domingo, 26 de fevereiro de 2023

Campanha das Diretas faz 40 anos em tempos de ameaças à democracia

Embora derrotado na Câmara, movimento impulsionou fim da ditadura e deixou legado hoje sob ataque

Oscar Pilagallo* / Ilustríssima / Folha de S. Paulo

 [RESUMO] Em 2 de março de 1983 a emenda que propunha a restauração de eleições diretas para a Presidência obteve assinaturas suficientes para ser apresentada no Congresso. A campanha das Diretas logo atrairia o apoio de políticos da oposição à ditadura e de vastas camadas da população —com participação decisiva da imprensa, sobretudo da Folha—, tornando-se a maior mobilização popular da história do país. Mesmo derrotada na Câmara, impulsionou o processo de redemocratização e de conquistas da Constituição de 1988, legado hoje atacado por ameaças autoritárias, como a invasão das sedes dos três Poderes em 8 de janeiro.

Quatro décadas depois das Diretas Já, no momento em que relembra a maior campanha popular e a mais animada festa cívica de sua história, o Brasil se encontra, de novo, na posição de ter que fazer da defesa intransigente da democracia o eixo da ação política.

O paralelismo entre as duas situações históricas tem limites evidentes. Em meados dos anos 1980, combatia-se uma ditadura militar que, duas décadas após ter sido implantada, vivia seus estertores. Hoje, sem que o regime democrático tivesse sido rompido, enfrenta-se a ameaça latente gestada no que sobrou de um projeto autoritário cujos simpatizantes mais fanáticos, apelando à violência, relutam em aceitar o veredito das urnas.

Ainda assim, como as diferenças não anulam as semelhanças, não seria impertinente notar o que há em comum entre 1983, quando as Diretas ganham forma ainda embrionária, e 2023. Para citar o que talvez seja o melhor exemplo da comparação, o arco partidário dos palanques de então, que abrangia da esquerda à centro-direita, exibe a mesma amplitude ideológica da frente que no ano passado derrotou a extrema direita.

Vinicius Torres Freire - Lula e o imposto sobre gasolina

Folha de S. Paulo

Isenção de tributo beneficia mais ricos de várias maneiras e piora situação da economia e do governo

Jair Bolsonaro tirou impostos sobre combustíveis, uma de tantas fraudes eleitoreiras que cometeu, arrebentando as contas do governo. Luiz Inácio Lula da Silva tem medo de voltar a cobrar tais impostos.

É fácil entender. A volta do tributo federal sobre a gasolina vai provocar algum aumento na inflação e desgosto entre um eleitorado que, na maioria, não votou em Lula. São os pelo menos remediados, que costumam ter um veículo.

Até terça-feira (28), Lula tem de decidir se prorroga ou não a isenção de imposto (já o fez para o diesel). O Ministério da Fazenda quer o dinheiro. O entorno político de Lula quer evitar a "reoneração". Acha que pode dar um jeitinho, à moda de Dilma 1.

Lula deveria voltar a cobrar o imposto. Sem essa receita, tem de tomar ainda mais dinheiro emprestado, entre outros problemas, pois o governo é muito deficitário.

Bruno Boghossian - A maldição dos combustíveis

Folha de S. Paulo

Presidente tenta adiar desgaste e ameaça ministro da Fazenda com nova derrota pública

Poucos fatores podem drenar a popularidade de governantes e produzir problemas políticos como os preços dos combustíveis. O gás de cozinha mais caro pressionou FHC, a gasolina alimentou o mau humor de opositores com Dilma Rousseff, o diesel jogou uma greve de caminhoneiros no colo de Michel Temer, e Jair Bolsonaro lutou contra as bombas durante a campanha à reeleição.

Lula tenta adiar seu encontro com essa maldição. Assim que voltou ao Planalto, o petista prorrogou o corte de tributos sobre combustíveis —um explosivo deixado por Bolsonaro. A decisão contrariou a equipe econômica, mas o presidente preferiu fugir a todo custo de uma má notícia no primeiro dia de mandato.

Muniz Sodré* - A mão que não se estende

Folha de S. Paulo

Religião é disfarce para que a moralidade privada se torne matéria de Estado e de opressão

Quase dois meses após a posse presidencial, permanece aceso o instante em que Janja, durante os cumprimentos diplomáticos, se afastou de Lula para evitar o aperto de mão dos iranianos. Aliás, uma nota da embaixada do Irã reaviva o episódio, dizendo que eles mesmos haviam pedido ao cerimonial para contornar a saudação às damas.

Se real, a nota é um pioramento da atitude poluta dos que fazem cortesia diplomática ser a ruína do que foi ou, como se diria no tempo do Barão do Rio Branco, passar de porqueiro a porco. A viravolta poderia permanecer como bizarrice, mas se trata mesmo de dissonância de segunda mão, primordialmente política. É que os descorteses são paus-mandados dos mulás, líderes religiosos que controlam um aparelho de Estado regido pelo ódio à condição feminina.

Luiz Carlos Azedo - Lula agarrou a bandeira da paz com as duas mãos

Correio Braziliense

Os principais líderes União Europeia estão alinhados aos Estados Unidos e à Inglaterra no esforço de apoiar Zilensky e botar para correr da Ucrânia as tropas russas de Putin

Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou que pretendia formar um clube para negociar a paz na Ucrânia quase ninguém levou muito a sério, com exceção do chanceler brasileiro Mauro Vieira, que viu na proposta uma grande oportunidade para a nossa diplomacia, reconhecidamente competente, principalmente nas negociações multilaterais. A desconfiança em relação à viabilidade da proposta decorre do fracasso do acordo nuclear com Irã negociado pelo Brasil e pela Turquia, mas rejeitado pelo então presidente norte-americano Barack Obama. Sim, existe a velha e legítima ambição de conquistar o Nobel da Paz por parte de Lula, mas isso é um prato feito para a maledicência. No Brasil, “o sucesso é um atentado ao pudor”, como diria Tom Jobim.

A bandeira da paz estava na lata do lixo do Ocidente. Todos os principais líderes da União Europeia estão alinhados aos Estados Unidos e à Inglaterra no esforço de botar para correr do território ucraniano as tropas invasoras do presidente da Rússia, Vladimir Putin. Por isso, perderam condições de neutralidade para mediar o conflito. No começo da guerra, acreditava-se que a Rússia conquistaria Kiev e destituiria o governo ucraniano em dez dias. Joe Biden chegou a oferecer asilo ao presidente Vladimir Zelensky, mas teve essa oferta rejeitada: “não preciso de asilo, preciso de armas”, disse o líder ucraniano. A guerra completou um ano, o Exército russo teve que recuar para as províncias de sua fronteira e Zelensky, que se tornou o líder mais popular da Europa, agora, prepara uma contraofensiva para retomar a Crimeia.

Celso Rocha de Barros - Lula e a Ucrânia

Folha de S. Paulo

Presidente devolve ao Brasil papel de voz razoavelmente importante, mas raramente decisiva

A posição de Lula sobre a Guerra da Ucrânia começou muito ruim, refletindo um viés comum na esquerda brasileira de um ano atrás. Embora o discurso sempre tenha sido de defesa da paz, as críticas a Zelenski eram mais frequentes do que as críticas a Putin, e o quadro de referência conceitual parecia ser: "Se os Estados Unidos apoiam um cara, nós apoiamos o outro".

Mas 2022 foi um longo ano, que mostrou que o embate internacional atual é mais complexo do que isso.

Putin recebeu Bolsonaro quando o resto do mundo o tratava como lixo tóxico. Seu grande aliado na União Europeia, Viktor Orbán, é uma grande inspiração dos bolsonaristas. As posições anti-LGBT do governo Putin são muito populares entre os fanáticos de direita do Ocidente.

Eliane Cantanhêde - ‘Paz’, não só armas e sanções

O Estado de S. Paulo

Brics, o ‘ambiente confortável’ para Putin discutir porta de saída da guerra

“É preciso que Estados Unidos e China entrem em sintonia porque, sem China, não há solução para a guerra da Ucrânia”, defende o chanceler Mauro Vieira, para quem os Brics podem criar um “ambiente confortável” para as negociações, num momento em que o mundo, além de armamento para a Ucrânia e sanções para a Rússia, passou a falar também sobre “paz” em notas, conversas e entrevistas.

O Brasil lançou a ideia genérica de um grupo de países “não envolvidos” para negociar o fim dos ataques, a Ucrânia jogou na mesa dez pontos para início de conversa e a China apresenta uma proposta considerada inócua, mas, ainda assim, uma proposta. Já os EUA, que despejaram bilhões de dólares no conflito, se limitam a dizer que “ideias são bem-vindas”.

José Augusto Guilhon Albuquerque* - O papel da oposição na democracia brasileira

O Estado de S. Paulo

O pressuposto de que defender as instituições democráticas implica apoiar o governo Lula, abster-se de criticar seus erros, não se sustenta

A vitória eleitoral de Lula no segundo turno provocou, em parte, um alívio depois de quase quatro anos de desgoverno do ex-presidente Bolsonaro e, sobretudo, diante de um final de mandato sem governo nenhum. O alívio também proveio de uma expectativa de cumprimento do compromisso, assumido pelo novo presidente, de formar um governo de frente ampla, com participação relevante das lideranças e do eleitorado de centro, sem cujo voto Lula teria sido derrotado.

No que diz respeito ao seu compromisso com uma ampla frente de defesa da democracia, não creio que seja injusto afirmar que ele tem deixado muito a desejar. E, se fosse injusto, motivado por discordâncias morais ou ideológicas, não teríamos o direito democrático de discordar?

Infelizmente, o alívio por termos evitado as ameaças golpistas do ex-presidente – graças, repito, ao voto do eleitorado de centro – provocou no jornalismo brasileiro e em parte da opinião pública uma quase unanimidade nacional. Mas a unanimidade não é apenas burra, como queria Nelson Rodrigues, ela é inimiga da democracia representativa.

Rolf Kuntz - O governo redescoberto

O Estado de S. Paulo

O presidente reafirmou o papel do governo ao combinar ações de socorro aos atingidos pelo temporal no litoral de São Paulo. Mas falta mostrar a qualidade da administração

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva olhou para além de seu cercadinho, falou a todos os brasileiros e agiu como governante ao anunciar, em São Sebastião, apoio às populações atingidas pelo maior temporal registrado na história paulista. Com a devastação como cenário, presidente, governador e prefeito prometeram ações combinadas, pondo a ideia de função pública acima das diferenças partidárias. Durante mais de um mês, desde sua posse, o presidente Lula havia discursado principalmente para o público petista, como se devesse a sua eleição apenas a seu partido e – muito mais grave – como se fosse governar apenas para os portadores de uma bandeira. Ao assumir mais claramente a sua condição funcional, ele consolida, agora, a percepção de Brasília, de novo, como um centro administrativo.

Isso representa uma ampla e animadora mudança num país submetido, nos quatro anos anteriores, ao desgoverno de um presidente omisso, inepto, avesso ao interesse público, indiferente à vida ou morte dos brasileiros e centrado em objetivos pessoais e familiares. O Brasil volta a dispor, em Brasília, de algo classificável como administração, mas falta saber como funcionará o aparelho federal. As dúvidas se refletem nas projeções ainda elevadas de inflação e de crescimento econômico muito modesto.

Míriam Leitão - Início do ataque ao ouro ilegal

O Globo

Novas leis e normas, operações de comando e controle e os sinais do governo Lula alimentam a esperança de vitória sobre o garimpo ilegal

O que parecia impossível começa a acontecer em pouco mais de um mês, o combate ao ouro ilegal. A ida do presidente Lula à Terra Indígena Yanomami deflagrou um processo virtuoso, mas o caminho é longo. A Receita Federal, o Congresso, o Supremo e o Banco Central têm trabalho a fazer para limpar o ambiente de crime nesse mercado. Os ministros da Justiça, Defesa e comandantes militares avaliaram, na quinta-feira, que a desintrusão na Terra Yanomami está quase no fim. E isso é um passo.

— Eram 40 aviões circulando por dia, agora, um ou dois. Havia milhares de garimpeiros, agora são centenas em cinco pontos. Para um trabalho que começou há praticamente um mês é um bom resultado — disse o ministro da Justiça Flávio Dino.

Mesmo assim, quem acompanha o assunto, como o diretor executivo do Instituto Escolhas, Sérgio Leitão, permanece cético:

Elio Gaspari - Lembra do Trem-Bala? Ele voltou

O Globo

Com jeito de quem não quer nada, na quarta-feira a Agência Nacional de Transportes Terrestres divulgou sua Deliberação nº 47, com três artigos. Outorgou à empresa TAV Brasil, constituída em fevereiro de 2021 com capital de R$ 100 mil, autorização para “a construção e exploração de estrada de ferro entre São Paulo e o Rio de Janeiro pelo prazo de 99 anos”.

Ganha um lugar na viagem inaugural desse trem quem conseguir explicar o que essa autorização significa, pois faltam o capital, o projeto de engenharia e a demonstração da demanda.

É o velho Trem-Bala que ressuscita. Pelo que se promete, em junho de 2032 ele ligará as duas cidades em 90 minutos. A autorização da ANTT custou-lhe uma folha de papel. Esse trem custaria algo como R$ 50 bilhões, cerca de US$ 10 bilhões.

Bernardo Mello Franco - O dia da caça do juiz Bretas

O Globo

CNJ julgará magistrado que prendeu Cabral, colou imagem a Bolsonaro e virou alvo de delação

O Conselho Nacional de Justiça julgará na terça-feira três reclamações contra Marcelo Bretas. O juiz se projetou em 2016 ao ordenar a prisão do ex-governador Sérgio Cabral. Nos anos seguintes, encantou-se com a política e colou sua imagem ao bolsonarismo.

Bretas fez dobradinha com Sergio Moro em processos da Lava-Jato. Como o ex-juiz de Curitiba, ganhou popularidade ao condenar corruptos notórios. A exemplo dele, deslumbrou-se com a possibilidade de interferir em eleições.

Em 2018, o titular da 7ª Vara Federal Criminal do Rio desequilibrou a disputa pelo Palácio Guanabara. A três dias do primeiro turno, divulgou a delação de um ex-secretário que, no quarto depoimento, mudou a versão para acusar Eduardo Paes. O prefeito despencou nas pesquisas e foi atropelado pelo azarão Wilson Witzel.

Merval Pereira - O poder da máquina

O Globo

Putin não quer o Nobel da Paz, quer vencer os separatistas, que são uma ameaça à Federação Russa.

Na marca de um ano da invasão da Rússia na Ucrânia, nada melhor para conhecer as intrincadas razões do primeiro-ministro russo Vladimir Putin para desencadear essa ação irresponsável, do que ler “O Mago do Kremlin”, do cientista político italiano Giuliano Da Empoli, lançado no Brasil no final do ano passado, premiado com o Grand Prix da Academia Francesa. Putin é um homem que não se interessa em ganhar o Prêmio Nobel da Paz, mas em vencer os separatistas, que representam uma ameaça à Federação Russa.

Autor do essencial “Engenheiros do Caos”, livro no qual descreve a ação de extremistas de direita no uso das ferramentas digitais para provocar rebeliões pelo mundo afora, e interferir na política de outros países, Da Empoli faz a ligação de seu novo livro com o anterior, mostrando como o uso político das redes sociais na internet teve papel fundamental para Putin, reforçando as suspeitas de que a Rússia teve participação direta na eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016 e, possivelmente, na de Bolsonaro em 2018 no Brasil.

Dorrit Harazim - Mais guerra

O Globo

De trincheira em trincheira, o sargento vai enchendo sua caminhonete até entregar o lote recolhido no necrotério mais próximo

Foram as unhas das mãos de Iryna Filkina, pintadas de esmalte cor de sangue, que permitiram sua rápida identificação. Entre as primeiras imagens da matança de civis praticada por tropas russas em Bucha, logo no início da invasão à Ucrânia, uma delas mostrava um torso intacto, agasalhado, no chão de uma rua já coalhada de cadáveres. Não se veem a cabeça nem os membros inferiores desse torso, apenas um dos braços, também estendido no solo. E, na extremidade do braço, uma mão de pele branquíssima, suja de terra. Os dedos estão ligeiramente fechados e revelam cinco unhas pintadas de escarlate. Ou melhor, quatro: a unha do dedo anular estampa o desenho de um coração preto. Não foi preciso qualquer investigação forense para identificar a quem pertencia aquele torso/braço/mão no solo da primeira cidade atropelada pelos russos: ali jazia o que restava de Iryna, a técnica em ar-condicionado que mantinha a manicure em dia e sempre surpreendia os clientes com alguma audácia no dedo anular. O detalhe do esmalte injetou humanidade àquele corpo sem vida. Hoje é seu rosto sorridente e luminoso que circula pelas redes, em foto fornecida pela família. Vê-se uma Iryna de mão no queixo, unhas impecáveis à mostra, como a apagar a imagem de um ano atrás.

Cristovam Buarque* - Fósseis vivos da escravidão

Blog do Noblat / Metrópoles

Favelas, racismo, analfabetismo, desigualdade escolar...

O sociólogo brasileiro é antes de tudo um paleontólogo da escravidão. Ao redor, a sociedade é um sítio de fósseis daquele tempo, às vezes parecendo ainda vivos.

As favelas: O próprio nome favela foi criado pelos ex-escravos quando migraram do cativeiro para a liberdade: das fazendas para a periferia de cada cidade. Até hoje são fósseis do que eram as senzalas, com condições sanitárias ainda piores, devido ao descuido com o tratamento dos dejetos humanos e lixo expelidos nas monstrópoles superpovoadas do século XXI.

Os condomínios: Graças ao avanço técnico, 130 anos depois da Abolição, os descendentes-sociais-dos-escravocratas vivem em melhores condições que seus antepassados no tempo da escravidão, e ainda mais desiguais em relação aos atuais descendentes-sociais-dos-escravos. O condomínio, horizontal ou vertical, é um fóssil da casa grande.

Mércio Pereira Gomes* - O Avassalamento dos Yanomami (3)

No princípio, os Yanomami viviam e não morriam, mas não tinham fogo para cozinhar e comiam comida crua ou apodrecida. Mas eis que um dia descobriram que um deles, em forma de Jacaré, detinha o fogo e o usava escondido dos outros e quando voltava à aldeia guardava-o em sua bocarra. Aí os Yanomami fizeram tanta graça que o Jacaré abriu a bocarra para rir e subitamente lhes subtraíram o fogo. Com o controle do fogo, perderam a imortalidade, tornaram-se mortais.

Em outras palavras, o preço que se paga por qualquer vantagem ou vitória na vida é necessariamente grande. É uma interpretação moral, mas há outras à escolha.

Por longos anos, como se o tempo não mudasse, os Yanomami viviam como se estivessem sós no mundo. Outros povos indígenas que viviam ao seu redor, nos tempos coloniais, mal os viam e raramente se engajavam em disputas ou em trocas de bens com eles. Os Yanomami mal sabiam do mundo dos brancos, nenhum deles tinha ido a um simples vilarejo de mestiços. Tanto que os Yanomami têm só uma palavra para significar qualquer pessoa que não é Yanomami, seja índio, seja mestiço, seja branco, seja inimigo – nabë. Pode ser que num passado mais remoto, ao tempo da colonização ou antes, houvesse mais relacionamento, belicoso e pacífico, dos Yanomami com outros povos indígenas, mas já pelo século XX, quando começaram a ser conhecidos vagamente por viajantes, caucheiros e balateiros que, individualmente ou em pequenos  grupos, penetravam seu território, já não havia mais entrelaçamento entre eles e outros povos indígenas. Praticamente todos, menos os Ye’kuana, que fala uma língua Karib, haviam desaparecido. A própria língua Yanomami, em suas três ou quatro variações dialetais, mudou tanto, se afastou tanto de outras línguas matrizes que, hoje em dia, os linguistas não sabem precisar a qual família linguística ela pertence. Seria sua língua talvez longinquamente do tronco Karib? Nada.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Desafio de regular inteligência artificial não tem paralelo

O Globo

Sistemas que simulam atividades criativas terão impacto profundo nos negócios, na política e na vida

É uma piada antiga entre cientistas da computação traduzir a sigla IA por “imbecilidade automatizada”. Nos últimos tempos, a brincadeira perdeu a graça, tamanho o avanço nos sistemas de “inteligência artificial”. É verdade que não é muito adequado chamar um software de “inteligência”. Mesmo assim, nos últimos anos a IA ultrapassou barreiras críticas que a tornaram mais acessível — e se tornou o ramo mais promissor e desafiador da tecnologia digital.

A principal das barreiras é um teste atribuído ao matemático britânico Alan Turing: a partir do momento em que um observador não seja mais capaz de distinguir respostas do computador e dos humanos, dizia Turing, será possível afirmar que a máquina é dotada de inteligência. Tal questão filosófica ainda deverá permanecer sem solução por um bom tempo, mas vários sistemas de inteligência artificial lançados recentemente são hoje capazes de enganar os observadores desavisados.

Poesia | José Saramago - A Ti Regresso Mar...

 

Música | Moacyr Luz & Samba do Trabalhador - Viver

 

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Marco Aurélio Nogueira* - Uma montanha a escalar

O Estado de S. Paulo

O novo governo está forçado a escalá-la. Nasceu minoritário nas instituições, com estreita maioria eleitoral e pouca folga para compor uma forte base de apoio

Já era para estar soprando um vento de otimismo e esperança, depois do inferno que foram os anos Bolsonaro. A vitória de Lula nas eleições do ano passado mostrou que parte importante da sociedade deseja experimentar outros caminhos. A expectativa de que se abriria uma nova era governamental impulsionou os votos recebidos por Lula, obtidos tanto por seu carisma quanto pela força do PT e pelo apoio de inúmeros democratas, cientes de que o País se arrastava numa inaceitável aventura reacionária.

Porém, em vez da bonança que se segue aos tempos ruins, uma onda de preocupação e decepção ameaça crescer, misturada com as calamidades deste início de 2023. O 8 de janeiro, a tragédia Yanomami e as chuvas catastróficas no litoral norte de São Paulo consumiram muitos esforços governamentais. O governo Lula mal se distanciou do tiro de largada, caminha em busca de um eixo que o estruture e lhe permita produzir resultados. Necessita de tempo, foco e determinação. O problema é que os cidadãos e o País estão com pressa, querem ingressar em outra etapa.

Oscar Vilhena Vieira* - Resiliência tem limites

Folha de S. Paulo

Sofrimento e perdas com chuvas recaíram desproporcionalmente sobre mais pobres

Temos abusado de nossa resiliência. A palavra, que originalmente era empregada para designar a propriedade de certos materiais de recobrar sua forma original após serem submetidos a deformação, ganhou terreno, sendo hoje amplamente empregada pela psicologia, economia, estudos de clima e mesmo no direito (eu mesmo participei de um livro intitulado "Resiliência Constitucional").

A primeira vez que ouvi a expressão fora de uma aula de física foi na Praça da Sé, há mais de 30 anos. Após constatarmos a condição degradante a que estavam submetidos inúmeros jovens em situação de rua, no centro de São Paulo, muitos deles dependentes, minha colega de Comissão Teotônio Vilela, Cenise Monte Vicente, disse: "Esses jovens são incrivelmente resilientes; se tiverem apoio e oportunidades, conseguirão retomar suas vidas".

Pablo Ortellado - Verdade bem achada

O Globo

As mentiras, as distorções e os exageros apenas servem para reforçar as crenças que o público-alvo já tem

Muita gente acredita, à esquerda e à direita, que nosso problema político fundamental é que estamos dominados por máquinas de difundir mentiras. Esse diagnóstico parte do pressuposto de que nossos juízos políticos, equivocados e inflamados, são forjados pelas mentiras difundidas nas mídias sociais e nos aplicativos de mensagens. Mas será que estamos consumindo mentiras e, a partir delas, formando juízos deturpados? Ou tudo aconteceria no sentido contrário: só estamos aceitando as mentiras porque temos um juízo inflamado prévio? Soluções muito diferentes são exigidas num e noutro caso.

O leitor simpático a Bolsonaro pode fazer o exercício. Ele deve ter visto nos aplicativos de mensagem que um dos participantes da invasão do Congresso carregava uma bandeira do PT, outra tinha as chaves e entrou sem dificuldades no Palácio do Planalto. Para ele, os dois fatos mostram que o vandalismo na sede dos Três Poderes foi obra de esquerdistas infiltrados, tudo facilitado pelas autoridades petistas para justificar a repressão ao movimento popular. Agências de verificação demonstraram que a porta do Palácio do Planalto foi arrombada e que a bandeira do PT não era de um infiltrado, mas foi roubada por um bolsonarista do gabinete de um deputado de esquerda. Será que, confrontado com essa retificação, o bolsonarista médio muda o seu juízo? Provavelmente, não.

Carlos Alberto Sardenberg - Sabotagem tributária

O Globo

Se as empresas e as pessoas devem fazer provisões contra o risco de cair uma decisão definitiva, então todas as decisões não valem nada

Se sabotadores internacionais viessem ao Brasil para criar o caos em nosso sistema tributário — por mais competentes que fossem —, não conseguiriam fazer estrago maior que o feito por aqui mesmo. Comecem pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Pois o STF aprovou regra que cria a seguinte situação: uma empresa foi ao Supremo e lá obteve sentença dizendo que não precisava pagar a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); era coisa julgada, isso desde 2007; passam-se os anos, e o próprio STF decide que se enganara, aquela CSLL é devida; ok, mas está óbvio que, durante todos os anos passados, a empresa não cometeu irregularidade alguma ao deixar de pagar um imposto com base em decisão da Corte; logo, não deve nada e passa a pagar de agora em diante, certo?

Carlos Góes - Juro e crescimento

O Globo

É importante debater a política de juros. Mas demonizar a política econômica não contribui para o crescimento do Brasil

Durante as últimas semanas, o país testemunhou um confronto de visões sobre o papel da taxa de juros no controle da inflação e no crescimento do país. Os termos do debate não foram os usuais.

Além de acadêmicos e colunistas preencherem páginas de jornais, como de costume, a CUT preencheu a entrada dos prédios do Banco Central pelo país em protestos contra a política de juros.

A tese da ala mais à esquerda do governismo parece se resumir na seguinte frase de Gleisi Hoffman, presidenta do PT: “O Banco Central não pode aplicar um remédio errado e comprometer o crescimento do Brasil.” O argumento é que o Brasil não cresce por causa da política de metas de inflação.

Mas não há evidências de que esse argumento seja verdadeiro.

Hélio Schwartsman - Repressão e regulação

Folha de S. Paulo

Necessidade de reprimir golpistas não deveria contaminar regulação das redes sociais

Uma coisa é definir estratégias para combater o golpismo e a radicalização política e outra é criar regras racionais e coerentes para o funcionamento de algoritmos e redes sociais. No Brasil, precisamos fazer as duas coisas, mas não deveríamos permitir que uma contamine a outra.

Uma das formulações de Immanuel Kant para o imperativo categórico é "Age de acordo com uma máxima tal que possas querer, ao mesmo tempo, que ela se torne lei universal". Simplificando um pouco, teríamos o "Não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem". E o imperativo categórico é algo que precisamos levar em conta em propostas de regulação, já que, idealmente, elas devem fazer sentido nos mais diversos lugares, épocas e contextos políticos.

Cristina Serra - Escárnio contra os yanomamis

Folha de S. Paulo

Maioria de senadores de comissão defende garimpo e é inimiga dos povos indígenas

comissão externa criada pelo Senado para acompanhar a tragédia humanitária que se abateu sobre os yanomamis é um faz de conta abominável. Dos cinco integrantes, três são senadores por Roraima, notórios defensores do garimpo, inimigos da população indígena e predadores de seu direito à terra e a viver em paz.

O presidente da comissão é Chico Rodrigues (PSB), famoso pelo flagrante de R$ 33 mil escondidos nas partes pudendas, em ação da PF que investigava desvio de dinheiro para o combate à Covid. Reportagem do site Repórter Brasil mostrou que o senador foi dono de um avião visto diversas vezes sobre o território yanomami e até mesmo em uma pista de pouso clandestina. Rodrigues chegou a dizer em vídeo que o garimpo em TI é um "trabalho fabuloso".

Demétrio Magnoli - Biden em Kiev

Folha de S. Paulo

Hipotética vitória russa assinalaria declínio radical do papel global dos EUA

Joe Biden emergiu de surpresa em Kiev para libertar os EUA da sombra de Cabul. Sua mensagem, destinada ao público doméstico, aos aliados europeus e à Rússia: não abandonaremos a Ucrânia. Sem a humilhante retirada americana do Afeganistão, em 2021, dificilmente Putin teria deflagrado sua guerra imperial de conquista. Hoje, do Donbass à Crimeia, está em jogo o equilíbrio geopolítico mundial.

O proclamado "momento unipolar" da implosão da URSS e da primeira Guerra do Golfo (1990-91) ficou no passado –e, talvez, na esfera das ilusões. Na hora da retirada do Vietnã, meio século atrás, a economia dos EUA representava 36% do PIB global; hoje, representa cerca de 24%. O poder bruto chinês, a dimensão da economia da União Europeia e o arsenal nuclear russo configuraram uma geometria multipolar. Os EUA já não são o hegemon, mas o "primus inter pares". A Ucrânia situa-se numa encruzilhada histórica: um teste decisivo da superpotência que arquitetou a ordem mundial.

Fernando Schüler* - O país sem convicção

Revista Veja

No Brasil, ‘até o passado é incerto’, na conhecida frase de Pedro Malan

Primeiro, foi com a regra do teto. Em 2016, o Brasil vivia a sua crise, o PIB cairia mais de 7% em dois anos, e alguns milhões de brasileiros cruzavam, para baixo, a linha da extrema pobreza. Foi aí que o país definiu uma regra fiscal para valer no longo prazo: o Orçamento só pode crescer no limite da inflação do ano anterior. Por vinte anos, com direito a uma revisão no meio do caminho. O problema é que rodamos no marshmallow test. Para quem não conhece, é aquele teste famoso em que se põe uma criança diante de uma guloseima, sabendo ela que se esperar alguns minutos ganhará, logo ali adiante, duas guloseimas. Uma parte das crianças, em geral as mais novas, não consegue esperar. É semelhante ao nosso caso. Pouco mais de seis anos depois de definir a regra, o país-criança decide mudar. Já havíamos furado a regra algumas vezes, mas agora vamos mudar de vez, sem fazer ideia do que colocar no lugar.

João Gabriel de Lima - Uma nova revolução no campo é necessária

O Estado de S. Paulo

No século 21, não é mais possível pensar a produção agrícola dissociada do meio ambiente

A primeira fake news produzida no Brasil foi, provavelmente, o trecho da carta de Pero Vaz de Caminha do qual se extraiu a máxima “em se plantando tudo dá”. Na verdade, um estudo do economista Eliseu Alves mostrou, no fim da década de 1960, que o principal problema da agricultura brasileira era a ausência de técnicas adaptadas às nossas condições: na maior parte do território brasileiro a terra é ruim, e o clima tropical não ajuda.

A solução encontrada foi enviar nossos agrônomos às principais universidades do mundo para “inventar” um jeito de plantar em solo ruim e clima tropical. “Formar técnicos é como dar tiros de cartucheira, um grão de chumbo vai atingir a caça”, costumava dizer Alves, citado num artigo do economista Marcos Lisboa. Alves participou da criação da Embrapa e de todas as etapas que transformaram o Brasil – graças a pesquisa e conhecimento – em potência agrícola.

Bolívar Lamounier* - Queremos mesmo ser um país civilizado?

O Estado de S. Paulo

Aqui o verbo cabível é querer, pois a democracia é uma construção, um esforço coletivo, um ‘crafting’ político. Querendo já é difícil, não querendo é impossível

Em 2012, o filósofo búlgaro naturalizado francês Tzvetan Todorov publicou um magnífico ensaio intitulado Os inimigos íntimos da democracia (Paris, Editora Lafont), que, infelizmente, não chegou a ser discutido no Brasil.

Seu argumento principal é de que não existe um modelo político capaz de competir em legitimidade mundial com a democracia representativa. Esta sofre ameaças graves, mas internas. De fora para dentro não tem adversários à altura no plano das ideias nem no das armas.

No Brasil, essa linha de argumentação costuma ser recebida com ironia. Primeiro, o próprio regime democrático é contestado como uma cínica forma de dominação, ou como uma engrenagem cuja única finalidade é transferir um naco do erário para ladrões, banqueiros e políticos.

Marcus Pestana - Liberalismo: mercado e individualismo

O liberalismo surge como o conjunto de ideias e teorias que animou a transformação política e econômica que deu lugar ao sistema capitalista e à democracia moderna, a partir da ruptura com o Antigo Regime, a monarquia absoluta de origem divina, os traços feudais remanescentes e o mercantilismo.

A tradição do pensamento liberal está presente nas obras de Locke, Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Adam Smith, Tocqueville, John Stuart Mill, Von Misses, Hayek, Karl Popper e Milton Friedman, entre outros.

Esta trajetória nasceu entrelaçada com as quatro grandes revoluções: Revolução Gloriosa, Revolução Americana, Revolução Industrial e Revolução Francesa. O pensamento conservador, discutido no sábado passado, foi mais uma reação ao que julgavam os excessos do liberalismo na ruptura com o passado, os costumes, as tradições e as instituições. Os conservadores, grosso modo, se identificavam mais com os processos de transformação na Inglaterra e nos EUA, que asseguraram, segundo eles, traços de continuidade, do que com os traços disruptivos da Revolução Francesa. Na Inglaterra, onde nasceu o capitalismo, a monarquia foi mantida até hoje em sua versão parlamentarista constitucional.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Mercado de crédito exige do governo atenção constante

O Globo

Não parece haver risco sistêmico, mas caso Americanas e rolagem de dívidas corporativas despertam preocupação

A conjunção do tombo das Lojas Americanas com o cenário de juros altos e crescimento econômico baixo fez os bancos ficarem mais cautelosos. Não há uma crise de crédito, mas está claro que a situação exige acompanhamento diário, e o Ministério da Fazenda tem dedicado atenção às movimentações no mercado. O secretário executivo da pasta, Gabriel Galípolo, afirmou estar dialogando com interlocutores dos setores produtivo e financeiro, além do Banco Central. A preocupação é o aumento das exigências para a concessão ou renovação de empréstimos, sobretudo para empresas médias e grandes.

Desde o começo do ano, aumentou a demanda por renegociação de dívidas nas empresas especializadas em reestruturação. Até o início de 2024, companhias dos mais diversos setores deverão renegociar pelo menos R$ 260 bilhões em dívidas, segundo levantamento da assessoria financeira Virtus BR. A título de comparação, na crise do governo Dilma Rousseff o montante rolado chegou a quase R$ 500 bilhões. Numa projeção extrema para 2023 feita pela gestora de ativos em crise Starboard, o valor poderia chegar a R$ 700 bilhões. Não é pouco.

Música | Mônica Salmaso - Partido alto (Chico Buarque)

 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Vera Magalhães - Corrida ao STF pode repetir velhos vícios

O Globo

Nada blinda o governante que aponta ungidos para a Corte com base em preferências pessoais de se frustrar

Muito se reclama de politização do Supremo Tribunal Federal (STF), de excesso de ativismo da Corte máxima ou, frequentemente, da mudança de maiorias conforme sopre o vento da política. Esquece-se nessas críticas, repetidas com sinal trocado a cada mudança da guarda do grupo que está no poder, que grande parte desses “defeitos” é decorrência justamente da forma como são feitas as indicações dos ministros.

Com a aproximação da aposentadoria de Ricardo Lewandowski, o jogo de interesses que se impõe à corrida pela cadeira mostra a repetição de antigos vícios que, quando determinam a escolha, levarão, forçosamente, à repetição dos efeitos tão condenados. O presidente Lula está bastante inclinado a indicar para o lugar de Lewandowski — cuja própria nomeação foi creditada, à época, em parte à proximidade com a família do petista — alguém que seja de sua absoluta confiança, cuja fidelidade esteja acima de qualquer suspeita.

Bernardo Mello Franco - A aposta de Dino

O Globo

O assassinato da vereadora Marielle Franco vai completar cinco anos. O caso já passou pelas mãos de cinco delegados e quatro equipes de promotores. Até hoje, ninguém conseguiu responder quem mandou matá-la.

O vaivém das investigações pode indicar falta de interesse em punir os criminosos ou excesso de interesse em acobertá-los. As duas hipóteses depõem contra as autoridades fluminenses.

A Polícia Federal já desvendou um esquema de suborno para atrapalhar a elucidação do crime. Mesmo assim, o Superior Tribunal de Justiça barrou uma tentativa de federalizá-lo.

Ao negar o pedido, a ministra Laurita Vaz criticou a imprensa, sempre ela, e elogiou o “evidente empenho” e o “excelente trabalho” das autoridades locais. Seria interessante saber se ela mantém a mesma opinião quase três anos depois do julgamento de 2020.

Até aqui, a polícia só prendeu dois acusados pela execução do crime: os ex-PMs Ronnie Lessa e Élcio Queiroz. Eles ainda não foram levados a júri e nada disseram sobre os mandantes. Nem sobre o paradeiro da submetralhadora usada na noite de 14 de março de 2018.

Flávia Oliveira - Perto do fim


O Globo

O futuro de vidas preservadas depende de políticas públicas de habitação, saneamento, mobilidade urbana e desenvolvimento

O dicionário define resiliência como a propriedade que corpos — nem todos — apresentam de retornar à forma original depois de submetidos a uma deformação elástica. Há também o sentido figurado de um indivíduo se recobrar sem dificuldade ou, pior, se resignar com a má sorte ou com mudanças, por óbvio, negativas. Leio e penso no desenho animado do Papa-Léguas, em que o Coiote era sistematicamente achatado pela armadilha que montava para aprisionar o desafeto. Reconfigurado, jamais aprendia a lição.

Resiliência é tudo o que vem sendo exigido da natureza e dos humanos afetados pela crise decorrente da exploração vil dos recursos naturais e da violação contumaz do direito dos vulneráveis à vida digna. Paciência é a qualidade que está chegando ao fim para uns e outros. O ponto de inflexão para o Brasil compreender que há limite para tudo pode ter sido a tragédia que se abateu sobre o Litoral Norte de São Paulo entre a noite de sábado e a madrugada do domingo de carnaval.