domingo, 30 de agosto de 2020

Luiz Carlos Azedo - A derradeira estação

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“A corrupção endêmica no Rio de Janeiro tem uma dimensão cultural que precisa ser levada em conta, por causa da glamurização da ética da malandragem”

Escrevo a coluna com o som na caixa. Chico Buarque canta Estação Derradeira, na qual glamuriza com afeto e poesia as mazelas do Rio de Janeiro: “Rio de ladeiras/ Civilização encruzilhada/ Cada ribanceira é uma nação”. A imagem de São Sebastião, o santo padroeiro da cidade, é invocada para sintetizar o sofrimento e a esperança, como nas paliçadas ao pé do Morro Cara de Cão, na Urca, na qual Estácio de Sá e os paulistas, com apoio do cacique Araribóia, em 1º de março de 1565, fundaram a cidade para expulsar os calvinistas franceses e seus aliados tamoios. Sobe o som: “São Sebastião crivado/ Nublai minha visão/ Na noite da grande/ Fogueira desvairada/ Quero ver a Mangueira/ Derradeira estação.”

A música não me saía da cabeça desde a notícia do afastamento do governador Wilson Witzel e a prisão de seus aliados por corrupção, entre eles o Pastor Everaldo, presidente do PSC. Não vou repetir o que já se sabe: mais um governo atolado no mangue da corrupção. Entretanto, para quem quiser saber como tudo isso começou, recomendo o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, que retrata a vida do Rio de Janeiro no início do século XIX, com a chegada de D. João VI e sua Corte. A história foi publicada anonimamente, em folhetim, ou seja, em capítulos semanais, no Correio Mercantil, entre junho de 1852 e julho de 1853. O nome do autor foi revelado apenas na terceira edição em livro, póstuma, em 1863.

Personagens populares são os grandes protagonistas do romance, movidos por duas forças de tensão, a ordem e a desordem, características profundas da sociedade colonial da época, que se mantêm até hoje. O major Vidigal e sua comadre, dona Maria, pertencem ao lado da ordem, porém, nada têm de retidão, apenas estão em uma situação social mais estável. A desordem é representada pelo malandro Teotônio, o sacristão da Sé e Vidinha. Entretanto, todos transitam de um pólo para o outro, em momentos de acomodação.

Mas voltemos à crise do Rio de Janeiro, que muitos atribuem à transferência da capital para Brasília e/ou à fusão da antiga Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro. Essa é uma visão nostálgica, embora tenha a ver com a crise estrutural do estado. De fato, a transferência da capital esvaziou política e economicamente a antiga Guanabara. Entretanto, a fusão dos dois estados foi feita exatamente para compensar essas perdas, pois o projeto do presidente Ernesto Geisel, no regime militar, era fazer do Rio de Janeiro a capital do setor produtivo estatal, que rivalizaria com São Paulo, pois concentrava as sedes da maioria das empresas estatais. O colapso do modelo de capitalismo de Estado dos militares, porém, pôs o Rio a perder. Era um erro de conceito, abatido pela crise do petróleo e pela falta de capacidade de financiamento do Estado brasileiro.

Merval Pereira - O julgamento

- O Globo

Ao ler que Cristiano Zanin, o advogado do ex-presidente Lula, está cobrando do Supremo Tribunal Federal (STF) uma decisão “o mais breve possível” sobre o habeas-corpus que pede a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro nos julgamentos que condenaram Lula, sendo notório que a Segunda Turma está desfalcada do ministro Celso de Mello por questões de saúde, fiquei com a sensação de que o advogado está querendo aproveitar-se da circunstância para conseguir a anulação das condenações.

É sabido que dois ministros da Segunda Turma, Edson Fachin e Carmem Lucia, já votaram a favor de Moro, restando agora apenas mais dois votos, os de Gilmar Mendes e Lewandowski, que já deram indicações do que pensam ao anular um julgamento de anos atrás no processo do Banestado, considerando Moro parcial.

O frequente empate na Segunda Turma tem favorecido os réus, como manda a jurisprudência, e Zanin está disposto a aproveitar essa brecha para, enfim, conseguir anular as condenações de Lula, o que o tornaria novamente ficha-limpa, permitindo que se candidate à presidência em 2022.

Lembrei-me, então, de uma palestra que o escritor Deonísio da Silva fez num ciclo sobre Guimarães Rosa da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 2018, sob o título “O julgamento de Zé Bebelo e a Lava-Jato”, sobre o romance “Grande Sertão, Veredas”. Deonísio Silva compara Lula a Zé Bebelo e Moro a Joca Ramiro:

Bernardo Mello Franco - Witzel, o Breve

- O Globo

Ao assumir o governo do Rio, Wilson Witzel anunciou que era “chegada a hora de libertar o estado da irresponsabilidade e da corrupção”. Um ano e oito meses depois, chegou a hora de o estado se libertar dele. O ex-juiz foi afastado do cargo, acusado de comandar uma organização criminosa no Palácio Guanabara.

A decisão do ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, situou Witzel no topo de uma quadrilha que embolsava verbas da saúde. Segundo o Ministério Público, “o grupo criminoso agiu e continua agindo, desviando e lavando recursos em plena pandemia”. O ex-secretário Edmar Santos, preso em julho, delatou o chefe e os comparsas.

Os investigadores afirmam que a quadrilha fraudou compras de respiradores e contratos com organizações sociais. Os resultados foram visíveis: o governo prometeu construir sete hospitais de campanha, mas só inaugurou dois. O Rio já perdeu 16 mil vidas para o coronavírus.

Eleito com discurso moralista, o ex-juiz foi acusado de replicar o esquema que levou Sérgio Cabral para a cadeia. O procurador Eduardo El Hage, que investigou os dois governadores, disse ter se sentido num “túnel do tempo”. O enredo se repetiu em detalhes, incluindo a lavagem de dinheiro no escritório de advocacia da primeira-dama.

Vera Magalhães - Corrida da toga

- O Estado de S.Paulo

Vale tudo em nome das cadeiras que vão vagar no Supremo Tribunal Federal

Com o protagonismo ainda maior adquirido pelo Supremo Tribunal Federal em tempos de revisão da Lava Jato e de freios nos arreganhos autoritários de Jair Bolsonaro, foi desencadeada uma bizarra corrida pelas duas cadeiras de ministros que vão vagar no intervalo de um ano. Vale tudo para demonstrar lealdade ao presidente e ser digno da canetada da sua Bic.

Pelo menos três atores têm sido pródigos em mostrar serviço na expectativa de serem premiados com a cobiçada toga. A briga pelos lugares dos “Mellos”, Celso e Marco Aurélio, tem produzido decisões em que o direito é torcido e retorcido, com graves consequências políticas e institucionais.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, nomeado por Bolsonaro ao arrepio da lista tríplice e à revelia dos seus pares, é um deles. A última da PGR sob seu comando foi produzida pelo seu vice, Humberto Jacques de Medeiros: o parecer favorável ao foro privilegiado retroativo para Flávio Bolsonaro no caso Fabrício Queiroz.

Medeiros também tem expectativas com a “corrida da toga”: se for Aras o agraciado agora em novembro, são grandes as chances de Bolsonaro designá-lo para o seu lugar.

O fundamento para aliviar a barra de Flávio contrasta com o que o próprio Medeiros usou em outra recente decisão polêmica: a de que requisitar documentos da Lava Jato de Curitiba. Agora ele argumentou que Flávio pode ter seu caso levado para o TJ do Rio porque a decisão do STF em contrário não era vinculante. Na outra, pegou um precedente aleatório para justificar a requisição de dados, sem evocar a necessidade de “aderência”. Um direito para cada ocasião.

Eliane Cantanhêde - Legalidade sempre!

- O Estado de S.Paulo

Afastamento de Witzel por decisão monocrática e sem ouvi-lo acende luz amarela entre governadores

O Ministério Público acertou ao investigar e descobrir maracutaias justamente na área de saúde no Rio de Janeiro, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) errou ao decidir monocraticamente o afastamento do governador Wilson Witzel por 180 dias, sem nem sequer ouvir o que ele tem a dizer sobre as acusações, feitas a partir de uma delação premiada. Combater a corrupção, sim, mas abrir um precedente perigoso contra governadores, não. Por isso, o julgamento de terça-feira no plenário do STJ é tão importante.

Desde sexta-feira, há intensa troca de telefonemas e mensagens entre governadores, para analisar a situação e a operação que pegou Witzel de jeito. Ninguém defende Witzel, até porque eles não viram o processo e não conhecem as provas, mas todos defendem ferrenhamente a legalidade. Que o MP investigue e faça o que tem de fazer e que a Justiça decida, julgue, puna. Mas um único ministro afastar um governador eleito? Sem dar a ele acesso às acusações? Sem ouvi-lo?

Se hoje é Witzel, amanhã pode ser qualquer um. Há motivos para a preocupação. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, a ministra Damares Alves disse, em bom e alto som, que estava tudo pronto para pedir a prisão de governadores e prefeitos. A deputada bolsonarista Carla Zambelli, do PSL, sabia de véspera das primeiras buscas e apreensões contra Witzel. O senador Flávio Bolsonaro avisou com antecedência que o vice-governador assumiria. Witzel lembrou que a subprocuradora-geral Lindôra Araújo é bolsonarista e amiga de Flávio. Amigo do meu inimigo é meu inimigo?

Sergio Fausto* - A voz mansa de Djalma Marinho

- O Estado de S.Paulo

Suspeito que ele ficaria vexado pela proximidade política do neto com um político como Bolsonaro

O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, é um político competente e estrela em ascensão no atual governo. Com dois mandatos de vereador em Natal e outros dois de deputado federal pelo Rio Grande do Norte, além de cargos importantes no Executivo estadual e federal, não lhe faltam experiência nem DNA: é neto de Djalma Marinho, político potiguar que se destacou na Câmara dos Deputados por mais de três décadas na segunda metade do século 20. O avô de Rogério Marinho não conseguiu se eleger governador de seu Estado, como agora pretende o neto, mas sua biografia revela um tipo de político cada vez mais raro no Brasil: um liberal-conservador culto e educado, que se manteve coerente com suas principais convicções ao longo de 40 anos de vida pública.

Filiado a um único partido entre 1945 e 1964, a UDN, aderiu à Arena quando da imposição do bipartidarismo. Embora membro do partido situacionista, não hesitou em levantar a sua voz mansa contra as piores arbitrariedades do regime autoritário.

Foi assim na conjuntura dramática que levaria à decretação do AI-5, em dezembro de 1968. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, não se dobrou à pressão dos militares que pretendiam processar Márcio Moreira Alves por discurso supostamente afrontoso à honra das Forças Armadas. Com críticas ao governo pela repressão a manifestações estudantis, o parlamentar fluminense conclamara os pais a não autorizarem seus filhos a desfilar no 7 de Setembro e às moças, a não dançarem com os cadetes no baile da Independência.

Em audiência com o então presidente Costa e Silva, Djalma Marinho anunciou que a comissão negaria a licença solicitada pelo Ministério da Justiça para instaurar processo contra o deputado, que gozava de imunidade parlamentar para expressar livremente a sua opinião. Buscou encontrar alternativas para o impasse. Diante da intransigência do general-presidente, fez discurso corajoso da tribuna da Câmara em que se disse um “vassalo da ordem democrática”, recusando-se a cumprir “exigências absurdas”.

Elio Gaspari - A caótica fritura de Paulo Guedes

- Folha de S. Paulo / O Globo

Como superministro, ele foi uma invenção marqueteira

O “Posto Ipiranga” entrou num humilhante processo de fritura. Felizmente, essa figura nunca existiu. Se existisse, o perigo seria enorme, pois é impossível fritar um posto de gasolina. Pode-se explodi-lo, mas o quarteirão vai junto. Paulo Guedes como superministro foi uma invenção marqueteira, que jamais ficou em pé. O doutor acumulou poderes sem ter um projeto viável, acreditou na própria lenda, achou que estava chegando ao paraíso, confiou em velhos truques e em menos de dois anos deu-se conta de que é o presidente quem manda.

Quando Bolsonaro mandou ao lixo seu projeto para o Renda Brasil, deu-lhe uma lição: “Não posso tirar dos pobres para dar para paupérrimos”. Na mosca, pois era isso que Guedes propunha, tirar recursos do abono que beneficia 23 milhões de pessoas com renda inferior a dois salários mínimos, para quem não tem nem isso.

Essa foi a boa notícia. A má é que Paulo Guedes vem sendo perseguido por outro fantasma marqueteiro, chamado “Pró-Brasil”. Ele apareceu intitulando-se um “Plano Marshall” para o país. Era coisa de quem não sabia o que foi o plano de recuperação econômica da Europa depois da Segunda Guerra Mundial.

Piorando, é também coisa de quem não sabe o que quer, além do elementar avanço sobre a bolsa da Viúva. Nesse bloco brilha o ministro Rogério Marinho. Quando ele estava na ekipekonômica de Guedes, defendeu a taxação compulsória das pessoas que recebem auxílio-desemprego. Não se tratava de tirar do pobre para dar ao paupérrimo, mas de tirar de quem está sem trabalho para reforçar a caixa do governo.

Hélio Schwartsman - A arte de envenenar

- Folha de S. Paulo

Por aqui prefere-se a arma de fogo; na Rússia, o envenenamento

Aqui nas Américas, a gente nem pestaneja. Se você quer eliminar um desafeto, a etiqueta praticamente obriga ao uso de uma arma de fogo, mas outros povos têm outras preferências. Os russos, por exemplo, gostam de venenos. A vítima mais recente, o blogueiro oposicionista Alexei Navalni, que segue internado num hospital de Berlim, foi, ao que tudo indica, submetido a altas doses de um inibidor de colinesterase.

Qual tradição é melhor? Difícil dizer, mas, se você se interessa pelo assunto, uma boa pedida é "The Royal Art of Poison" (a real arte de envenenar), de Eleanor Herman. Durante a maior parte da história da Europa, sempre que um membro de família real ou da elite política morria jovem, a suspeita de envenenamento se impunha. Algumas vezes, a morte era mesmo obra de um rival. Os italianos eram proverbialmente bons nisso. Florença e Veneza tinham fábricas estatais para desenvolver venenos e antídotos, que testavam em prisioneiros.

Janio de Freitas - A Folha no Erramos

- Folha de S. Paulo

Relações entre jornais e leitores são repletas de equívocos, de parte a parte

O jornalismo das últimas décadas, entre nós, vem fechando olhos e ouvidos para o leitor, cada vez mais. Com a consequência automática de tiragens em permanente queda livre e apelo ilusório à soma das versões impressas e digital, para socorrer os slogans. Na própria soma, está uma prova do descaso, que lhe deu o preguiçoso nome de audiência, referente a nada mais do que audição, captação de sons.

Da parte dos leitores, os equívocos vêm, em grande parte, de insatisfações e indignações que se retroalimentam porque, aqui, o jornalismo não se ocupa da imprensa como notícia normal. Um caso exemplar se tornou, na Folha, tabu que assumo a responsabilidade de romper, como outros que este jornal no passado me permitiu desrespeitar.

Trata-se do empréstimo, não sei se apenas episódico, de veículos da Folha à repressão na ditadura. Desde a redemocratização, essa colaboração substantiva e indigna é uma tinta pegajosa e indelével lançada contra a Folha, com justos motivos. Como sentença moral restaurada a cada atitude reprovável por determinados segmentos leitores.

À Folha não falta soberba, mas não vem daí a falta de explicação satisfatória para o erro. A impessoalidade do jornal e o seu silêncio levaram o ônus aos dois controladores da empresa, Octavio Frias e Carlos Caldeira Filho.

O primeiro, incumbindo-se sobretudo da atividade editorial; o outro, voltado mais para setores administrativos. A Caldeira credita-se a criação e comando de um modelar serviço de transporte e entrega de jornais, incomparável na imprensa brasileira da época, pela modernidade e dimensão da frota. Da qual saíram os veículos para o serviço sórdido.

Ricardo Noblat - A inteligente jogada de Bolsonaro de concluir obras dos outros

- Blog do Noblat | Veja

Para chamá-las de suas

Um pouco por toda parte, mas aqui com toda certeza, está para nascer o político que reconheça os méritos e exalte as obras legadas pelos que o antecederam no cargo.

Getúlio Vargas, o estadista, foi o que mais fez pelo país ao seu tempo. Mas como foi também um ditador, e não existe ditador bonzinho, pega mal elogiá-lo.

Juscelino Kubistchek, o rei da simpatia, redescobriu parte do país esquecido e o seu governo coincidiu com o tempo em que o brasileiro sentiu orgulho – da música ao futebol, Brasília incluída.

Mas Jânio Quadros, que sucedeu a Juscelino, não esperou acabar o dia de sua posse para criticá-lo duramente. Foi um fenômeno eleitoral que vivia de porre e não aguentou governar seis meses.

À falta de obras para chamar de suas porque lhe falta um projeto para o país, Bolsonaro pretende inaugurar ainda este ano 33 obras, a maioria começada em governos passados.

Das 33, 25 planejadas por Lula e Dilma, duas por Temer e seis da atual administração, mas que ainda mal se arrastam. Claro, para que isso seja possível, precisa combinar com o dinheiro escasso.

Dirão os adversários de Bolsonaro, e com razão: ele vai se apropriar de coisas dos outros, e sequer dirá que procede assim. De fato, essa é a ideia dele, inteligente por sinal. Mas, e daí?

Se não concluísse as obras só porque elas tiveram início em governos anteriores, dele se diria que é um político mesquinho, irresponsável, que preferiu pará-las a tocá-las em frente.

O país só tem a ganhar com a continuidade de obras desde que vitais para seu desenvolvimento. Não importa o que esconda a verdadeira intenção de Bolsonaro com isso.

Dorrit Harazim - Trump coroado

- O Globo

O país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca

Leonard Cohen fez bem em morrer na véspera da eleição de Donald Trump em 2016. Deixou um vasto tesouro feito de palavras e música, entre elas a sublime “Aleluia”, canção-reflexão sobre amor e perda, espiritualidade e empatia. Muito da força desse hino à humanidade está no que ele deixa em aberto para interpretações múltiplas do que é ser, do que é viver. Difícil imaginar que Trump tenha sido fã do compositor canadense. Mais difícil ainda cogitar que Cohen algum dia se resignaria ao triunfo trumpista. Daí a vilania da rasteira post-mortem dada no artista por ocasião do festão de quinta-feira na Casa Branca: “Aleluia” foi entoada duas vezes, sem autorização dos herdeiros, na coroação do presidente-candidato à reeleição em novembro próximo. Nada transcendental, apenas um detalhe da grosseria em tudo o que leva a logomarca Trump.

Na cerimônia de encerramento da Convenção Republicana faltou apenas rebatizar o partido para Trump Party. De resto —da apropriação da Casa Branca como imobiliário do ocupante aos fogos de artifício proclamando “Trump 2020” sobre o Monumento a Washington —, o evento todo foi de adulação personalista. Nos jardins da “casa do povo americano” haviam sido plantadas 1.500 cadeiras para familiares e servidores públicos, não por servirem ao Estado, mas por serem servos de Trump. E, ao final de quatro dias de elegias, coube ao entronizado apresentar a sua versão fantasia de si mesmo. 

Foi um discurso de 70 minutos que arrebatou a plateia. Mesclando fatos e ficção, o presidente proclamou-se predestinado guardião da Constituição e acenou com um futuro de grandeza nacional. Sobretudo, Trump incitou medo, recurso de eficácia comprovada em tantas eleições mundo afora. Richard Nixon disse o essencial em 1968 ao conquistar a Casa Branca: “As pessoas reagem a medo, não a amor. Ninguém aprende essas coisas em aula de catecismo, mas a verdade é essa.”

Affonso Celso Pastore* - EUA, Europa e Brasil

- O Estado de S. Paulo

Há muitas razões para que os brasileiros analisem atentamente o comportamento da economia norte-americana

Há muitas razões para que os brasileiros analisem atentamente o comportamento da economia norte-americana. Ciclos econômicos nos EUA afetam a economia mundial; a guerra comercial contra a China iniciada por Trump interfere com o Brasil devido às relações comerciais que mantemos com ambos; e, acima de tudo, o mercado financeiro centrado em Nova York, interage intensamente com a economia brasileira, afetando direta e indiretamente o seu comportamento. De um modo geral, temos muito a aprender com os EUA, mas não com a sua reação à pandemia e às suas consequências na política monetária. Neste caso, ganharíamos muito mais se prestássemos a devida atenção ao que vem ocorrendo na Europa.

Enquanto o governo dos EUA optou pela negação da pandemia, os vários governos europeus impuseram desde logo um rígido lockdown, que derrubou o contágio e permitiu o início mais rápido de uma cuidadosa reabertura, que favoreceu o bem estar de suas populações.

Como o PIB é uma medida imperfeita de bem-estar, não reflete o ganho devido ao já quase pleno retorno à livre movimentação dos europeus. Porém, acima de tudo, a boa reação europeia no campo sanitário levou a uma utilização bem menos intensa de estímulos monetários. De fato, o BCE vem gerando uma expansão de seu ativo significativamente menor do que a do Fed, e a maior preocupação dos governos europeus é com o “futuro do euro”, para cuja consolidação, na última reunião do Conselho Europeu, foi aprovado um fundo de recuperação de € 750 bilhões, com € 390 bilhões na forma de subvenções e € 360 bilhões em empréstimos. Os europeus reagiram racionalmente à pandemia; foram prudentes na política monetária, e apesar da oposição dos países “frugais” procuraram exorcizar o fantasma de uma nova versão do Brexit, defendendo a moeda única e a cooperação entre os países do bloco.

Míriam Leitão - Escolhas trágicas na economia

- O Globo

O tumulto da sexta-feira com o afastamento do governador Wilson Witzel ajudou a afastar a atenção da área econômica, que vivia o constrangimento de um ultimato dado pelo presidente para ter em mãos o novo Renda Brasil. Foi mais uma semana ruim para o ministro Paulo Guedes. No mercado, a dúvida sobre a sua permanência; no Ministério, a corrida atrás do dinheiro para cumprir outra ordem do presidente: ter recursos para as obras dos ministros Tarcísio Freitas e Rogério Marinho. Por isso a verba do combate ao desmatamento e aos incêndios quase foi usada para outros fins.

A pasta do Meio Ambiente, como se sabe, é ocupada por um inimigo do meio ambiente. É do seu feitio sabotar as ações dos órgãos de fiscalização, ou não dar os meios para que as missões se realizem. O Ministério da Economia conseguiu fazer Ricardo Salles parecer um ambientalista. Na sexta-feira, o MMA comunicou que estava suspendendo 100% das ações porque o dinheiro do Ministério fora congelado. Com o susto, o orçamento foi descongelado, e restou ao vice-presidente dizer que Salles havia se precipitado.

Os dias têm sido pesados na área ambiental. Estudos mostram o avanço do desmatamento, e o efeito da queimada na saúde humana. O movimento das empresas e bancos contra essa deterioração tem crescido. No exterior, as notícias confirmam os temores dos investidores. O vice-presidente Hamilton Mourão vinha ouvindo com atenção os empresários, executivos, banqueiros e administradores de fundos. Mas mostrou na quinta-feira que, se ouviu, não entendeu. Segundo ele, os 24 mil focos de incêndio em um mês na Amazônia são “agulha no palheiro”. A notícia de que o Brasil tiraria a verba do combate ao desmatamento e incêndio seria arrasadora.

Vinicius Torres Freire – Brasil, o buracão do futuro

- Folha de S. Paulo

Brasil vai cair no buracão, pois verba de investimento míngua a cada ano; dinheiro para obra nova praticamente não há

O vice-presidente Hamilton Mourão disse, em outras palavras, que o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) mente ou é incapaz de ler uma planilha do governo. É mais um sintoma da baderna do governo e um exemplo da mixórdia orçamentária, que vão levando o país para o buraco.

Na sexta-feira (28), Salles anunciara o cancelamento dos trabalhos restantes de combate à destruição da Amazônia. Teria sido informado pelo Ministério da Economia de que os ministros-generais do Planalto haviam decidido que ele perdera a verba para apagar incêndios. Mourão disse que não era nada disso, que o ministro criara caso à toa e que mandara Salles pensar no que havia feito, não se sabe se ajoelhando no milho.

Essa turumbamba se deve a uma disputa por R$ 60,7 milhões, a verba que, sabe-se lá, teria sido tirada do Meio Ambiente. Esse dinheiro equivale a 0,004% do Orçamento de R$ 1,48 trilhão do governo federal (excluídos os gastos extraordinários com a pandemia).

Salles foi uma brasinha soprada pelo esquecido Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo. Um dia expoente do Partido Novo, o ministro espalhou-se como um incêndio no Ambiente de Jair Bolsonaro. Generais do Planalto e Mourão, que tutela Salles desde janeiro, querem apagar o fogo dele.

Arminio Fraga* - Fim do teto: não se, mas como

- Folha de S. Paulo

Limite sinalizou entendimento contra o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990

A emenda constitucional nº 95 de dezembro de 2016 instituiu o teto de gastos públicos, que congelou em termos reais os gastos do governo federal. O teto sinalizou um bem-vindo entendimento quanto à necessidade de se lidar com o crescimento ininterrupto dos gastos a partir dos anos 1990.

Foi parte de uma guinada na gestão macroeconômica do país em resposta ao colapso fiscal que ocorreu a partir de 2014. A partir da guinada, as taxas de juros entraram em trajetória de queda, chegando aos inéditos níveis que prevalecem hoje.

Parecia claro desde o primeiro momento que a manutenção do teto por mais do que alguns anos seria difícil sem que se encarasse de frente a absoluta rigidez dos gastos obrigatórios. Um exemplo pode ajudar aqui. Sob as regras da EC 95, se o PIB crescesse a 2,5% por dez anos, o gasto federal cairia de 19% para 15% do PIB. Se todos os gastos públicos ficassem congelados, em termos reais, teríamos uma queda de 35% para 27%. Não faz muito sentido.

Havia esperança de que reformas mais profundas ocorreriam, o que permitiria em algum momento uma flexibilização do teto, sem grandes estresses. Mas não foi o caso. Algo se fez, como a reforma da Previdência aprovada no ano passado, mas não foi o suficiente: o espaço para cortes nos gastos correntes discricionários praticamente se esgotou e o investimento público está próximo de zero, o que é política e economicamente insustentável.

Não surpreende, portanto, que um exame mais detalhado dos fatos sugira que não se exagere o impacto causal do teto sobre as taxas de juros: a Selic (a taxa de curto prazo fixada pelo BC) está em 2% e a taxa dos títulos do Tesouro de dez anos em torno de 7,5%.

Ambas caíram bastante desde 2016. Parece razoável atribuir parte relevante da queda na Selic à enorme recessão que nos assola há sete anos. As taxas de longo prazo embutidas na curva de juros estão em torno de 9%.

A armadilha da renda baixa – Editorial | O Estado de S. Paulo

Sem os investimentos adequados, governo pode aprisionar toda uma geração na renda básica e deixá-la sem perspectiva de progresso

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Com a pandemia, ficará mais desigual, mais pobre e com menos mobilidade social.

Um estudo da Tendências Consultoria sobre a distribuição de renda nacional mostra projeções devastadoras. Em 2020, 3,8 milhões de famílias (cerca de 15 milhões de brasileiros) devem engrossar as classes D e E. A pressão maior será justamente nas regiões mais pobres: o Norte e o Nordeste.

O auxílio emergencial mitigou o impacto do apagão econômico entre os pobres e miseráveis, mas não impediu a forte deterioração dos rendimentos na classe média. Na classe C, a renda é tipicamente variável, já que apenas parte dos rendimentos costuma vir de um trabalho fixo no regime CLT, enquanto o resto vem de fontes instáveis. Em 2020, a classe média deve perder cerca de 1,8 milhão de famílias.

O grande fator de empobrecimento será o desemprego dos menos escolarizados. A previsão é de queda de 3,5% da população ocupada ante 2019. Só no segundo trimestre, o desemprego cresceu 20,9% e alcançou 12,2 milhões de pessoas. Norte e Nordeste são especialmente vulneráveis, por causa da alta taxa de informalidade. Grande parte dos ocupados trabalha por conta própria ou em empresas de pequeno porte.

Nos últimos anos, a informalidade cresceu por todo o País, atingindo a média de quase 40%. Entre as famílias das classes D e E a informalidade nacional chega a 57,6%. Mas no Nordeste este índice é de 65,1%, enquanto no Norte já bate em 70%. A extrema pobreza também cresceu em todo o País entre 2014 e 2019, mas no Nordeste a piora foi mais intensa.

Cores da violência – Editorial | Folha de S. Paulo

Desigualdade se reflete nos homicídios, concentrados em negros, pobres e jovens

Registrou-se, no ano de 2018, uma mais que bem-vinda queda do vergonhoso número de homicídios no Brasil, repetida com maior vigor no ano passado. O detalhamento dos números, no entanto, revela desigualdades cruéis nessa melhora.

Foram assassinados 58 mil brasileiros em 2018, o que correspondeu a uma taxa de 27,8 por 100 mil habitantes. Do total de mortos, nada menos de 75,7% eram negros (pretos e pardos), segundo o recém-divulgado Atlas da Violência 2020, elaborado pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Uma década antes, em 2008, a participação dos negros no total de vítimas de homicídio se mostrava significativamente menor, 65,5%. Dito de outro modo, a violência fatal aumentou no período para os pretos e pardos, enquanto caía para os demais grupos.

Não se pode afirmar que são sempre brancos a matar negros —inexistem dados a respeito dos homicidas. Mas resta evidente a deprimente vulnerabilidade dos segundos —que há dois anos perfaziam 55,8% da população e 75% dos miseráveis— ao morticínio.

Queda de homicídios não reduz tragédia da violência no país – Editorial | O Globo

No Rio, terror espalhado pela guerra entre facções mostra que problema está longe de ser resolvido

‘Fique em casa.’ A recomendação tantas vezes repetida nestes seis meses de pandemia foi dita nos últimos dias aos cariocas, desta vez motivada por outra epidemia, a da violência. O protocolo se justificava diante do terror que tomou conta de bairros da Zona Sul e regiões centrais do Rio, acossados por uma guerra — mais uma — entre facções pelo controle dos pontos de venda de droga. A retomada do conflito entre quadrilhas, traduzida em mortes, tiros a esmo, sequestro de moradores e terror, revela quão distantes estamos de resolver o problema. A pandemia parecia ter trazido certo alívio aos indicadores, mas o tráfico aproveita o momento para se reorganizar. A decisão do STF que proibiu operações policiais nas comunidades do Rio contribuiu para reduzir a violência policial, mas, ao mesmo tempo, dificulta ações necessárias para reprimir as organizações criminosas.

É flagrante a falha de inteligência que permitiu que as ruas do Rio se transformassem em campos de batalha, expondo inocentes. Para não falar no problema crônico da corrupção policial, que agrava o quadro, na medida em que dificulta o combate às quadrilhas.

A situação do Rio não é diferente do resto do país, onde impera a guerra entre facções. Isso fica patente no Atlas da Violência 2020, divulgado quinta-feira. A redução de 12% nos homicídios em 2018 tinha tudo para ser uma boa notícia, não fossem os outros dados do estudo do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número de mortes por causas indeterminadas, não esclarecidas, aumentou 25,6%. Parte dos homicídios pode, portanto, ter entrado nessa conta.

Estados e municípios precisam ser ágeis para socorrer a cultura – Editorial | O Globo

Lei Aldir Blanc, que prevê ajuda de R$ 3 bilhões para o setor, levou dois meses para ser regulamentada

Na maior parte dos planos de flexibilização, após as quarentenas determinadas por governadores e prefeitos para conter o novo coronavírus, o setor cultural costuma ocupar as últimas fileiras na retomada. Em que pesem os esforços da classe artística para transformar em palco o ambiente virtual, brindando o público com transmissões ao vivo de shows e peças, trabalhadores e empresários da área estão com a corda no pescoço, depois de meses de casas fechadas e faturamento zero. Em muitos lugares, como no Rio, ainda sem nenhuma perspectiva de reabertura.

A bem-vinda Lei Aldir Blanc, que prevê ajuda emergencial de RS 3 bilhões ao setor, foi aprovada por unanimidade no Senado em 4 de junho, mas só foi regulamentada pelo presidente Jair Bolsonaro mais de dois meses depois, em 18 de agosto. A previsão é que o dinheiro seja repassado aos estados em setembro. Ainda deverá tardar a chegar a artistas e centros culturais, já que a celeridade não parece fazer parte do roteiro traçado pelo governo. Depois de cumprir uma série de exigências, prefeituras e estados terão de dois a quatro meses para distribuir a ajuda.

O pouco caso com a cultura é cena recorrente no governo Bolsonaro, que enxerga o setor como um bunker da esquerda, alvo tido como legítimo na guerra ideológica do bolsonarismo. Não à toa, a gestão da cultura tem sido marcada por uma coletânea de equívocos. Em janeiro, o então secretário Roberto Alvim, ao anunciar o Prêmio Nacional das Artes, copiou discurso de Joseph Goebbels, ministro de propaganda da Alemanha nazista, chocando o país. Diante da encenação patética e inaceitável, Alvim foi substituído pela atriz Regina Duarte. Em menos de três meses, ela deu lugar ao ator Mário Frias, o quinto em menos de dois anos.

Música | Paulinho da Viola - Pecado Capital

Poesia | Fernando Pessoa - Uns, com os olhos postos no passado

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.

sábado, 29 de agosto de 2020

Marco Aurélio Nogueira* - Reposicionamento e impasse

- Revista Será? (PE)

O ministério da Economia divulgou em 24 de agosto três programas básicos voltados para a área social: Renda Brasil, Carteira Verde Amarela, Minha Casa Verde Amarela. A convicção é que eles impulsionarão a retomada do crescimento, via monetização da assistência, criação de empregos e financiamento habitacional.

O governo tenta se reposicionar no mercado. Os programas já existem com outras designações e não estão claras as alterações a serem feitas, nem de onde virão os recursos para custear a nova versão. Há o teto de gastos e ainda está para ser equacionada a questão do auxílio emergencial (pago em decorrência da pandemia), que hoje beneficia 64 milhões de pessoas. Não se sabe como se chegará ao Renda Brasil, que terá caráter mais permanente. A equipe econômica fala em extinguir programas sociais e suprimir o abono salarial para obter receita e o presidente diz que não quer “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.

O impasse desgasta, em vez de fortalecer. Aprofundou-se uma rota de colisão que a rigor estava desenhada ainda na campanha de 2018, quando o ultraliberal Paulo Guedes aliou-se a Jair Bolsonaro. A convivência foi mantida enquanto não entrou no radar a disposição eleitoral do presidente, que resolveu antecipar a tentativa de reeleição em 2022. Como observou com precisão o cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, o disparo do radar mostrou que “Guedes quer entregar resultados ao mercado econômico-financeiro e Bolsonaro quer ofertar mercadorias no mercado político-eleitoral”.

Uma pacificação que deixe o barco singrar mansamente até 2022 parece pouco provável, mesmo que os bombeiros entrem em ação e apaguem as labaredas que ardem no relacionamento do presidente com seu ministro. De novo Paulo Fábio: “Se se deseja esse avanço será preciso apelar à inteligência artificial da política. Se o processo correr solto, deixado aos apetites naturais, bolsonarismo político e liberalismo econômico precisarão se separar para viverem suas vidas em liberdade. Cada qual buscando novo par no repertório já testado no campo que lhe é mais estranho”.

Bolsonaro deu um xeque em Paulo Guedes. Suspendeu a criação do Renda Brasil e exigiu que uma nova proposta fosse apresentada a toque de caixa. Chamuscado, o ministro se fingiu de morto e retrucou: “As coisas são assim mesmo: a economia é o cara que faz o papel de mau, e a política é o cara que faz o papel do bom”.

A bagunça fez a tensão crescer no Planalto.

O governo não tem de onde tirar dinheiro, mas quer usar os programas sociais para politizar a relação com a população mais dependente de assistência. De olho nas eleições de 2022, Bolsonaro cobiça o eleitorado do Norte e Nordeste, tido como estratégico. Não pode, por isso, aumentar impostos ao bel-prazer da equipe econômica. Sabe que precisa conter a sangria de votos da classe média, que já é acentuada, ao mesmo tempo em que precisa fidelizar a população mais pobre, o que tem tentado com o auxílio emergencial e os acenos para a repaginação do Bolsa Família. Em ambos os caso, o ultraliberalismo de Guedes é dissonante e não tem serventia.

A trombada do presidente com a equipe econômica deixou mais evidente a ausência de consensos e articulação.

O quadro é agravado pela inconsistência das propostas cozinhadas no Ministério da Economia, que não se apoiam num planejamento estratégico básico e reiteram uma opção fiscalista que colide com a já pesada carga tributária, hoje na casa dos 33% do PIB, além de atritar os planos eleitorais do presidente.

Merval Pereira - O amanhã do Rio

- O Globo

“Como será amanhã? /Responda quem puder/ O que irá me acontecer/ O meu destino será/ Como Deus quiser”. O belíssimo samba-enredo da União da Ilha de 1978, cujo refrão caiu na boca do povo, é de autoria de João Sérgio e do procurador da República Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta Neves, que se assinava simplesmente Didi para enganar a família, que não queria vê-lo envolvido nas escolas de samba.

Pois a letra do magistrado define bem a situação de seu colega de Judiciário, o ex-Juiz e governador afastado do Rio Wilson Witzel, cuja carreira política meteórica deve ter tido um ponto final ontem com o afastamento decretado pelo ministro Benedito Gonçalves do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Mas não define a situação dramática do próprio Estado, que já teve nada menos que seis governadores presos ou investigados. Nesse caso, o futuro pertence aos próprios cidadãos, que têm escolhido mal há anos, levando o Estado à situação de bancarrota moral e financeira.

O Rio de Janeiro vive já há algum tempo situação similar à do Espírito Santo em 2003, com os poderes do Estado dominados por milícias e traficantes. A eleição de Paulo Hartung deu uma virada no Estado, que se recuperou econômica e moralmente.

O afastamento do governador Wilson Witzel é uma repetição impressionante da política do Rio, inclusive da cadeia sucessória: governador afastado, vice-governador e presidente da Assembleia investigados. Nunca a frase de Marx foi tão apropriada.

Repete-se como farsa o que aconteceu com o ex-governador Sérgio Cabral, condenado a 300 anos. É a segunda vez nos últimos meses que a polícia entra no Palácio Laranjeiras para fazer vistoria na casa do governador Witzel, que conseguiu pelo menos licença para morar lá nos próximos seis meses.

Acho que não terá esse tempo todo, pois ontem o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes liberou a Assembléia do Rio para prosseguir o processo de impeachment, que estava suspenso.

Míriam Leitão - Águas do Rio e conflito federal

- O Globo

Até as águas do Rio Jordão sabem o que está se passando no Rio de Janeiro. Há uma guerra entre os que se banharam nas mesmas águas. O que levou Wilson Witzel do traço na intenção de voto ao Palácio Guanabara foi a onda bolsonarista. O mesmo discurso anticorrupção, o uso da religião, e a apologia das armas. Bolsonaro fazia o gesto da arma na mão, Witzel dizia que daria “tiro na cabecinha”. Bolsonaro passou pelo PSC, onde lançou sua pré-candidatura e foi batizado pelo Pastor Everaldo, Witzel foi eleito pelo PSC. Hoje os dois lados se acusam mutuamente. Witzel acha que está sendo perseguido pelo presidente, através do Ministério Público Federal, Bolsonaro acha que seus filhos são perseguidos por Witzel, através do MP estadual e da Polícia Civil.

A política do Rio de Janeiro tem água turva demais. Quatro governadores passaram pela prisão, um permanece entre grades e outro está em prisão domiciliar. A PGR chegou a pedir a preventiva de Wilson Witzel, o ministro do STJ Benedito Gonçalves apenas o afastou. De tarde, o ministro Alexandre de Moraes permitiu a continuidade do processo de impeachment, o que pode afastá-lo definitivamente do cargo. Bolsonaro já disse que “o Rio é o estado mais corrupto do Brasil”, mas foi onde fez a sua carreira, na qual jamais se mobilizou contra a corrupção. Fez sua vida política defendendo bandeiras corporativas das forças de segurança e emitindo sinais de simpatia à milícia. Com essas alavancas e usando o sentimento anticorrupção, foi mais longe do que qualquer outro do estado. Jair Bolsonaro é o primeiro político do Rio a ser eleito presidente da República. Antes dele, apenas Nilo Peçanha, o vice de Afonso Pena, ocupou a presidência, de 1909 a 1910, após a morte do titular.

O Rio vive a sua tragédia de cenas repetidas. “Nós nos sentíamos num túnel do tempo”, disse o procurador federal Eduardo El Hage, sobre o que pensaram os procuradores diante dos indícios do envolvimento do escritório de advocacia da primeira-dama na passagem do dinheiro de propina. O Rio está preso no túnel de um tempo circular que repete sempre as mesmas cenas.

Sérgio Magalhães - A voz do Rio

- O Globo

Peso da cidade pede independência em relação aos poderosos da ocasião

Paes? Crivella? Marta? Messina? Aproximam-se as eleições, um pleito crucial para o Rio de Janeiro ante a situação em que se encontra a cidade. Teremos oportunidade de debater sobre o futuro do Rio?

Tenho acompanhado eleições desde a democratização, e em raras situações temas urbanos estiveram em pauta. Contentamo-nos em destacar prioridades consensuais: saúde, educação e segurança. São questões fundamentais, é claro, comuns a todas as cidades. Mas não esgotam a complexidade da cidade contemporânea.

O Rio, com sua história multicentenária, capital da Colônia, do Reino, do Império e da República, centro político, econômico, social e cultural do país, precisa ser visto como tal, sem simplificações e sem exclusões.

Por isso mesmo, seu prefeito investe-se de um status político ímpar. A representação da cidade no âmbito nacional e internacional pede independência em relação aos poderosos da ocasião. Ela não pode ser trocada por eventual apoio eleitoral. Nessa condição, o compromisso com a democracia há de ser o pilar fundamental. Nossos candidatos dispõem-se a explicitar esse compromisso?

A voz política independente e autônoma do Rio de Janeiro é essencial para a cidade e para o país, não pode ser sublocada.

Não pode ser sublocada porque a complexidade do Rio pede intérprete forte. A cidade tem carências e potencialidades de igual peso. As primeiras precisam ser enfrentadas, as segundas precisam ser desenvolvidas. Um novo e reparador estatuto federativo para o Rio (já agora metropolitano) precisa ser pautado, ante as reconhecidas perdas, jamais compensadas, que a fusão e a mudança da capital representaram.

A cidade apresenta um quadro de carências urbanas de difícil compreensão. Como admitir que milhões de cariocas sofram pela ausência de infraestrutura e de serviços públicos, sofram em transporte desumano e, ainda, submetidos a regime brutal de traficantes e milicianos? Como admitir que, numa cidade com razoável padrão de qualidade urbana, tal situação perdure?

Ascânio Seleme - Não culpe o eleitor

- O Globo

O eleitor não foi afastado do seu cargo no Palácio Guanabara. Tampouco xingou jornalistas ou ameaçou dar porrada em um deles ao ser perguntado por que um

O eleitor não foi afastado do seu cargo no Palácio Guanabara. Tampouco xingou jornalistas ou ameaçou dar porrada em um deles ao ser perguntado por que um miliciano depositou R$ 89 mil na conta da sua mulher. Não foi o eleitor que saqueou os cofres do Rio durante oito anos. Também não podem ser atribuídos a ele a compra de apoio de partidos com dinheiro público e o desfalque bilionário na Petrobras.

Ele cumpre sua obrigação cívica a cada dois anos e pode eventualmente errar nas suas opções eleitorais, mas não erra de propósito. De um modo geral, o eleitor tem boa intenção, vota pensando no futuro, quer que seu candidato encontre soluções para os problemas da sua cidade, do seu estado e do Brasil. Ele pode ser desatento e deixar para a última hora a decisão sobre quem votar, mas quando vota está certo de que fez a escolha certa.

O eleitor pode ser manipulado, claro que pode. Ele é objeto de uma imensa carga de informações, muitas vezes falsas ou fraudulentas nas redes sociais. É certo que a abundância de fake news pode distorcer a vontade do eleitor. Neste caso, ele também não pode ser responsabilizado pelos atos dos que foram eleitos usando armas antiéticas e ilegais.

Como um consumidor qualquer, o eleitor é bombardeado por campanhas publicitárias que tentam vender a ele o melhor candidato. E isso é bom. Ele precisa mesmo saber quem são os candidatos, qual o cardápio disponível para decidir em quem votar.

Essas propagandas de candidaturas são legais e fiscalizadas pelos tribunais eleitorais. Mentira não pode. Acusações sem prova contra adversários também não são permitidas. Há punições aos faltosos que vão da perda do espaço publicitário gratuito até a sua desqualificação para o pleito.

A imprensa também está ao lado do eleitor e pode ser uma ferramenta muito útil para ele escolher melhor. Ela esclarece em tempo real cada lance das campanhas eleitorais. Buscar informação de qualidade com certeza ajuda, mas mesmo que o eleitor não faça isso, ele não poderá ser culpado dos crimes cometidos por quem elegeu.

Ninguém vai às urnas com a determinação de votar num corrupto.

Ricardo Noblat - Acertaram na cabecinha do governador Wilson Witzel

- Blog do Noblat | Veja

Guerra de facções
Se possível por unanimidade, o plenário do Superior Tribunal de Justiça deverá confirmar na próxima terça-feira a decisão solitária do ministro Benedito Gonçalves que afastou por 180 dias o ex-juiz Wilson Witzel (PSC) do cargo de governador do Rio de Janeiro.

Cláudio de Castro (PSC), o vice, assumiu o cargo na condição de interino. Horas antes, sua casa fora invadida pela polícia atrás de documentos. Ele é acusado de corrupção, assim como o deputado André Ceciliano (PT), presidente da Assembleia Legislativa.

O passado recente da política no Rio é conhecido. Dos cinco governadores eleitos que permanecem vivos, cinco foram afastados ou presos por suspeitas de malversação de recursos. Sim, cinco em cinco. Witzel é o sexto. Seu governo acabou.

O futuro da política no Rio é incerto. Como Castro governará se for denunciado por corrupção pelo Ministério Público? Ceciliano, ligado ao ex-governador Anthony Garotinho, seria seu imediato substituto. Mas Ceciliano também está enrolado, e não só ele.

As investigações avançam sobre outros deputados estaduais. Como a Assembleia Legislativa votará o processo já aberto de impeachment contra Witzel se parte dos seus integrantes é investigada? Quem presidirá a sessão de votação? Ceciliano?

Demétrio Magnoli* - Jacinda, a vacina

- Folha de S. Paulo

Jacinda Ardern mal oculta sua meta de inscrever na pedra sua liderança moral

A Nova Zelândia entrou em "lockdown" em março, para emergir em maio declarando um triunfo completo: a supressão do vírus. Jacinda Ardern saltou, então, da condição mundana de primeira-ministra ao estatuto mítico de Exterminadora. Duas semanas atrás, Auckland fechou de novo, após a irrupção de quatro novos de casos de contágio. Há, aí, uma lição.

As duas ilhas dos mares do sul, fragmentos remanescentes de um microcontinente parcialmente submerso, berços de uma nação de classe média, formam o lugar ideal para o experimento supressivo. O fracasso prova que o coronavírus não é exterminável —ainda que a Exterminadora insista, incansavelmente, em perseguir seu pote de ouro.

A Alemanha situa-se na ponta oposta da estratégia neozelandesa. Os alemães escolheram administrar os contágios, minimizando os óbitos por meio de quarentenas moderadas e do controle de focos de transmissão pela testagem em massa. No lugar da utopia de eliminação do vírus, eles definiram o objetivo de combater a epidemia com doses limitadas de restrições à vida social.

Os discursos vulgares sobre a vacina inscrevem-se no campo lógico personificado por Ardern. Fala-se da Vacina no singular e com maiúscula. A sua chegada marcaria a Redenção: o alvorecer dourado da imunidade absoluta.

Hélio Schwartsman – Jair, tecelão de oximoros

- Folha de S. Paulo

Não surpreende que Bolsonaro aja como Bolsonaro

No dia em que o Brasil contabilizava 115 mil mortes por Covid-19 —o que representa uma taxa de óbitos por 100 mil habitantes 47 vezes maior que a do vizinho Uruguai—, Jair Bolsonaro promoveu um evento em que arrebanhou ministros e alguns médicos para juntos enaltecerem a cloroquina. O nome escolhido para a cerimônia foi "Brasil vencendo a Covid-19".

É genial. Com essa, Bolsonaro conquistou um lugar no panteão dos oximoristas, as pessoas que criam nomes ou expressões que aglutinam conceitos contraditórios ou absurdos. Meu exemplo favorito é o Sacro Império Romano Germânico (a designação dada ao mosaico de Estados alemães que conviveram entre 963 e 1806), que, como observou Voltaire, não era sacro, nem era um império e também não era romano. Ao menos era germânico. Uma lista mais tradicional de oxímoros inclui: silêncio eloquente, instante eterno, crescimento negativo e inteligência militar.

Contradições à parte, não surpreende que Bolsonaro aja como Bolsonaro. O que me preocupa mais é que existam médicos que aceitam participar de uma pantomima eleitoreira que nega o método científico pelo qual a medicina deveria se pautar.

Julianna Sofia – E os super-ricos?

- Folha de S. Paulo

O 1% mais rico do país tem 30% da renda; os 5% mais pobres ganham R$ 165 por mês

O ministro Paulo Guedes encontra-se numa encruzilhada na busca por recursos para o Renda Brasil, peça de propaganda capaz de pavimentar o caminho para reeleição de Jair Bolsonaro. A situação falimentar das contas públicas e as travas fiscais vigentes, a incompetência do governo em endereçar reformas estruturais, além do voluntarismo do ocupante do Planalto, fizeram da tarefa bufonaria autêntica.

Propostas a esmo para bancar o programa social de Bolsonaro. Guedes já tentou vincular o gasto à criação da nova CPMF —o imposto digital que não tributa só transações digitais. E alertou que um benefício de R$ 300 ao Renda Brasil exigiria o fim das deduções do Imposto de Renda. Planejou ainda cortar o abono salarial, o Farmácia Popular e o seguro defeso para abrir espaço no teto de gastos e, assim, turbinar com R$ 20 bilhões o novo Bolsa Família.

Oscar Vilhena Vieira* - 'Dar fim à bandidagem'

- Folha de S. Paulo

Políticos fizeram da miséria da segurança pública fonte inesgotável de votos

O afastamento de Wilson Witzel do governo do Rio de Janeiro não chega a surpreender, uma vez que conspirou, desde o primeiro dia de seu mandato, contra os princípios mais elementares do Estado de direito. Lamento, no entanto, que a intervenção judicial não tenha sido decorrência da postura miliciana assumida pelo ex-juiz e agora governador. Difícil esquecer a imagem do helicóptero do governador metralhando uma tenda de orações, nos arredores de Angra dos Reis, sob o pretexto de “dar fim à bandidagem”. Seria pedagógico que além da corrupção, a violação sistemática de direitos humanos também passasse a ser vista como um obstáculo ao exercício do poder no Brasil.

Witzel é apenas mais um oportunista numa cepa de políticos que fizeram da miséria da segurança pública uma fonte inesgotável de votos, do qual Bolsonaro é o prócer. Desinteressados na reforma das políticas criminais, modernização do sistema de Justiça e na profissionalização das forças policiais, exploram o medo da população, vendendo a ilusão de que com o aumento do arbítrio do Estado e impunidade de seus agentes, além do encarceramento em massa, a questão da segurança estará resolvida.

Os mais de 1 milhão de mortos por homicídio nos últimos 30 anos são a expressão mais cabal de que a prevalência de uma política repressiva e arbitrária de segurança é absolutamente ineficaz para assegurar o direito à vida e à paz da população.

Na contramão dessa espiral autoritária, que vem agravando a violência e a violação de direitos das populações vulneráveis no Brasil, o Supremo Tribunal Federal proferiu duas relevantes decisões.

Igor Gielow - Bolsonaro pode celebrar, mas caso Witzel é aviso à 'geração de 2018'

Afastamento de governador mostra que a caveira de burro da política do Rio segue viva

A caveira de burro, figura extraída da mitologia do futebol que indica um lugar onde tudo dá errado, é o símbolo máximo da política do estado do Rio de Janeiro.

Dos 8 governadores que o estado elegeu desde que voltou a fazer isso, em 1982, 6 estão vivos. Todos foram implicados em algum esquema de corrupção, 5 foram presos em algum momento e 1, Sérgio Cabral, está na cadeia condenado a uma pena de quase 300 anos.

Agora foi a vez de Wilson Witzel (PSC), talvez o mais exótico exemplar em termos de trajetória política a frequentar o assombrado Palácio Laranjeiras, sob o qual parece enterrado o proverbial crânio muar.

Seu afastamento, somado ao processo de impeachment que sofre na Assembleia Legislativa, parece ser o prego no caixão da meteórica carreira política desse ex-juiz, eleito no tsunami conservador-bolsonarista de 2018.

O patrono da turma, o presidente Jair Bolsonaro, tem motivos para celebrar a queda em desgraça do antigo apoiador. Ao longo de 2019 e, principalmente, com a ascensão da realidade pandêmica, Witzel buscou afastar-se do Planalto com tom ácido.

Entrevista | ‘Rio vive vácuo político’, diz Ricardo Ismael

Ricardo Ismael, doutor em ciências políticas pelo Iuperj e professor da PUC-RIO

Para cientista político, afastamento de Witzel se soma ao escândalos das lideranças do MDB e do casal Garotinho

Pedro Venceslau | O Estado de S.Paulo

A celeridade na apuração das denúncias contra Wilson Witzel, afastado na sexta-feira, 28, do cargo de governador do Rio, se deve mais ao fato de os supostos desvios na área da Saúde terem acontecido em plena pandemia do que por influência política do Palácio do Planalto. A avaliação é do cientista político Ricardo Ismael, doutor em ciências políticas pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e professor da PUC-Rio. Para ele, o Rio vive um “vácuo” político – cinco ex-governadores do Estado eleitos desde a redemocratização já foram presos.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

• O presidente Jair Bolsonaro é beneficiado pelo afastamento do governador Witzel ?

Witzel foi eleito naquela onda do Bolsonaro. Ele passou a maior parte da campanha na rabeira e começou a crescer no fim do 1.° turno fazendo campanha com Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). No segundo turno, ganhou com uma diferença de 20 pontos porcentuais. Depois, ele começa a se afastar de Bolsonaro e diz que poderia ser candidato à Presidência em 2022. Após a busca e apreensão na secretaria da Saúde, ele começou a se retrair. Com o processo de impeachment na Assembleia, ele ficou mais ainda na defensiva. O voo dele nacional já estava completamente inviabilizado. Com o afastamento, cresce muito a chance dele sofrer impeachment. Se ele for mesmo afastado e não voltar, Bolsonaro pode ter um aliado no governo para 2022.

• Os Bolsonaros podem ocupar espaço nesse vácuo de poder do Rio de Janeiro?

O vice Cláudio Castro, do PSC, tem pouca experiência em política. Se não for comprovado nada contra ele, Castro fica com o mandato e, pelas circunstâncias no Rio, será forçado a se aproximar do Governo Federal, até para poder buscar recursos. A situação das finanças públicas no Rio é bem delicada. Seria uma tendência natural. Castro não iria sombrear Bolsonaro em uma tentativa para disputar a Presidência. O outro cenário é, se houver o afastamento do vice, que também está sendo investigado, pode ocorrer uma eleição direta. Nesse caso, o bolsonarismo não tem candidato. A pré-campanha para a prefeitura da capital mostrou isso. Bolsonaro se aproximou do Crivella e não tem um candidato.

• Como o sr. explica a decadência da política do Rio, que já teve cinco governadores presos e agora um governador afastado?

Os casos de Cabral, Pezão e Witzel se parecem e envolvem desvio de dinheiro público. Os mecanismos de controle do Rio, como Tribunal de Contas e Ministério Público Estadual e Polícia Civil, têm falhado. Lembrando que o Tribunal de Contas é um órgão auxiliar da Assembleia Legislativa, que também tem função fiscalizadora.

• Houve celeridade no caso de Witzel?

Sempre se levanta a hipótese que o governo Bolsonaro apertou os botões, mas governador tem foro privilegiado. Tudo foi feito com autorização do ministro Benedito Gonçalves, do STJ. Todos os procedimentos foram analisados por ele. Salta aos olhos no Rio que, durante uma pandemia, surjam uma sucessão de denúncias. Isso chama atenção da mídia e o processo ganhou mais velocidade. Foi a pandemia que fez andar mais rápido. É muito mais grave desviar dinheiro público nessa situação.

• A queda de Witzel coloca em xeque o discurso da nova política?

Sim e não. Vamos começar pelo sim. Witzel foi eleito dizendo que representava a nova política e nunca tinha se misturado com políticos acusados na Lava Jato e vinha da Justiça Federal. O discurso casava com o momento do País pós Lava Jato de buscar políticos ficha-limpa. Nesse aspecto foi uma ducha de água fria. Rio e Minas Gerais apostaram em caras novas. Nesse sentido foi um revés. A população vai perceber que não adianta votar em alguém que não é da política, só indo atrás de outra atividade profissional. Por outro lado, o Rio de Janeiro vive um vácuo político. Estão fora do jogo todas as lideranças do MDB, Garotinho e Rosinha, o Witzel. O sentimento de renovação vai continuar.

Vera Magalhães – Governador do Rio colapsou com a mesma rapidez que surgiu

- O Estado de S. Paulo

Wilson Witzel é um fenômeno sui generis na política brasileira, que vem acumulando espécimes desta natureza desde 2018. Na campanha ao governo do Rio, era um ex-juiz desconhecido, algo caricato, de um partido nanico, figurante. Foi então que colou sua imagem à de Jair Bolsonaro, tentou surfar na então maré influente de juízes valentões, participou do gesto de rasgar a placa de Marielle Franco e enfrentou Eduardo Paes num debate.

Foi esse o “currículo” que levou o desconhecido cujo nome ninguém sabia pronunciar direito à vitória no terceiro maior Estado da Federação já encalacrado, com dois ex-governadores (Sérgio Cabral e até então também Luiz Fernando Pezão) na prisão, outros três (casal Garotinho e Moreira Franco) tendo feito escalas por lá, absolutamente quebrado do ponto de vista fiscal e econômico, fraturado socialmente, dominado pela violência, loteado entre tráfico e milícia.

Não que houvesse grandes opções. O adversário favorito era Eduardo Paes, que, embora não tenha sido engolfado pelo escândalo de Cabral diretamente, foi aliado do exgovernador o tempo todo de seus dois mandatos na prefeitura. Na capital do Rio o comandante é o bispo Marcelo Crivella, que transformou a cidade num experimento de política neopentecostal, levado adiante mesmo no enfrentamento da pandemia.

Alarmante é pouco para descrever a situação em que se encontra o Rio. A magnitude e a extensão da operação que afastou Witzel do cargo, prendeu políticos proeminentes, como Pastor Everaldo, e mostrou um esquema seriíssimo de fraude na Saúde em plena pandemia mostra um Estado carcomido por sucessivos grupos políticos que viram nele apenas uma casa a ser saqueada até não sobrarem nem as vigas.

Witzel não tinha projeto, não tinha noção de administração pública, não tinha partido e não tinha, agora vê-se, boas intenções. Desde o dia 1 no cargo se alternou entre declarações e ações midiáticas, brigas com Bolsonaro e encrencas com a Assembleia. A briga com o presidente e espelho político se mostrou seu maior erro, ocasionado pela ilusão de que poderia ser candidato a presidente.

Governador acidental, Witzel parece ter acreditado que era um ungido para voos maiores. A queda tão rápida quanto a ascensão ao menos corta na raiz uma carreira política de que Rio e Brasil não precisavam. E assim como ele está cheio de arrivista por aí, nos Executivos e Legislativos.