta Jean-Yves Calvez. Sua edição portuguesa, em dois tomos, era disputadíssima em meus tempos de prisão sob a ditadura militar.

Entre um Marx e outro convém não se esquecer de um terceiro que figura entre os dois: Groucho Marx. Em matéria de concepções materialistas, o humorista americano não merece reparos: "Há coisas mais importantes que o dinheiro, mas... custam tanto!"

Que o digam aqueles que, ao ocuparem funções de poder, abandonaram suas antigas concepções socialistas e, hoje, liberam R$8 bilhões (metade a União, metade o governo de São Paulo) para salvar da crise a indústria automobilística instalada no Brasil. Por que não destinar tais recursos à ampliação do metrô, que favorece a coletividade?

Só mesmo Groucho Marx para explicar: "Estes são meus princípios; se você não gosta deles, eu tenho outros."

FREI BETTO é escritor.

A crise enfim chegou? Sorriam, brasileiros


Augusto Nunes
DEU NA GAZETA MERCANTIL

"Você é feliz?", perguntou o jornalista a Tonia Carrero. "Sou", fez uma ligeiríssima pausa a grande atriz. "Várias vezes ao dia." Bela, talentosa, vencedora, rica, bem-sucedida - o que estaria faltando a essa rainha dos palcos? Nada. Ocorre que Tonia pensa. Quem tem a cabeça em bom estado, e não concede férias ao cérebro, sabe que não existe a dor que nunca passa, mas é impossível ser feliz o tempo inteiro. É assim com as pessoas. É assim com os países.

Não com o Brasil, ressalvam os resultados da pesquisa divulgada na quinta-feira pelo Datafolha. O governo Lula é considerado ótimo ou bom por 70% dos entrevistados - o maior índice obtido por um presidente desde o fim da ditadura. Estão satisfeitos com a situação econômica 61%. E somam 78% os que crêem que 2009 vai ser ainda melhor. "Os brasileiros, até agora, não sentiram os efeitos da crise", deduz Mauro Paulino, diretor do Datafolha. Bem ou mal, 72% sabem que problemas financeiros andam tirando o sono de muita gente. Só que longe daqui.

Já faz algum tempo, Lula deu por resolvidos problemas acumulados em cinco séculos de incompetência, avisou que logo cuidaria do pouco que restava, comunicou que nunca antes neste País houve um governante tão formidável e ordenou ao Brasil que fosse feliz todos os dias. Quem tem motivos para não viver em estado de graça no paraíso que Deus poupou de catástrofes naturais e Lula blindou contra desastres econômicos? Só os napoleões de hospício, os que babam na gravata e os que acordam e dormem torcendo pelo insucesso do ex-operário genial.

A seqüência de pesquisas avisa que a tribo dos descontentes hoje não passa de 7% , e caminha para a extinção. Em contrapartida, a grande maioria não se limitou a acatar a decretação da felicidade geral e permanente. Resolveu ficar mais feliz sempre que se conjugam um claro sinal de perigo e uma maluquice do Grande Pastor. A marca dos 70% foi alcançada ao fim dos três dias em que Lula jurou que haverá emprego para todos, a Vale demitiu 6 mil, Lula explicou que a crise vai fortalecer o Brasil e a inflação ficou mais musculosa.

Deve-se presumir que, graças à medonha conjunção dos astros ocorrida na quinta-feira, a próxima pesquisa acusará outro salto no índice de popularidade do presidente. Excitado com a cavalgada do dólar, com a queda da produção industrial e com outras evidências de que a marolinha quer ser tsunami quando crescer, Lula fundiu a indigência intelectual com o apreço pela vulgaridade e foi à luta.

"Quando o mercado tem uma dor de barriga, e nesse caso foi uma diarréia braba, quem é chamado? O Estado", perguntou e respondeu, aos berros e com o rosto avermelhado, no meio do improviso inverossímil. Sem pausas, incorporou um médico examinando o doente em estado grave para justificar o otimismo inabalável. "O que você fala? Dos avanços da medicina ou olha pra ele e diz: meu, sifu?". Sabe-se agora que o doutor Lula acha que o Brasil doente sifu. Só não diz a verdade para poupar o paciente.

Se fizer outro discurso desses numa semana ruim, o País passará da felicidade à euforia e Lula finalmente chegará aos 100%.

Augusto Nunes - O autor escreve nesta seção às segundas e quartas

Instituições e estouvamento


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Dias atrás, em entrevista, o presidente da Capes, Jorge Guimarães, fez declarações de alguma repercussão sobre a concessão de bolsas de doutorado em economia no exterior. Segundo ele, nossos doutorandos se viriam formando segundo um modelo "que faliu o mundo" e que se teria mostrado "totalmente anticientífico, para dizer o mínimo", donde a necessidade de reexame da política da Capes a respeito.

É fácil apontar o que isso pode conter de distorção. Apesar de que Jorge Guimarães fale de "perguntar à área de economia", pode haver, e houve, a leitura segundo a qual se trataria de uma agência estatal a dizer o que é boa ciência econômica, com base em avaliação discutível sobre o que ocorre em determinado momento em seu campo próprio de estudo. Mas o tema envolve a questão da relação entre o Estado, como representante da coletividade nacional e supostamente atento aos seus interesses gerais, e a comunidade dos que se dedicam à atividade científica em diversos campos.

No limite, há dois extremos negativos, o da imposição de diretrizes feita autoritariamente pelo Estado aos especialistas e o de um "tecnocratismo" em que os especialistas ou peritos, tomando como não problemáticos os fins a orientarem seu trabalho de pesquisa e ensino e baseando-se em sua qualificação especial quanto ao conhecimento "técnico" dos meios para a busca daqueles fins, reclamam autonomia nas decisões pertinentes. Se a questão é enquadrada pelo desiderato de uma sociedade e um Estado democráticos, a ponderação decisiva é a de que os fins da atividade científica, como quaisquer outros, podem, sim, surgir como problemáticos do ponto de vista da sociedade, e há um espaço legítimo para a política (e para os interesses que nela se dão, que os cientistas com frequência abominam) na fixação dos fins a serem perseguidos. A presunção tem de ser a de que são os cidadãos os melhores juízes dos seus interesses em qualquer área, e em última análise deve caber a eles, ou a seus representantes num Estado democraticamente constituído (sobretudo se são públicos os recursos de que dependem as atividades), as decisões sobre os fins: se necessário, que os peritos se expliquem quanto aos meios, ou quanto aos aspectos "técnicos" dos problemas. E que possa haver o equilíbrio apropriado entre sensibilidade e responsabilidade democráticas, de um lado, e, de outro, a autonomia necessária à prática científica.

O assunto apresenta pontos de contato com outro que tem dado muito mais pano para mangas, o do ativismo do Judiciário, que se vem tornando militante e, com seus prós e contras, complicando a definição da área de competência dos diferentes poderes e suas relações. Com a invocação de filósofos alemães, Gilmar Mendes tem falado de uma "representação argumentativa" da sociedade a ser exercida pelo STF, em contraste com a representação resultante do voto popular que se teria no Legislativo. Se lida como envolvendo a suposição de que não há "argumentação" no exercício da representação parlamentar, a posição pode ser acusada de arrogância e, também ela, de "tecnocratismo": seria esse o caso se prevalecesse a suposição de que o Judiciário, ou o STF, dispõe de uma competência "técnica" especial, a do conhecimento das leis, que lhe permitiria de alguma forma apreender e acomodar os próprios fins da coletividade e representá-los "virtualmente". Mas as coisas são confusas.

Para começar, é claro que o debate e a argumentação são parte importante do enfrentamento e das eventuais manobras que compõem a atividade parlamentar - e há até quem sustente, reivindicando perspectivas afins ao chamado "realismo legal", que o debate marcado pelo empenho de dar representação real aos interesses diversos, apesar (ou por causa) de distanciar-se da idealização do debate conduzido pelo "juiz imparcial" e supostamente orientado apenas pelos melhores argumentos, torna-se um debate melhor. Mas o realismo legal é ele mesmo equívoco, remetendo tanto a essa representação "estratégica" de interesses quanto à disposição por parte do juiz de ir "além" da letra da lei em prol de "valores" supostamente mais altos. Ele serve, assim, de fundamento ao próprio ativismo do Judiciário: não se trata apenas de colocar em prática a lei cujo conhecimento seria o apanágio do STF, mas também de sua reinterpretação e mudança pela corte na condição de "porta-voz do povo" e segundo valores que emergem da "interpretação ativa" da Constituição realizada cotidianamente por todo cidadão. Indo mais longe, a dinâmica de uma representação argumentativa passa, na verdade, de "virtual" a, em certo sentido, "real", e fatalmente precária como tal, ao valer-se de audiências públicas em que os "amigos da corte", definidos a critério do próprio órgão judicial, são chamados a manifestar-se.

Do ponto de vista de uma sociologia jurídica, não caberia negar o que há de justificado, em geral, no recurso a postulados realistas, que seriam, ademais, presumivelmente um requisito mesmo para a construção de normas e instituições melhores. Mas, assim como se mostram complicadas as relações entre sociedade, Estado e comunidade científica a que enviam as declarações do presidente da Capes, assim também é dificilmente aceitável que sejam as próprias cortes de Justiça, sem mais, a transformarem de maneira estouvada o princípio talvez saudável de um realismo sociologicamente informado (que, de partida, remete a disciplinas em que os juízes não têm por que pretender especial competência ou qualificação) em novas normas e procedimentos de duvidosas consequências para a segurança jurídica. É imperioso que, com as reformas que se façam necessárias, nosso Legislativo venha a reafirmar com vigor o seu papel.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

Paralisado diante da crise


Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

A única coisa boa para a economia brasileira nesta crise financeira global foi a depreciação cambial

O GOVERNO brasileiro parece paralisado diante da crise econômica mundial. Já abandonou a tese da "blindagem", mas continua com a esperança de que ela nos atingirá docemente porque a crise começou nos Estados Unidos, e não aqui. É verdade que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), desde outubro, percebeu que teria que captar mais recursos e ampliar suas aplicações para compensar o natural retraimento dos bancos comerciais.

E que o Ministério da Fazenda vem procurando proteger os dois setores privados mais atingidos pelo encolhimento do crédito: a indústria automobilística e a de construção. Mas essas medidas são tímidas e não contrabalançam a política monetária do Banco Central.

Não obstante a crise já estivesse clara desde o segundo semestre de 2007, até há dois meses o Banco Central continuava a aumentar a taxa de juros porque ainda acreditava que a demanda interna estivesse aquecida. Agora os jornais informam que sua disposição é a de mantê-la no nível atual, não obstante os indicadores de desaquecimento da demanda sejam claros. Na verdade, o Banco Central já deveria estar associado ao Ministério da Fazenda e ao BNDES na luta por evitar a recessão, que já é triste realidade nos Estados Unidos e na Europa. E, assim, já deveria ter iniciado a baixa da taxa de juros brasileira em pelo menos um ponto percentual a cada mês. A desculpa é sempre a mesma -a inflação-, mas agora o argumento é outro: a depreciação cambial.

A única coisa boa para a economia brasileira nesta crise financeira global foi essa depreciação.

Nesse caso, o mercado corrigiu uma taxa de câmbio que se havia gravemente apreciado e fazia o país voltar à condição de déficit em conta corrente. A depreciação será origem de alguma inflação, mas não há razão para temer uma aceleração maior. O "pass-through" da variação da taxa de câmbio para a inflação é inferior a 10%. Por outro lado, o efeito inflacionário da depreciação está sendo compensado pela queda dos preços das commodities e pelo rápido desaquecimento da demanda em curso.

Diferentemente dos Estados Unidos e do Japão, cuja taxa de juros já é muito baixa, no caso do Brasil a alta taxa de juros oferece um amplo campo de manobra para a política monetária.

Enquanto aqueles países já estão na clássica armadilha da liquidez, o Brasil está longe desse ponto. Ao não enfrentar de frente o problema da recessão em marcha, o governo brasileiro está mais uma vez perdendo a oportunidade de voltar a taxas de juros civilizadas. E -o que é mais grave- está ameaçando o país de mergulhar em uma recessão perfeitamente evitável.

Para não agir, o Banco Central argumenta que sua única responsabilidade é a de controlar a inflação. Assim o determina a sagrada política de metas de inflação. Enquanto o quadro internacional era muito favorável, o Banco Central podia "brincar de meta de inflação" sem conseqüências muito graves para a economia. A economia crescia de maneira insuficiente, ficávamos muito atrás dos outros Brics, mas não havia crise. O quadro atual, porém, é outro, e exige do governo políticas de sustentação da demanda fortes e determinadas. Políticas que não estão acontecendo.

Luiz Carlos Bresser-Pereira , 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
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domingo, 7 de dezembro de 2008

''É uma luta que não acaba nunca''


AI5, 40 anos depois
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Para Serra, que amargou o exílio, os jovens entendem o significado da ditadura quando a comparam com o regime democrático

O governador José Serra entende que a melhor explicação que alguém pode dar aos jovens sobre o significado da ditadura é mostrar como ela era. "É compará-la com o regime democrático, até para que a juventude possa valorizar melhor a democracia", disse ele. Serra opinou que a busca pelo aperfeiçoamento da democracia "é uma luta que não acaba nunca". Eis a entrevista:

O senhor estava no Chile no dia 13 de dezembro de 1968. Como entendeu a notícia da edição do AI-5, na ocasião?

Pelas informações que recebia do Brasil, eu já estava aguardando um endurecimento do regime. Soube da notícia pela Conceição Tavares, quando estava de cama, com febre tifóide, uma infecção cuja incidência era relativamente alta na região de Santiago. Na época, minha mulher estava grávida, eu tinha acabado o curso de pós-graduação em Economia e havia sido contratado pela universidade. Eu não sou da "geração de 1968". Havia deixado o Brasil em 1964, depois do golpe. Era presidente da UNE e nas semanas que sucederam o golpe fui bastante procurado pelos órgãos de repressão. Sem condições de permanecer em liberdade, passei pela Bolívia e fui para a França, onde contava com uma bolsa para estudar Economia, embora fosse aluno de Engenharia, na Politécnica de São Paulo. Voltei ao Brasil em 1965, clandestino, mas não houve condições de permanecer. Fui então para o Chile, com o propósito de terminar meus estudos. Em 1966, fui condenado pela Justiça Militar, num processo inteiramente inventado. Por isso, havia perdido quase toda as esperanças de regressar ao Brasil, no curto prazo, para uma vida normal, aberta. O AI-5 eliminou esse "quase". Aliás, acabei tendo uma recaída da febre tifóide, o que é raríssimo. A probabilidade, segundo os médicos, era de 1%. Quem sabe foi uma somatização do AI-5.

E como o senhor o vê hoje?

Quarenta anos depois o vejo como o pior episódio da história brasileira do pós-guerra. Senti que iria se abater sobre as forças da esquerda, em todas suas variantes, uma repressão para valer. Seria a ditadura de verdade, sem passeatas nem canções de protesto. Não acreditava na solidez de uma reação armada. Fiquei no Chile até 1974, já com dois filhos. Lá, sofri a repressão que não chegou a me atingir no Brasil, pois fui preso depois do golpe e, creio, por pouco e por muita sorte, não entrei numa lista de "desaparecidos". Aprendi muito, muitíssimo, com dois golpes e dois exílios nas costas. Sobretudo, a nunca subestimar os valores da democracia, a importância de obedecer as regras desse regime e, também, das políticas públicas responsáveis.

A seu ver, que país saiu dessa experiência?

Um país mais complicado, mais difícil. Só nos livramos do AI-5 em 1979, e do regime autoritário, em 1985. O preço foi alto. A Nova República teve de se defrontar com enormes expectativas de liberdade e de solução rápida dos problemas de desigualdade, num Estado relativamente desorganizado. Entre as forças que vinham da esquerda, prevalecia, e isto aconteceu até o PT vencer as eleições presidenciais, a idéia de que mudança gradual é enganação, o que valia era a "ruptura", e que o governo estava sempre do lado errado. A ditadura que começou em 1964 e se materializou completamente em 1968 frustrou também a renovação política da sociedade brasileira. Grande parte do que havia de melhor na minha geração e nas seguintes ou ficou à margem da política ou não aprendeu a fazer a política democrática.

Qual o peso da resistência ao regime na construção de lideranças que hoje ocupam cargos importantes da administração pública do País?

Para algumas lideranças, a resistência contribuiu para firmar convicções mais realistas e solidamente democráticas. Para outras, não.

O senhor foi militante da Ação Popular (AP). Como viu, do exílio, a opção que a AP depois fez pela luta armada?

A AP, como tal, não chegou a entrar na luta armada, a praticar a luta armada. Eu acompanhei o processo a distância, pois não estava no Brasil e tive pouca influência direta nos rumos da AP. Depois de 1964, a AP optou pelo marxismo-leninismo, seja lá o que isso puder significar hoje em dia. Depois se desenvolveu uma vertente forte, maoísta. Mas o partido acabou se dividindo, com os maoístas indo para o PC do B, que efetivamente tentou fazer a luta armada no Araguaia. Os que ficaram com a AP, apesar de não se organizarem militarmente, foram sendo rapidamente dizimados, muitos sob as piores torturas, como Paulo Wright, para quem escrevi mais de uma vez insistindo para que saísse do Brasil, pois acabaria sendo morto. Ele e muitos outros.

O que o senhor pensava da luta armada?

Desde que deixei o Brasil, em 1964, eu era cético sobre as possibilidades de um enfrentamento armado do regime, seja no esquema do foco guerrilheiro, o "foquismo", que procurava replicar a revolução cubana, seja no esquema da guerra popular maoísta, do campo para as cidades. O texto clássico do foquismo foi do Régis Debray, intitulado Le Castrisme, la Longue Marche de l?Amérique Latine, publicado no Les Temps Modernes, revista do Sartre, que eu lia na França, quando lá estava. Não me seduziu nem intelectual nem politicamente. No Brasil, no final dos anos 60, o texto mais influente sobre o foquismo era de um militante da Var-Palmares ou da VPR, com o cognome de Jamil (Ladislau Dowbor).

Como explicaria aquele período aos jovens que não conheceram a ditadura?

Não é fácil explicar, mas basta descrever. A melhor explicação possível sobre o que significou a ditadura é mostrar como eram coisas quando ela prevalecia. É compará-la com o regime democrático, até para que a juventude possa valorizar melhor a democracia. E, tanto quanto isso, se prepare para lutar pela democracia. É uma luta que não acaba nunca.

AI-5, 40 anos depois

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

As principais revelações destes cinco personagens, Jacob Gorender, Fernando Gabeira, Aloysio Nunes Ferreira, Jean Marc von der Weid, Armênio Guedes, estão aqui contidas e, em seu conjunto, formam um rico painel para explicar as visões da esquerda.

Jacob Gorender: Erro da esquerda foi isolamento da massa

O historiador Jacob Gorender, que produziu impactantes relatos sobre a luta da esquerda contra a ditadura militar, lembra que circulava em liberdade antes do AI-5, embora já estivesse vinculado ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), fundado por dissidentes do PCB que queriam a luta armada. Quando o ato veio, ele não mergulhou na clandestinidade nem se exilou, como fez a maioria dos militantes da esquerda radical, nem andava armado. Apenas acrescentou alguma prudência a seus deslocamentos.

Hoje ele é um crítico da luta armada, embora tenha ressalvas amenizadoras. "O poder não viria pacificamente", diz. Reconhece que Che Guevara foi "precipitado e imprudente" ao abrir uma frente guerrilheira quando estava isolado, na Bolívia.

Isso acabou se repetindo aqui, admite: "A luta armada tinha de ser combinada com ações de massa." Ele critica as opções que restaram: "Ficamos isolados, sem condições de dar respostas adequadas às acusações que o regime militar, que nos chamava de terroristas, nos fazia."

Gorender diz que hoje está convencido de que foi errado insistir na guerrilha sem ter meios de falar com as massas que eram objeto da luta política. Mas ele tem uma visão generosa sobre os erros cometidos: "A esquerda errou, mas nós temos de compreender a situação em que os erros foram cometidos." Ao final, desabafa: "O que não poderão dizer é que nós fomos passivos." Fernando Gabeira: Os dois lados não leram os sinais

Em outubro de 1968, quando 920 estudantes foram presos no congresso da UNE, em Ibiúna, a maior preocupação da polícia ao anunciar o seu feito foi dar mais destaque às pílulas anticoncepcionais apreendidas com as moças do que ao "material subversivo" encontrado, lembra o hoje deputado Fernando Gabeira (PV-RJ). O governo militar era, além de autoritário, conservador, diz ele, e isso se revelaria na censura depois do AI-5.

Esse, para Gabeira, foi o primeiro sinal da fronteira entre os comportamentos que muitos anos depois seriam uma grande referência de 1968. "Na época, a extrema direita e a esquerda radical ignoraram esses sinais porque eram igualmente conservadoras", afirma o ex-guerrilheiro do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR), que participou do mais importante seqüestro do regime militar, o do embaixador americano Charles Burke Elbrick.

Ele analisa que a luta armada pregada e sustentada pela esquerda radical trazia um leque de contradições que não se resolveriam até hoje: "A dicotomia entre burguesia e proletariado não tem de acabar com a extinção de um deles", ironiza.

Ele diz que o exílio lhe serviu para fazer observações e uma profunda avaliação crítica. Quando voltou ao Brasil, em 1979, trazia uma nova agenda, recolhida na Europa: a importância das mudanças comportamentais, o apreço pelas liberdades individuais e pela democracia e uma atenção para os problemas do meio ambiente.

Aloysio Nunes Ferreira: Diferença que pode separar vida e morte

"Tínhamos direito de recorrer à força para derrubar o regime", defende o chefe do Gabinete Civil do governo paulista, Aloysio Nunes Ferreira, à época militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). Mas ele reconhece o equívoco que a opção pela luta armada representou: "A gente não sabia, mas o Brasil não estava à espera de jovens com armas na mão para libertá-lo."

Até 1968 Aloysio era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas naquele ano ele se tornou dissidente e derivou para a ALN e para a luta armada. Menos de dois anos depois, já no exílio, retornaria ao PCB. "Eu fui influenciado pela idéia da revolução, como milhares de jovens do meu tempo", explica. Quando voltou ao Brasil, depois de passar anos exilado na França, engajou-se, como a imensa maioria dos militantes do PCB, no MDB e na luta democrática.

Ele diz que os desencontros da luta armada serviram para ensinar-lhe lições. "A esquerda que se armou aprendeu com o tempo", reconhece. Mas o aprendizado maior, ensinado pelas perseguições da ditadura, que apelava para o arbítrio e ignorava a importância da Justiça e da imprensa livre, foi o que ele chama de liberdades formais, que à época eram solenemente ironizadas pelas "vanguardas revolucionárias". Aloysio diz: "Passamos a dar valor a liberdades formais, como o habeas corpus. Em muitos casos, elas, que nós tanto esnobamos, foram a diferença entre a vida e a morte."

Jean Marc von der Weid: Passeata reclamava agenda democrática

"Foi uma surpresa. Não sabíamos o que fazer com aquele mar de gente. Não entendemos que aquela multidão exigia uma agenda democrática e não uma receita revolucionária", observa o ex-líder estudantil Jean Marc von der Weid, sobre a Passeata dos 100 mil, que aconteceu no Rio, no dia 26 de junho de 1968, e assustou o regime militar. "Ali, era hora de progresso democrático, como o que começamos a alcançar dez anos depois", diz. "Naquele momento, acenar com democracia teria tido grande impacto."

Jean Marc, economista, seria eleito presidente da UNE em 1969, batendo José Dirceu, então presidente da União Estadual de Estudantes de São Paulo. Quarenta anos depois, ele afirma que a revolução pretendida pela vanguarda da esquerda não se refletia na realidade: "O que fazíamos não era uma revolução". Para ele, o legado de 1968 foi a afirmação da democracia e a mudança dos comportamentos.

Ele conta que as lideranças estudantis, apesar de radicais, tentavam não irritar os militares. "Nas passeatas, fazíamos um esforço enorme para controlar as provocações." Nem sempre funcionava, porque sobravam dois tipos incontroláveis, diz: os "porra-locas" e os infiltrados pela repressão. No enterro de Edson Luís, por exemplo, um provocador gritou: "Vamos atacar o Palácio Guanabara!" (sede do governo da então Guanabara). "Foi difícil segurar", lembra.

Armênio Guedes: Esquerda tinha de reagrupar forças

A partir de 1964, quando o golpe esfarinhou as facções de esquerda, a luta deveria se centrar no reagrupamento de forças, a ser conquistado com a paciência de uma organização lenta, afirma, com a experiência dos 90 anos, Armênio Guedes, histórico militante do Partido Comunista Brasileiro. O único grupamento de esquerda que atravessou todo o período ditatorial rechaçando a luta armada, o PCB se engajou em sua própria receita, diz.

"Havia muita influência radical em 1968. Não tínhamos força para impor nada aos militares. Nós tínhamos de reagrupar forças, não atacar um adversário que era mais forte e mais organizado que nós", observa. Cabia, naqueles momentos turvos, a "resistência possível", descreve. Ele não tem dúvida em afirmar que a luta armada acabou funcionando, nos anos seguintes, como combustível para alimentar a linha-dura militar.

Já o PCB, lembra, ajudou a organizar o MDB, para combater o regime militar pela via democrática. Em 1970, na primeira eleição com o AI-5 em vigor, o brasileiro negou adesão à luta - os votos brancos e nulos somaram 30,3% (em 2006, foram 10,5%). Mas, com o correr dos anos, confiou em que o voto era a sua arma para derrubar a ditadura. O ataque do regime ao PCB deu-se em 1975, quando os militares perceberam que a estratégia de lenta acumulação de forças pela via democrática começara a dar certo em 1974, quando o MDB elegeu senadores em 16 das 22 disputas estaduais.

Ato Inconstitucional


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Fausto Martin De Sanctis não era nascido quando a Constituição de 1946 começou a perder a validade e o Brasil iniciava, em 1964, um período de autoritarismo cujo fim só seria consolidado 24 anos depois com a promulgação da Carta de 1988.

Tinha três anos quando as prerrogativas constitucionais foram suspensas por completo, no dia 13 de dezembro de 1968, e substituídas pela vontade dos donos do poder mediante da edição do Ato Institucional nº 5.

Era um adolescente de 13 anos quando, em 1978, o regime se viu compelido a revogar seu ato mais arbitrário, data que se convencionou marcar como o fim da ditadura e o início da distensão.

A democracia só voltaria quase inteira em janeiro de 1985, com a eleição ainda indireta de um presidente civil, morto antes da posse, substituído pelo vice, aliado do antigo regime, um exemplar fiador da transição.

Aos cidadãos brasileiros só seriam devolvidos na plenitude seus direitos e garantias em 1988, com a conclusão da Assembléia Nacional Constituinte e o arcabouço legal sob o qual Fausto Martin De Sanctis iniciaria três anos depois, aos 27 de idade, a sua carreira de juiz.

Trajetória impecável, implacável, referida no mais escorreito senso de Justiça. Especializado em crimes de colarinho-branco, condenou gente importante, traficantes, doleiros, empresários, banqueiros, enquadrou aos costumes entre todos os mais notórios.

Tudo dentro dos conformes até o momento em que, acusado de extrapolar os limites da lei, deu expressão ao sentido de seu coração justiceiro e resolveu negar a supremacia dos ditames da Constituição, para ele apenas um conjunto de idéias que não podem restringir as ações necessárias à transformação do Brasil.

Disse o juiz em sua justificativa: "A Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso, contém um resumo das nossas idéias. Não é possível inverter e transformar o povo em modelo e a Constituição em representado. A Constituição tem o seu valor naquele documento, que não passa de um documento; nós somos os valores e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição."

Fausto Martin De Sanctis foi muito criticado por externar um pensamento atinente ao senso comum, expressão pronta e acabada de um sentido de justiça voluntarioso, concernente às ruas, mas incongruente com o dever dos tribunais: a guarda absoluta do respeito às leis, não obstante suas limitações e imperfeições.

O juiz De Sanctis certamente conhece muito bem o texto do ato mais inconstitucional da história recente do Brasil, salvo-conduto à violência do Estado contra os cidadãos que, ao juízo dos parâmetros da ditadura, eram inimigos do Brasil.

A ausência de vivência daquela época talvez tenha ensejado no juiz e em tantos outros brasileiros de sua geração o sentimento de que o sentido do correto é superior aos entraves da lei. Tudo contra o mal se explica e justifica.

A distância de 40 anos obscurece a visão de que Artur da Costa e Silva e 16 ministros de Estado tinham plena convicção de que defendiam a preservação do modelo institucional mais conveniente ao Brasil.

Ao juiz e a todos os brasileiros que consideram a Constituição insuficiente para o cumprimento da missão indispensável de pôr o País nos eixos, seria recomendável a leitura daqueles 12 tenebrosos artigos.

Não porque em qualquer hipótese queiram se associar às ordens ali escritas, mas para que possam perceber o germe do abuso subjacente a um senso de justiça deturpado.

Ali, a alegação apresentada era a do imperativo de se preservar "a autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, desse modo, os meios indispensáveis à obra da reconstrução econômica, financeira, moral e política do Brasil".

Aqui, 40 anos passados, quando o juiz De Sanctis serve apenas como símbolo de uma boa intenção apartada da referência histórica e da força da isonomia dos princípios, o que se tem no Brasil é o risco da opção pelo caminho mais curto e aparentemente mais justo.

Não se deve comparar os propósitos, dirão os que ainda não compreenderam que não há cotejos acusatórios, mas um convite à reflexão. De fato, mas vamos reparar: no AI-5, que deu ao regime o poder de decidir sobre a vida e a morte dos brasileiros, nada autoriza a violência, a tortura.

Ela aparece como conseqüência. Tudo começa como uma proposição de respeito à lei, mas acaba em abuso porque os meios implicam indiferença às normas vigentes, "insuficientes" e, portanto, passíveis de atropelo.

Vale para o bem e para o mal, dependendo do ponto de vista do que seja bom ou mau. Esses 40 anos de AI-5 nos ensinam uma comezinha lição: antes uma Constituição imperfeita que a negação da supremacia do valor constitucional.

O pós-Lula começou, com ele no Planalto

Elio Gaspari
DEU EM O GLOBO


Nosso Guia perdeu seu melhor papel e está preso à bola de ferro dos juros que a ditadura do Copom lhe impõe

O GOVERNO Lula começou a terminar no dia 26 de outubro, no meio da crise econômica mundial, quando o PT perdeu a eleição em São Paulo e José Serra, um dos candidatos da oposição, elegeu Gilberto Kassab.

Naquela noite desmancharam-se o Brasil do pré-sal, a base triunfalista do projeto eleitoral do poste Dilma Rousseff e a funcionalidade do discurso da "marolinha".

Nosso Guia está diante de uma adversidade que lhe nega o papel que melhor desempenha. Não pode mais culpar os outros ("Bush, resolve tua crise") nem propor idéias exóticas (uma reunião de todos os presidentes dos Banco Centrais, inclusive a doutora Siosi Mafi, do reino de Tonga).

Constrangido, Lula carrega a bola de ferro da taxa de juros insana imposta por um ente extra-constitucional chamado Copom.

Ele, que não veste smokings, vê-se metido na casaca de maestro de uma ekipekonômica cuja sabedoria universal quebrou o mundo. Uma enrascada: não pode ser o que gosta de parecer e é obrigado a continuar parecendo-se com o que não gosta de ser.

Em abril passado Lula chegou a pensar (e a agir) para mudar o rumo da política econômica do seu governo. A conquista do "investment grade" pelo Brasil anestesiou-lhe a audácia e, daí em diante, passou a dizer que "o Brasil vive um momento mágico".

A idéia segundo a qual um presidente pode rolar a crise econômica injetando otimismo no mercado demanda uma pré-condição: o discurso não pode agredir a realidade. Os juros altos agravarão os efeitos da crise internacional sobre o Brasil. Quando uma economia paga 13,75% ao ano e perde US$ 7,1 bilhões num só mês, aquilo que poderia ter sido um remédio virou veneno.

Os dois anos de governo que restam serão difíceis e a maneira como Nosso Guia e a nação petista lidarão com a adversidade haverá de marcar a história da sua gestão. Num quadro de dificuldades econômicas e fortalecimento de candidaturas oposicionistas, não se pode prever qual será o grau de ferocidade com que os companheiros irão à campanha, muito menos o nível de desembaraço que oferecerão aos aloprados com suas sacolas de lona. Ressalve-se que se percebe no tucanato um certo encanto pelo adestramento de mastins, bem como uma habilidosa manipulação de aloprados com malas Vuitton velhas.

Pode parecer um exagero a afirmação de que o governo de Lula já começou a terminar, mas o senador Garibaldi Alves (PMDB) e o deputado Arlindo Chinaglia (PT) deram um sinal premonitório: ambos gazetearam uma cerimônia organizada por Lula no Planalto. Isso aconteceu no dia 28 de novembro, uma sexta-feira. Os dois tinham mais o que fazer em seus Estados. Como se diz nos palácios, em fim de governo só quem bate à porta é o vento.

Bota tsunami nisso!


Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - A oposição tem como líquido e certo que José Serra será presidente da República, crente que a crise econômica irá explodir empresas e empregos e, com eles, os 70% de popularidade de Lula e o palanque de Dilma Rousseff.

Pode ser? Tudo pode, mas há três fatores para contrariar a certeza.

O primeiro é que, aqui e alhures, considera-se que nenhum país escapa da crise, mas o Brasil tem indicadores macroeconômicos sólidos, bom colchão em dólares (ainda...) e mercado interno robusto.

O segundo é que a popularidade de Lula, faça chuva, faça sol, mensalão ou cuecão, fale ele o palavrão que falar, tem sido uma rocha.

E o terceiro é que o mesmo Datafolha que apurou os 70% de Lula completou a informação: 78% dos brasileiros estão otimistas e achando que a vida vai melhorar em 2009.

Mais: 58% acreditam que serão pouco afetados, e 10%, nada afetados. Crise? Que crise?Os brasileiros, portanto, ainda acreditam em Papai Noel e que a crise é só uma marolinha, enquanto o tsunami devora 1,2 milhão de vagas em três meses e 533 mil num único mês nos EUA. E está vindo.

Isso demonstra má informação e confiança quase mística em Lula.Com motivo. Nos anos de bonança externa, durante seu governo, a renda e o emprego aumentaram, a classe C virou metade da população, o PAC alimentou votos para cima e o Bolsa Família, para baixo.

Lula, portanto, tem que reduzir ao mínimo o efeito da crise no eleitor de carne e osso (baixando juros, por exemplo?) e fazer como no mensalão, no dossiê, na crise aérea, na guerra da Abin e da PF: fingir que não é com ele. O que der certo contra a crise, o mérito é dele; o que der errado, a culpa é do Bush, do mercado, do liberalismo, dos astros.

Para eleger Dilma, Lula tem que calibrar o equilíbrio entre o tamanho da crise e sua popularidade.

Um tsunami, para afetar seu projeto, tem que ser de bom tamanho.

Senão Lula fura 2009 e surge em 2010 na crista da onda.

União dos opostos


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Não há partido com melhor sensibilidade para sentir para que lado os ventos estão soprando do que o PMDB, e os movimentos na aliança governamental mostram que a biruta do partido já está mudando de direção, não tão depressa que faça os diversos grupos que estão dentro do governo perderem os últimos suspiros de poder, nem tão devagar que não permita um realinhamento para a sucessão de 2010 em boas condições políticas. A disputa pela presidência do Senado é um bom indicativo disso. Tudo parece conspirar para que se repita com o PT, e não como farsa, a crise política que quebrou a união do PSDB e do então PFL e ajudou a derrota do PSDB na eleição de 2002.

As sucessões das presidências da Câmara e do Senado já mostram que, mais uma vez, poderão fazer vítimas na aliança governamental. A sucessão da Câmara, que opôs o então PFL ao PSDB, foi o início do fim da aliança política que em 2002 deveria ter apoiado José Serra à sucessão de Fernando Henrique, e acabou com as principais lideranças do PFL nos braços de Lula.

O deputado Inocêncio Oliveira, que era o candidato do PFL para assumir a Câmara num rodízio previamente combinado, foi surpreendido por uma ação de bastidores do tucano Aécio Neves, desestabilizando a aliança. Quando o então presidente Fernando Henrique soube da articulação, ela já estava consumada.

Desta vez, por acordo, o PMDB, que tem o direito de presidir as duas Casas por ter as maiores bancadas, está exigindo o rodízio na Câmara, que o PT dirige por concessão do PMDB.

Mas, para que o rodízio entre os dois principais partidos de apoio ao governo permaneça valendo, havia a presunção de que o PMDB deixaria o PT assumir a presidência do Senado.

O veto de Renan Calheiros ao candidato natural do PT, o senador Tião Viana, está apenas dando início ao processo de disputa intensa que, ao que tudo indica, o PMDB revigorado nas urnas municipais vai desencadear contra o PT.

Pode ser até que a decisão do PMDB de lançar candidatura própria não se viabilize por falta de nomes de consenso dentro do próprio partido, mas apenas a manobra que está acontecendo já demonstra a impossibilidade de manter essa união PT-PMDB até a eleição de 2010 sem um racha tradicional.

O presidente do PMDB, Michel Temer, de amplo acesso nas hostes oposicionistas, já tem garantido o apoio do PT para a presidência da Câmara, mas se o PMDB do Senado não aceitar o rodízio, também a disputa na Câmara ficará sem parâmetros, dando margem a que um novo fenômeno Severino Cavalcanti surja, com o apoio do baixo clero ao candidato autônomo Ciro Nogueira, do PP.

No Senado, para se eleger candidato do governo, o petista Tião Vianna depende mais dos acordos que vem fechando com o PSDB do que do apoio do PMDB, que busca em José Sarney uma alternativa partidária ao desejo do Palácio do Planalto.

Embora as coligações das últimas eleições municipais sugiram um forte alinhamento do PMDB com o PT, alianças entre PSDB e PMDB não são armações políticas banais. Muito embora o PT tenha participado de mais de 40% das vitórias de candidatos do PMDB, o PSDB esteve presente em cerca de 32% delas.

A freqüência de alianças entre os três maiores partidos teve a preponderância de alianças entre o PMDB e o PSDB. Na maioria dos estados do Norte-Nordeste, no entanto, o PMDB está muito mais fortemente aliado ao PT, por conveniências regionais que já estão se desencontrando, como é o caso da Bahia, onde o líder peemedebista Geddel Vieira Lima, embora ministro da Integração Nacional, mantém um desentendimento cordial com o governador petista Jaques Wagner, a quem derrotou na eleição para a prefeitura de Salvador.

Por sua vez, os três partidos de oposição, PSDB, DEM e PPS, que acabam de oficializar uma aliança política para a eleição de 2010, saíram das eleições municipais como a maior força política, com 1.416 prefeituras.

O presidente Lula teve recentemente o exemplo concreto de como sua base parlamentar tão grande quanto heterogênea não funciona quando há indefinição quanto ao futuro político.

Mesmo batendo seu próprio recorde de popularidade, atingindo 70% na última pesquisa do Datafolha, o presidente Lula já não tem a capacidade de ditar o comportamento de seus aliados, como na tentativa de aprovar uma reforma tributária que não agrada a governadores fortes politicamente como o de São Paulo, José Serra, que posa com Lula e defende a reforma tributária, mas mexe seus pauzinhos, inclusive no próprio PT, para inviabilizar sua aprovação.

Os próximos meses serão cruciais para os planos futuros do governo. Agora que já se sabe pelo próprio médico Lula que o paciente Brasil "sifu", é só esperar pelos sinais da crise que chegarão mais explicitamente no primeiro trimestre do próximo ano para vermos a quantas andará o projeto sucessório oficial.

Lula, que também tem olfato de caçador, já sentiu a mudança dos ventos, e trata de se aproximar de José Serra, provável candidato do PSDB e por enquanto líder das pesquisas de opinião, para eventualmente fazer uma transição tão cordial quanto a sua com Fernando Henrique, caso se caracterize inviável uma candidatura oficial.

Serra também trata Lula a pires de leite, tendo até mesmo discordado publicamente de Fernando Henrique para defendê-lo de seus ataques, na certeza de que enquanto a crise econômica não roer sua popularidade - se é que vai mesmo roer -, o presidente será um personagem importante na sucessão presidencial, e não tê-lo como inimigo pode ser fundamental.