terça-feira, 29 de julho de 2008

DEU EM O GLOBO


NOVOS VENTOS
Merval Pereira


NOVA YORK. Diante do anúncio de que o próximo presidente dos Estados Unidos terá pela frente um déficit público de U$482 bilhões, tanto o candidato democrata Barack Obama quanto o republicano John McCain voltaram suas críticas e suas preocupações para o campo econômico, abandonando os temas internacionais que deram a Obama destaque especial na percepção do eleitorado depois de sua viagem ao exterior. No centro da discussão, a dependência da gasolina e políticas alternativas que tanto compensariam os custos do atual modelo quanto atenderiam às necessidades de proteção ambiental.


Os Estados Unidos importam aproximadamente 70% do petróleo que consomem, ao custo anual de US$700 bilhões. Da metade da década de 70 até a década de 90, o consumo médio de combustível de todos os veículos existentes nos EUA dobrou, de 6 para 12 km por litro.


Para se ter uma idéia do que isso representa, o preço médio da gasolina nos Estados Unidos ficou nas últimas semanas acima dos US$4 por galão (US$1,06 por litro), mais que o dobro de cinco anos atrás.


A previsão é que, com os preços subindo, cerca de dez milhões de automóveis deixem de circular. Os efeitos já estão sendo sentidos, e são negativos na economia, embora positivos para o meio ambiente. Um estudo do Departamento de Transportes mostra que nos últimos sete meses os americanos rodaram menos 3,7% milhas em maio em relação ao mesmo mês do ano passado.


A queda representa pouco mais do dobro da redução que já havia sido registrada em abril. Em conseqüência, a arrecadação de taxas e impostos para conservação das estradas caiu drasticamente.


As pesquisas mostram que as questões econômicas estão no centro das preocupações dos eleitores e, embora a crise possa ser atribuída ao governo Bush, esse fato não favorece Obama, embora também seja prejudicial a McCain.


O fato é que os eleitores não sentem firmeza em nenhum dos dois candidatos, diante do tamanho da crise econômica. A maneira de enfrentar a questão energética é crucial para a definição do eleitorado, e cada um dos candidatos tenta jogar em cima do outro a culpa pela alta do preço da gasolina.


McCain recentemente divulgou um anúncio na televisão acusando políticos como Obama de serem responsáveis pela alta do preço do petróleo, por não aprovarem a exploração costeira, ao mesmo tempo em que parabenizou o presidente Bush quando o barril do petróleo teve uma queda grande nos últimos dias.


Obama, por sua vez, atribui a políticos como McCain a dependência do petróleo estabelecida por um modelo econômico montado nos últimos 30 anos, tempo em que Obama não estava na política, mas McCain estava.


O assunto é tão delicado para o consumidor americano que, nas primárias, a senadora Hillary Clinton propôs que um imposto sobre a gasolina fosse cortado, pelo menos durante o verão, para baratear seu preço, mais ou menos o que fez no Brasil o presidente Lula ao reduzir a Cide.


Enquanto Obama a acusava de populista, e propunha o aumento de investimentos em energias alternativas - e votou a favor do subsídio do milho para a fabricação do etanol - McCain tem propostas mais amplas, embora discutíveis, como trocar a frota governamental por carros que gastem menos combustível e prêmio de US$300 milhões para quem inventar um carro a bateria.


Mas a base de seu programa de energia é de longo prazo: a reabertura da exploração do petróleo e gás em áreas da costa no país, cujo resultado é bastante improvável. Basta ver que o número de permissão para exploração de poços de petróleo dobrou nos últimos cinco anos sem que houvesse efeito no preço.


E a crítica ao projeto de McCain veio de onde menos se esperava, de um antigo e fiel aliado político dos conservadores, o magnata do petróleo T. Boone Pickens. Os serviços prestados por Pickens aos republicanos são incontáveis, desde o puro financiamento de campanha quanto o apoio financeiro a grupos que atuam a favor dos republicanos.


O episódio mais conhecido aconteceu na eleição de 2004, quando ele financiou com US$3 milhões uma campanha na televisão de veteranos da Guerra do Vietnã contra o candidato democrata John Kerry na campanha de reeleição de Bush, no que foi considerada uma das campanhas difamatórias mais violentas das eleições presidenciais.


O grupo chamado Swift Boat Veterans colocava em dúvida os feitos de Kerry que lhe valeram medalhas e honrarias no Vietnã, e o acusava de ter traído a pátria quando criticou a guerra em campanhas públicas. Pois foi este aliado, e ainda por cima dono de poços de petróleo, quem patrocinou uma campanha pela televisão que custou cerca de US$60 milhões advertindo que de nada adiantará perfurar mais poços de petróleo, pois o que é preciso é reduzir a dependência do petróleo.


Pickens está investindo no Texas US$10 bilhões na construção do que é considerado o maior projeto de energia eólica do mundo, e o governo do Texas já aprovou um programa de linhas de transmissão no valor de US$4,9 bilhões.


Esse "patriotismo" pragmático do magnata Pickens é que pode trazer novos ventos para a economia americana. Assim como ele está trocando o petróleo pelo vento, também a economia americana vai ter que se adaptar aos novos tempos, trocando a poluição e a dependência do petróleo por energias alternativas. Esse é um tema que definitivamente entrou na agenda americana.

RIO: ENTRADA PERMITIDA A CANDIDATOS


Agentes da Força Nacional montam guarda na Favela da Grota. Apsar sa existência de áreas da cidade em que candidatos e eleitores estariam sendo constrangidos, o presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio, Roberto Wider, disse que ainda não há necessidade de tropas federais para garantir o pleito no Estado.

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O CRIME E O VOTO NO RIO
Editorial / O Estado de S. Paulo


Dos 4,5 milhões de cariocas aptos a votar este ano, pelo menos 500 mil, ou 1 em cada 11 eleitores, vivem em áreas controladas por traficantes de drogas ou milícias. Estas são quadrilhas armadas de policiais, bombeiros e agentes penitenciários que começaram vendendo proteção a comerciantes, passaram a taxar os serviços locais do chamado transporte alternativo e a oferecer acesso clandestino a TV a cabo - isso quando não se apossaram pura e simplesmente dos negócios mais lucrativos das “comunidades”, como revendas de antenas parabólicas e botijões de gás. Vistas de início pelas atarantadas autoridades como uma espécie de linha auxiliar no combate ao narcotráfico, as milícias proliferaram a ponto de se estimar que já dominam uma centena de favelas do Rio de Janeiro - e recorrem à brutalidade para controlar também o voto de seus moradores.

Traficantes e milicianos não apenas tratam de pressioná-los, por todos os meios, para que votem nos seus candidatos, mas transformam os seus redutos em currais eleitorais - onde só aqueles podem fazer campanha. Na semana passada, a polícia apreendeu na casa do chefão da Rocinha, Antônio Bomfim Lopes, o Nem, uma ata de reunião que transcreve a sua ordem de “todo o empenho” para o seu candidato a vereador: “Ninguém trabalhando para candidato de fora, não agendar visita, não convidar para eventos.” E a advertência: “Não aceito derrota!!!” O predileto chama-se Luiz Cláudio de Oliveira, codinome Claudinho da Academia, presidente da associação dos moradores da favela e réu em 14 processos penais. Tem o apoio do dirigente do MST José Rainha Júnior, sugerindo uma relação como as que devem ter facilitado a entrada das Farc colombianas no ramo da droga.

Diante da imundície da ficha do aliado de Rainha, a Justiça Eleitoral fluminense poderá impugnar a sua candidatura. Partiu do TRE do Rio, a propósito, o movimento para negar registro a candidatos condenados em primeira instância - o que o TSE vetou por estar em desacordo com a Lei das Inelegibilidades. A Polícia Federal, de seu lado, vai investigar esse e outros casos de coação a eleitores mediante violência, cujos beneficiários também poderão ser removidos da disputa se o Ministério Público confirmar as denúncias. E uma candidata a vereadora, Ingrid Gerolimich, do PT, requereu garantias para pedir votos na Rocinha. Acompanhada de policiais militares de fuzis em punho, andou pela favela que tinha sido aconselhada a evitar. “Foi um ato de protesto por todos os candidatos”, explicou. Nessa linha, o candidato a prefeito Fernando Gabeira sugeriu que todos, em conjunto, a imitassem.

A lei do cão que os delinqüentes vêm impondo ao eleitorado dos seus antros se estendeu, no último sábado, aos repórteres fotográficos de três jornais que acompanhavam uma incursão eleitoral do senador Marcelo Crivella, candidato à prefeitura pelo PRB, pela Vila Cruzeiro, no bairro da Penha. Em dado momento, um bandido armado com um fuzil os obrigou a apagar de suas câmeras as imagens feitas pouco antes no local que mostravam duas figuras escondendo os rostos quando abordadas por Crivella. (Nas redações, as fotos foram recuperadas e publicadas.) O patético, no episódio, foi a reação do governador Sérgio Cabral, que o considerou “sinal de um estado de exceção”, como se a violência tivesse sido cometida por uma autoridade propensa a praticar atos ditatoriais ou como se esperasse que traficantes e milicianos agissem de acordo com os princípios democráticos.

Exceção é o poder público ter algum sucesso diante das máfias que construíram ao longo de décadas de impunidade o proverbial Estado dentro do Estado no Rio de Janeiro, não em pouca medida graças à sua capacidade de se infiltrar nas instituições políticas e no próprio Judiciário. Uma dessas situações excepcionais foi a prisão em flagrante do deputado estadual Natalino Guimarães, do DEM - 12 dias depois de ter sido expulso da Polícia Civil. O seu irmão, vereador Jerominho Guimarães, do PMDB, também ex-policial, está preso desde dezembro. A dupla é acusada de comandar a milícia Liga da Justiça, que age na região de Campo Grande, na zona oeste da cidade. Outro deputado - mais um vindo da polícia - tido como chefe de milícia é o petista Jorge Babu. É fácil imaginar como se elegeram.

DEU EM O GLOBO

DECISÃO INADIÁVEL
Editorial / O Globo

A discussão sobre qual o órgão competente para solicitar ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a formação de uma força-tarefa que assegure a normalidade da campanha no Rio visa tão-somente a garantir a manutenção do rito institucional.

Por manifestação do presidente da Corte, já ficou definido que tal iniciativa cabe ao TRE fluminense, cujo histórico de atos em defesa da lisura de eleições anteriores é fator tranqüilizante. O tribunal do Rio há de seguir o caminho pelo qual passa a convocação de forças federais, que se tornou inevitável em face de agravos do tráfico e das milícias ao processo eleitoral.

É fora de dúvida que constituem uma contrafação do processo eleitoral a existência de candidatos ligados ao crime organizado e o episódio deste fim de semana, no qual repórteres do GLOBO, do "Dia" e do "Jornal do Brasil" foram cercados por traficantes armados quando cobriam uma caminhada do senador Marcelo Crivella (PRB) no Complexo do Alemão. Tal quadro exige respostas imediatas e sólidas das autoridades.

Ausente das áreas subjugadas pelo crime, o Estado se encontra diante de uma encruzilhada: ou assume de vez o papel de guardião da liberdade e dos direitos de todos os cidadãos, para o quê, neste momento específico, precisa recorrer inadiavelmente à proteção de organismos federais, ou, pela leniência, estará abrindo perigosamente o flanco para a quem sabe irreversível investida dos bandidos, desta vez diretamente no curso do processo político. Aliás, como está em curso.

Identificar, impugnar e, se for preciso, punir criminalmente os candidatos vinculados ao tráfico e a grupos paramilitares são um pressuposto da preservação da legitimidade do sistema representativo. Qualquer atitude que não siga este preceito equivalerá a permitir que a eleição consagre representantes de quadrilhas, e não de cidadãos.

A intervenção pontual de uma força-tarefa nas eleições municipais é imperiosa, mas assegurar o exercício da cidadania é um compromisso do poder público que se estende para além do processo eleitoral.

Portanto, que a atual mobilização em defesa da normalidade da campanha seja também o ponto de partida para um movimento maior que vise a evitar que, de cidade partida, o Rio se transforme em cidade feudalizada pelos guetos do crime.

DEU NO JORNAL DO BRASIL

CERCEAMENTO DO CRIME À IMPRENSA
Editorial / Jornal do Brasil


Se ainda restavam dúvidas sobre a coerção eleitoral que permeia quem vive ou mesmo transita por regiões do Rio de Janeiro dominadas por traficantes ou milicianos, o episódio de sábado na Vila Cruzeiro, na Penha – em que jornalistas foram proibidos de fotografar a visita do candidato à prefeitura Marcelo Crivella (PRB) – escancarou a urgência de uma operação conjunta em prol do direito de ir e vir, sobretudo em zonas deflagradas pelo crime.

No mesmo local onde foi capturado há seis anos o repórter Tim Lopes, da TV Globo, para depois ser morto no Complexo do Alemão, equipes do Jornal do Brasil, O Dia e O Globo foram obrigadas, por criminosos, a apagarem as fotos relativas à caminhada do candidato. Sob a mira de um fuzil e ameaças de que se seriam "queimados" (mortos), já que ali era o "mundo do crime", todos os jornalistas presentes obedeceram. As fotos foram recuperadas posteriormente por meio de programa de computador. E, pelo direito à informação, a imprensa cumpriu seu papel.

Nas zonas obscuras de uma cidade dividida, a ausência do Estado não é novidade. Muitos analistas apontam a própria omissão do poder público como causa principal do domínio de traficantes ou milicianos em comunidades. São 600 favelas, além de conjuntos habitacionais e loteamentos irregulares guiados exclusivamente pelas regras impostas pelo crime. O absurdo, além do cerceamento a candidatos não apoiados pelos grupos criminosos, estendeu-se à proibição de a imprensa desempenhar o que lhe é de direito: divulgar o que é de interesse público – neste caso, campanhas eleitorais às vésperas da escolha de um novo prefeito.

Como lembrou o governador Sérgio Cabral, em repúdio à censura aos repórteres, "toda vez que o livre jornalismo é impedido de atuar é sinal de um estado de exceção". Ameaças sofridas pelas equipes, segundo Cabral, reforçam a necessidade da "política de combate do Estado ao crime" e exigem a garantia da segurança dos cidadãos, assim como a do Estado de direito democrático.

Torna-se inadmissível que este conceito perca o significado em zonas comprometidas pelo controle do crime. Conforme alertou em seu ex-blog o prefeito Cesar Maia, as "estarrecedoras limitações à mobilidade política em comunidades do Rio a candidatos ou suas propagandas (que na verdade dão seqüência às próprias limitações impostas pelos traficantes ao direito de ir e vir das pessoas no dia- a-dia) impõem reflexão mais geral sobre direito à mobilidade política-eleitoral". O ocorrido traz à tona a "limitação à mobilidade, uma restrição à democracia, ao acesso equânime à informação, de forma que o eleitor possa tomar a sua decisão".

O caso demanda atenção. Conforme reportagem publicada na edição de ontem do JB, não apenas aspirantes a prefeito ou vereador vêem-se ameaçados pelo crime organizado. Agentes do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), responsáveis pela fiscalização da propaganda política, também enfrentam restrições à sua atuação. Em 21 dias de campanha, foram apenas duas operações em favelas.

Contra a coerção imposta ao poder público e aos eleitores, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o TRE-RJ discutem amanhã medidas para reforçar a segurança de candidatos que disputam as eleições na capital fluminense. Para o presidente do TSE, Carlos Ayres Britto, impedimentos ao trabalho da imprensa e ao voto livre ferem a democracia. A exemplo da Polícia Federal, que já investiga quem são os candidatos da milícia e do tráfico, decisões sobre forças-tarefas eleitorais cabem ao TRE-RJ, conforme enfatizou Ayres Britto.

São medidas inadiáveis para que se investigue a promiscuidade entre crime e política, como para a retomada do direito de circular em espaços públicos – seja na favela ou no asfalto.

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS


QUANDO A JUSTIÇA ESTÁ AQUÉM DA CIRCUNSTÂNCIA
José de Souza Martins*

Nosso familismo hipócrita e a incompetente tutela do Estado maculam os 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente


SÃO PAULO - Um juiz de Fernandópolis (SP), apoiado no Estatuto da Criança e do Adolescente, multou em três salários mínimos a mãe pobre e sozinha de um jovem de 17 anos pelas faltas do filho na escola, num quadro grave de rendimento escolar baixo, comportamento desrespeitoso, reincidência na condução de moto sem habilitação. No dia 17, em Boituva (SP), a mãe de um jovem de 20 anos conseguiu, por meio de insistentes cartas ao Superior Tribunal de Justiça, um habeas-corpus para o filho, viciado em drogas, que ficou preso durante quatro meses, acusado por outro viciado de ter se apropriado de R$ 10 - habeas-corpus que fora negado pela Justiça local e pelo Tribunal de Justiça. Justiça formalista e cara.

No mesmo mês em que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, chega aos 18 anos, essas notícias desalentadoras sugerem quanto carecemos de uma corajosa postura crítica em relação a rígidas concepções da lei, e dessa lei em particular, interpretada por muitos à Pôncio Pilatos. Como se a interpretação das leis relativas às questões sociais não devesse interagir com a circunstância das ocorrências e a complexa teia de fatores de problemas, o que inclui as próprias instituições.

O estatuto ainda surpreende porque começa, no fim das contas, reconhecendo que criança também é gente, o que se supunha fossem favas contadas na nossa religiosidade e na nossa moral familistas. A lei foi, em boa parte, resposta à proliferação de indicações de exploração, violência e abuso, além do abandono, contra crianças, no interior da própria família e fora dela. A lei e sua aplicação foram mostrando quanto havia e há de hipocrisia nesse familismo.

A crise da família tem raízes históricas e é nelas que devemos buscar os fatores primários de uma transformação social que penaliza em primeiro lugar os imaturos, mas penaliza, também, a mulher. Se tínhamos ordem no escravismo, a nova sociedade de pessoas teoricamente livres só aos poucos encontrou seu eixo ordenador e se firmou na liberdade em boa parte fictícia que acobertou relações de dependência pessoal, centradas na família e no lugar subalterno da mulher. A mãe de família tornou-se a figura mítica da sociedade, exaltada nas políticas oficiais e nas celebrações cívicas. Pouco se falou de sua servidão disfarçada nas prendas domésticas. Durante as sete primeiras décadas republicanas, a "mãe de família" assegurou a procriação extensa de filhos que o mercado de trabalho reclamava, num país que "importava gente" para suprir as carências da lavoura e da indústria. Assegurou, também, a educação das novas gerações no recinto da autoridade materna, que com amor temperava as durezas da cultura patriarcal remanescente na figura do pai. Afago e relho se combinavam para indicar às crianças e aos jovens quem mandava e quem obedecia.

Essa era começou a declinar na segunda metade dos anos 60. De um lado, porque diminuiu o tamanho da família. O devotamento da mulher exclusivamente ao lar e à criação dos filhos foi relativizado. Muitas trabalhadoras, nos anos 40 e 50, planejavam a vida reprodutiva e as responsabilidades maternas com o intervalo de uma década, após o casamento, no trabalho fora de casa, norma que substituíra o padrão do trabalho externo da moça só até o casamento. De outro lado, porque o chamado arrocho salarial, dos anos 60, rapidamente obrigou um número maior e crescente de mulheres a entrar no mercado de trabalho para completar os meios da família. Foi um ganho para a mulher, sem dúvida, que por meio do trabalho fora de casa passasse a ser assimilada por relações contratuais de trabalho, opostas à da exploração doméstica.

Mas nem por isso foi liberada das obrigações da casa, condenada à dupla jornada de trabalho. Diferente do que aconteceu em outros países, em que equipamentos que modernizaram o trabalho doméstico e uma rede de serviços substitutivos desse trabalho, inclusive na educação dos filhos, asseguraram à mulher a independência que as mudanças econômicas e sociais possibilitavam e até impunham. Aqui, se houve algum progresso técnico na cozinha e na lavanderia para uma parte das famílias, foi pobre e precário o avanço dos serviços de lavanderia, creche, escola. Embora a Lei de Diretrizes e Bases da Educação tenha estabelecido a obrigatoriedade da escola em tempo integral, com prazo certo para implantação, até agora isso não aconteceu. O que teria sido uma providência de emancipação da mulher e de substancial melhora e modernização da educação. Sobretudo, salvaria milhares de imaturos do abandono, que só se dá a ver em casos excepcionais.

A escola em tempo integral, na perspectiva humanista da escola imaginada por Anísio Teixeira e por Darcy Ribeiro, teria suprido as carências e a decorrente violência que tornaram necessário o ECA para nos imaturos reconhecer direitos de adultos, quando teria sido preferível um estatuto realista que lhes assegurasse o direito à infância e o direito à juventude.

Punir a mãe de Fernandópolis, mãe sozinha, pobre, abatida e impotente em face da insubordinação de um moleque de 17 de anos, para por esse meio atingi-lo e educá-lo, é expediente frágil e, provavelmente, inócuo.

O caso mostra claramente como o ECA foi concebido em nome de uma sociedade restrita, a dos imunes às crises da sociedade e da família. Estabelece como meio para solucionar casos como o de Fernandópolis forçar a ficção da família típico-ideal onde ela não existe e em quem está dela privado. O insubmisso de Fernandópolis o é não por falta de mãe, mas por falta de pai. Na mãe, a Justiça puniu o pai. A ausência desse pai, é o que dá a entender o estatuto, deveria ter sido suprida pela própria tutela do Estado, acolitando a mãe e suprindo-a com meios e instrumentos substitutivos do pai ausente. Foi ela, portanto, punida duas vezes: na privação da justiça de que careceu na educação do filho; na injustiça de que não precisava, decorrente da auto-indulgência das instituições incumbidas de assegurar ao adolescente o que não teve.

*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A sociabilidade do homem simples (Contexto)

segunda-feira, 28 de julho de 2008

O QUE PENSA A MÍDIA
EDITORIAIS DOS PRINCIPAIS JORNAIS DO BRASIL
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1040&portal=

DEU NO JORNAL DO BRASIL


PÃO E CIRCOS
Wilson Figueiredo
Jornalista


Que não foi Lula quem fez do Brasil o que se vê, não resta dúvida. Mas o resto é com ele mesmo. Já há públicos para todos os espetáculos nos quais o presidente da companhia tanto é empresário, quanto faz o papel do artista em caso de necessidade, doença ou impedimento. Depois de emocionar principalmente os que pela primeira vez foram ao circo ver os saltos presidenciais de um trapézio para outro, sem a rede de segurança embaixo, Lula entrou na jaula para se defrontar com as feras nacionais. Foi uma revelação. Partiu de chicote na mão ao encontro do mensalão, de cuja existência nem suspeitara, apresentado pela oposição com a pompa das comissões parlamentares de inquérito e as circunstâncias dos grandes golpes.

O presidente não demorou a esclarecer que eram costumes antigos de que a memória recente não podia saber. A indireta acertou o peito oposicionista. Nada de novo, como lembraria Salomão. A platéia caiu em si, mas se segurou bem na arquibancada. Enquanto por um lado o governo, inspirado na máxima da velha Roma, distribuía pão, por outro a oposição cuidou de montar o circo para o povão. O fato foi que Lula & companhia colecionaram aplausos sob a forma de pesquisas que ressaltaram a popularidade presidencial em alta e, dadas as condições, preocupante. Estávamos no fim do primeiro mandato. O Ibope, traduzido para o dialeto político, dizia que os cidadãos queriam mais espetáculos e, portanto, faziam questão de Lula por mais uma temporada. O novo contrato de prestação de serviço foi aprovado sem maiores dificuldades. Tinha precedente ilustre.

Mas a repetição já não teve, por exemplo, o globo da morte. O segundo contrato (ou mandato, com o preferem os mais exigentes) não acrescentou novidade, nem teve feras dignas de adjetivos fortes. Circo e política esgotaram seus truques e se limitam a repetir o repertório que data do tempo dos nossos avós. Quem prefere chorar é o eleitor. A novidade desta temporada ia ser o veto aos candidatos com antecedentes perfeitamente dispensáveis ao exercício dos mandatos de prefeito e vereador, mas bastou anunciar a providência elementar de limpeza urbana para se fazer ouvir o apelo em defesa do direito do candidato ficha suja a se explicar, depois de eleito (se não for, estará dispensado, e, se for, também). O coro da hipocrisia nacional saiu em defesa da moral relativa. O candidato de ficha suja ficou para a próxima eleição. A que vem por aí foi ressalvada como a última grande exibição dos que sujaram o currículo com grandes ou pequenos furtos (não é questão de tamanho).

Feliz ou infelizmente, depende do ponto de vista, era tarde quando se verificou que só depois de interessar o público se descobriu que, sem os artistas, não haveria espetáculo. Os áulicos, outrora chamados de amarra-cachorro, levantaram a lebre: já era hora de assinar o contrato para a terceira temporada, e não pode ser mediante simples aditamento. Outro mandato, o terceiro, cabe numa cláusula do contrato atual. Iam bem as sondagens aqui e ali, principalmente ali, na arquibancada onde se localiza a opinião pública.

Quem não gostou foi o próprio empresário Luiz Inácio Lula da Silva, cansado de substituir artistas que caem doente ou cuidam de seus interesses, tanto no trapézio (com rede embaixo) quanto na jaula ou no globo da morte. Declarou-se cansado de turnês e anunciou uma temporada longe do picadeiro, para voltar quatro anos depois, dependendo da situação nacional. Estava a questão circense nesse ponto, quando deu na telha de Lula convocar uma reunião dos seus para inverter a ordem dos fatores sem alterar o produto: primeiro a reforma do regulamento, depois a eleição. Ou seja, a reforma da companhia deve preceder a temporada de espetáculos, com a Polícia Federal programada para editar cenas cinematográficas de algemas cujo uso deixou de ser privilégio de quem não tem onde cair morto. Certa confusão pode ser útil à passagem da reforma política à frente da sucessão presidencial. A conferir.

DEU EM O GLOBO


TSE ABRE DEBATE SOBRE FORÇA-TAREFA PARA O RIO
Adriana Vasconcelos e Maria Lima

Jungmann apresenta hoje a Ayres Britto proposta de convocação da PF e até do Exército para conter violência e intimidação


BRASÍLIA. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Carlos Ayres Britto, discutirá hoje com o presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara, deputado Raul Jungmann (PPS-PE), a proposta de criação de uma força-tarefa - com o envolvimento da Polícia Federal e, se necessário, até do Exército - para identificar e punir os candidatos às eleições do Rio vinculados a milícias e traficantes, que estariam estimulando ou, no mínimo, sendo coniventes com as ameaças dirigidas a seus adversários e, agora, também a jornalistas neste início de campanha eleitoral.

O ministro da Justiça, Tarso Genro, antecipou ontem que a estrutura do ministério está à disposição do TSE, mas ressaltou que a PF só poderá ser acionada para integrar qualquer ação no Rio se houver um pedido formal do governo do estado.

Jungmann: cidade caminha para estado de exceção

Ayres Britto condenou a intimidação dos jornalistas por representantes do tráfico na Vila Cruzeiro, e disse que discutirá com Jungmann, hoje, a proposta de que o Tribunal lidere um movimento de reação ao crime organizado durante a campanha, no Rio.

- O Rio está caminhando para um estado de exceção, onde o poder que vai emergir das urnas é conivente ou condicionado ao crime organizado. Por isso é fundamental que o TSE comande uma ação, acione a Polícia Federal e até o Exército, se necessário, para identificar e punir os candidatos das milícias e do tráfico. Isso foi feito na Colômbia. A situação exige uma mobilização das três esferas de poder no estado e um pacto de todos os políticos que atuam lá para resguardar os direitos e liberdade dos cidadãos do Rio - propõe Jungmann.

O deputado deverá cobrar providências, não só do TSE, como também do Ministério Público Federal para que sejam tomadas medidas efetivas que assegurem a todos os candidatos a vereador e prefeito do Rio o direito de fazer campanha no município, sem sofrer pressão ou ameaças de milícias ou traficantes.

No encontro que terá hoje com o ministro Ayres Britto e o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, Jungmann pedirá garantias ainda para que não se repitam episódios como o registrado no último sábado na Vila Cruzeiro, no Complexo do Alemão, onde repórteres do GLOBO, "Jornal do Brasil" e "O Dia" que acompanhavam uma caminhada do senador Marcelo Crivella (PRB), candidato a prefeito, foram cercados por traficantes armados com fuzis e os fotógrafos se viram obrigados a apagar todas as fotos registradas na cobertura.

Ayres Britto preferiu ontem não antecipar sua posição sobre a proposta de Jungmann para que o TSE comande uma força-tarefa no Rio para resguardar os direitos e liberdades dos cidadãos do estado. O ministro condenou, porém, a violência sofrida pelos jornalistas no último sábado.

- Lamento profundamente o ocorrido, que outra coisa não significa que uma absurda ausência do Estado e a conseqüente ocupação do espaço por um segmento fora da lei. No caso, abatendo de morte dois excelsos valores constitucionais: primeiro, a liberdade do exercício da profissão de jornalista e, segundo, a liberdade de um candidato de fazer sua campanha eleitoral, com o que a liberdade de imprensa e a democracia representativa resultam ultrajadas - disse o ministro.

Embora também tenha considerado lamentável o episódio ocorrido com os jornalistas que acompanhavam o senador Crivella, Tarso Genro limitou-se a declarar, por intermédio de sua assessoria, que o Ministério da Justiça tem limites para atuar nesse caso.

- O Ministério da Justiça e todas as suas áreas estão à disposição do TSE e do estado, mas não podemos tomar qualquer iniciativa, porque seria inconstitucional - disse.

"É preciso ter postura rigorosa", diz Marco Aurélio

O presidente nacional da OAB, Cezar Brito, apóia a criação da força-tarefa para, como disse, dar um basta à ausência do Estado e a conivência com o crime organizado nos morros do Rio de Janeiro, e garantir que a comunidade possa exercer a soberania democrática de escolher seus representantes.

- O Estado brasileiro não pode permitir que a comunidade desses morros, que já é vitima desse tipo de organização criminosa, também fique ausente da decisão política, como se disséssemos que a democracia não pode ser exercida em determinados espaços do Brasil. É como se houvesse um pacto oculto e cruel do Estado brasileiro com o crime organizado do tipo: eu não me faço presente na sua área e em troca a população local não dá problemas ao Estado porque não participa da escolha democrática - criticou Cezar Brito.

Para Marco Aurélio Mello, ex-presidente do TSE e ministro do Supremo Tribunal Federal, é preciso uma ação rigorosa do Estado brasileiro para coibir esse tipo de intimidação do crime organizado no Rio de Janeiro.

- O tráfico hoje não se avexa de até mesmo intimidar a imprensa. É um alerta para as autoridades constituídas de que não dá mais para tergiversar e ficar nos paliativos. É preciso ter uma postura rigorosa e dizer que não estamos vivendo sob a lei do mais forte naquele local, mas num estado de direito. O Estado está devendo á população uma resposta - observou.

Sobre a proibição da entrada de jornalistas e candidatos nas favelas e morros, Marco Aurélio disse que é uma situação terrível, que não pode ser suportada em pleno século XXI.

- Esses currais do tráfico no Rio colocam sob suspeita os votos da comunidade, que vai votar intimidada. Se perguntarem se isso é consentâneo com o século XXI, com certeza a resposta é negativa. Todos os órgãos envolvidos têm de buscar com seriedade uma correção de rumos.

DEU EM O GLOBO


VIOLÊNCIA VIRA O TEMA PRINCIPAL DA CAMPANHA
João Pimentel


Ameaças e intimidações fazem com que a segurança pública ocupe grande parte do discurso de candidatos a prefeito

Uma semana marcada por incidentes com candidatos em campanha em favelas dominadas por traficantes fez com que a violência no Rio passasse a ser o principal assunto da disputa pela prefeitura. Após a ameaça de traficantes da Vila Cruzeiro, na Penha, sábado, a jornalistas que acompanhavam a caminhada do candidato Marcello Crivella (PRB), o candidato Fernando Gabeira (PV, PSDB e PPS), por exemplo, tirou a tarde de ontem para uma reunião com seus colaboradores, na qual pretendia avaliar os casos recentes e aprofundar seu discurso sobre o tema.
- Não podemos aceitar restrições. A violência se tornou sim o tema mais importante das eleições do Rio. Na ditadura militar, os direitos humanos eram desrespeitados pelo governo. Hoje, são desrespeitados pelo crime organizado. É necessária a saída desses grupos armados e a presença e permanência da polícia nas comunidades.
Gabeira critica declarações de Marcello Crivella
Gabeira, que no início da tarde de ontem fez campanha entre a Praia do Pepê e o Quebra-Mar, na Barra, defendeu uma reforma política urgente no Rio:
- Está difícil, mas de alguma forma essa reforma está sendo feita na porrada, como no caso de Jerominho, Natalino - disse, em referência ao vereador Jerônimo Guimarães, do PMDB, e seu irmão, o deputado estadual Natalino Guimarães, do DEM, presos sob acusação de comandar uma milícia na Zona Oeste.

Classificando de "inaceitável e escandaloso" o incidente, Eduardo Paes, candidato do PMDB, partido do governador Sérgio Cabral, disse que seguirá a campanha normalmente.

- Imagina ao que essa população não é submetida todo dia. Isso (a ameaça aos jornalistas) mostra mais uma vez que é fundamental a autonomia do Estado sobre essas áreas. Isso coloca em risco a própria democracia. Não dá para ceder. Vou continuar entrando em qualquer lugar o tempo todo. Não aviso miliciano ou traficante. Não vou me subjugar à bandidagem.
Um "pacto democrático contra os feudos eleitorais" é a proposta que Chico Alencar (PSOL) apresentará aos candidatos majoritários hoje. Sua idéia é que todos assinem um compromisso de sustar no TRE os registros dos candidatos a vereador que, comprovadamente, estejam envolvidos com criminosos.

- Denunciamos esses poderes paralelos e despóticos que "adotam" candidaturas e criam currais onde só elas podem transitar. A sociedade não deve aceitar os expedientes espúrios da aliança com a truculência e do crime de captação do sufrágio. Queremos que as polícias investiguem a promiscuidade entre banditismo e campanhas.
Já Paulo Ramos (PDT) classificou de "armação" o incidente ocorrido sábado.
- Isso é armação para justificar o modelo de segurança pública do atual governo, que massacra, exclui e criminaliza os pobres. Não vou com grandes aparatos por respeito às comunidades. São sempre os mesmos (candidatos) que criam os factóides por não ter receptividade e quererem mais repercussão.
Jandira diz que só repressão não combate violência

Para a candidata do PCdoB, Jandira Feghali, o prefeito do Rio não pode fazer de conta que não está vendo a situação de violência. Ela diz que a política de segurança é um tripé, formado por inteligência, repressão e prevenção, e que só um dos lados está funcionando, o do confronto:

- O prefeito não pode dizer simplesmente que a polícia não é sua. A prefeitura precisa ter políticas públicas inclusivas, dar oportunidades aos jovens e a suas famílias, ter uma Guarda Municipal com foco na cidadania. E a prevenção é um lado desse tripé de grande responsabilidade da prefeitura.

Criticando a falta de iluminação nas ruas do Rio, a candidata defendeu a necessidade de melhorar a ordem urbana:

- A cidade está escura e precisamos ocupar o espaço público. O carioca não tem medo de praça cheia, tem medo de praça vazia.

Dois dos incidentes envolvendo política e segurança ocorridos semana passada se passaram na Rocinha. A candidata a vereadora do PT Ingrid Geromilich precisou pedir auxílio da Secretaria de Segurança para fazer campanha na região. Depois, a polícia encontrou uma ata de reunião do chefe do tráfico da favela, Antônio Bomfim Lopes, o Nem, em que ele impõe apoio a um único candidato, embora sem citar nome. O presidente da associação de moradores, Luiz Cláudio de Oliveira, o Claudinho da Academia, concorre a uma vaga na Câmara pelo PSDC, e diz ter apoio de "cem líderes" locais.

DEU NO VALOR ECONÔMICO


NOSSO QUINHÃO DE RUINDADES
Fábio Wanderley Reis


O noticiário do período recente, em particular o relativo à operação Satiagraha da Polícia Federal, tem exibido de modo especialmente agudo várias faces sombrias da vida brasileira e os grandes desafios correspondentes. A desigualdade social e suas ramificações no plano da cultura; a penetração das instituições em geral pelas consequências negativas da desigualdade, incluídos os órgãos da aparelhagem política do Estado e mesmo os da Justiça (note-se o impacto, registrado por todos, do fato de que se prendam banqueiros ou os "homens de qualidade" de sempre); a questão das reformas político-institucionais em geral: em primeiro lugar, serão realmente necessárias ou, como querem alguns, estaremos apenas, parafraseando Drummond, provando, entre ruindades, as que nos foram legadas - vale dizer, experimentando, como todo mundo em diferentes momentos, nosso quinhão de dificuldades no processo de construção institucional? Em segundo lugar, na suposição de que reformas sejam necessárias, ou de que seja necessário agir, como obter reformas institucionais efetivas? Será possível alcançá-las com "meras" mudanças em dispositivos legais ou será preciso antes alguma mudança de sentido "estrutural" e cultural mais profundo?

Reformas, desigualdade e valores culturais

Seja como for, são nítidos os reflexos institucionais gerais da desigualdade e da cultura da desigualdade. É provavelmente irrelevante, por exemplo, a celeuma em torno das "fichas sujas" com relação a um Congresso em que, para começar, um país de educação precária se faz representar, de maneira amplamente predominante, por gente de educação universitária. Quanto à Justiça, cabe assinalar o que Beatriz Magaloni (citada em M. Taylor, "Judging Policy", 2008) apontou há pouco quanto à operação da Justiça na América Latina em geral, a saber, a tendência ao divórcio entre a (eficiente) dimensão "madisoniana" relativa ao equilíbrio e ao controle recíproco entre os poderes, por um lado, e, por outro, a (deficiente) dimensão "hobbesiana" relativa à garantia de direitos básicos na vida cotidiana dos cidadãos. No caso brasileiro, é patente que aos integrantes do "povão" (para usar a distinção a que recorri na semana passada) se abrem duas possibilidades nas relações com a Justiça: ou a de aparecerem como vítimas ou autores e réus de crimes violentos ou, quando se trata da Justiça atenta aos direitos civis do cidadão, a de surgirem como pano de fundo ou como meros figurantes, como acontece com os "nativos" em certos filmes americanos, a contrastar com a relevância e a qualidade de gente real dos protagonistas hollywoodianos - o equivalente da parcela dos brasileiros assimilável à condição de "povo" soberano. Já quanto aos meios de comunicação, por seu turno, apesar da abundância relativa do noticiário negativo que envolve todas as categorias sociais, é bem claro que a cobertura ampla e de repercussão vai também para os eventos protagonizados pelos "mais iguais". Naturalmente, o que vimos agora deixa transparecer o lado transformador disso justamente ao destacar os "mais iguais" (os homens de qualidade) como delinquentes presumíveis às voltas com a Justiça. Mas não é de estranhar que, como Maria Inês Nassif assinalava no Valor de 24 de julho e como costuma repetir-se, o foco inicial em Daniel Dantas como acusado tenha logo se deslocado para a própria Polícia Federal, o Ministério Público e o Governo, em consonância com o Judiciário como eficiente contrapeso madisoniano.

É preciso reconhecer que o aspecto cultural da realidade que vivemos não mudará sem mudança profunda no substrato de desigualdade material e intelectual, além do componente racial do legado escravista. Apesar de indícios preciosos da emergência de certa "inclusividade" que torna "incorreta" a face cultural mais odiosamente rombuda da desigualdade, a possibilidade de contemplar a superação mais efetiva do quadro geral negativo, em suas várias dimensões, certamente requer -- além de que se conte com a sorte - uma perspectiva de longo prazo.

Quanto à conexão entre as mudanças que caberia desejar e a ação no plano político, é sem dúvida necessário denunciar, como tenho às vezes salientado, a distorção da postura radical inclinada a rechaçar a ação que busca avanços tópicos em qualquer campo em nome da necessidade de fazer "tudo", ou muito mais. Mas é preciso superar também a passividade a que induziria a perspectiva de "nosso quinhão de ruindades" acima mencionada. Entre os cientistas políticos brasileiros, por exemplo, essa perspectiva tem levado, às vezes, a uma combativa disposição anti-reformas. No entanto, em alguns dos melhores trabalhos de pesquisa relevantes para o problema geral, como os de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, um ânimo que resulta simpático ao anti-reformismo se tem combinado, de modo inconsistente, com resultados em que se revelam justamente os avanços (quanto a problemas como a disciplina do comportamento partidário nas votações do Congresso, ou a dinâmica mais proveitosa no plano da política orçamentária) permitidos por alterações nos mecanismos legais pertinentes, seja ao nível dos dispositivos constitucionais ou de meras resoluções administrativas do próprio Congresso Nacional, por exemplo.

Não é preciso confundir a busca de melhorias e reformas com a torta visão negativa da política como tal. E, além da pressão direta de dispositivos legais apropriados sobre os interesses de atores supostamente guiados por interesses estreitos, cabe contar com algo de maior alcance: a possibilidade de que a alteração gradual das expectativas que tais dispositivos promovam venha talvez a ajudar no processo de amadurecimento de mudanças consistentes e duradouras no plano dos próprios valores e da cultura em sentido pleno.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


ITAMARATY TIRA PRIORIDADE DO SUL
Clóvis Rossi


AO ACEITAR a proposta de acordo apresentada pela direção da OMC, o governo brasileiro jogou fora, numa noite, a política pró-Sul que adotou com vigor nos cinco anos e meio do governo Lula.

Não se trata nem de julgar se essa política era a correta ou se seria melhor a que pregava o contrário (aproximar-se mais e mais do mundo rico). Há bons argumentos em favor de uma e outra linha. O importante, no caso, é a perseverança em uma dada direção ou, em caso de mudança de rumo, uma razão forte o suficiente para ser facilmente compreendida pelo público e os parceiros externos.

Não foi o que ocorreu. O Brasil passou os últimos cinco anos, desde a criação do G20 em 2003, defendendo a tese de que a Rodada Doha era, centralmente, uma questão de liberalizar a agricultura dos países ricos em benefício dos pobres. Nem a competente dialética dos diplomatas brasileiros em geral e, em particular, do chanceler Celso Amorim será capaz de convencer quem quer que seja que houve, na noite de quinta para sexta-feira passadas, concessões dos países ricos que ao menos se aproximassem do defendido há cinco anos.

Qual era o nó agrícola mais saliente nas negociações da semana passada? O volume de subsídios que os EUA dão a seus agricultores. O G20 passou cinco anos defendendo um teto de US$ 13 bilhões. Os EUA ofereceram inicialmente US$ 15 bilhões, rejeitados pelo G20. Aí, surgiu a proposta de Pascal Lamy, o diretor-geral da OMC, de US$ 14,5 bilhões, uma redução microscópica e, ainda assim, o dobro do que vem sendo efetivamente concedido aos agricultores dos EUA nestes tempos de elevados preços de commodities agrícolas.

O Brasil aceitou, o que leva a uma de duas suposições: ou todo o empenho por um teto menor era jogo de cena ou, agora, o rumo da diplomacia mudou para agradar os ricos em vez de solidarizar-se com o Sul. Trocar de linha por uma diferença de US$ 500 milhões não parece uma justificativa convincente.

Pior, no entanto, é a punhalada pelas costas na Argentina. Vejamos: o Brasil estava perfeitamente confortável com o nível de proteção a sua indústria previsto no documento prévio às reuniões da semana passada. Só o rejeitou para defender o Mercosul ou, mais exatamente, a Argentina, que reclamava um grau maior de proteção.

Defender o Mercosul tornou-se um dos principais cavalos de batalha da diplomacia brasileira, como disse à Folha, em Roma, no mês passado, o próprio Lamy. De repente, de novo em uma única noite, o Itamaraty dá as costas ao seu aliado mais importante na região prioritária para a diplomacia brasileira (o Mercosul e a América do Sul) sem que tenha havido qualquer contrapartida significativa dos ricos. Pior: colhe o governo de Cristina Kirchner em seu pior momento interno. A oposição certamente usará a punhalada como sinal de que o governo Kirchner está isolado externamente.

Por fim, debilita outro projeto prioritário, o Ibas (Índia/ Brasil/África do Sul), típica aliança do Sul. Os dois parceiros rejeitaram energicamente a proposta que o Brasil aceitou gostosamente.Se todos esses danos colaterais tivessem ocorrido em troca de ganhos formidáveis no comércio global -que, afinal, é o que domina o jogo diplomático de países, como o Brasil, que não têm força militar ou econômica para outros jogos-, seria fácil de entender. Mas ante resultados tão modestos, fica a impressão de que a diplomacia brasileira quis apenas mostrar-se bem comportada com os ricos. Exatamente o que vinham pedindo os setores políticos e diplomáticos que eram ironizados até então pelo governismo como subservientes ao Norte e preconceituosos com o Sul.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


A QUEM SERVE A GLOBALIZAÇÃO?
Luiz Carlos Bresser-Pereira


Países da América Latina perderam o controle de suas taxas de câmbio e ficaram para trás

NOS ANOS 1990, a globalização era a "bête noire" da esquerda e dos países em desenvolvimento -para muitos significava abertura econômica prematura. Na atual década, deixou de ser bandeira ideológica do neoliberalismo para se transformar no fantasma perseguindo os países ricos que, aos poucos, abandonam o discurso neoliberal e se preparam para levantar mais barreiras protecionistas. Nos EUA, o discurso dos dois candidatos à presidência é protecionista. Na Europa, a rejeição aos imigrantes pobres porque eles pressionam para baixo os salários médios aumenta a cada dia, ao mesmo tempo em que leis contra os imigrantes violando direitos humanos são aprovadas pelo parlamento europeu, como bem demonstraram Ricardo Seitenfus e Deisy Ventura nesta Folha (25.7.08).

Como explicar esse fato? Afinal, a quem serve a globalização? A globalização é a denominação para o estágio atual do capitalismo; é abertura comercial combinada à formação de uma sociedade global. No plano econômico, a globalização significa abertura de todos os mercados: abertura comercial, necessariamente, porque é parte da própria definição de globalização; abertura financeira -dos fluxos de capital-, perfeitamente evitável, já que aumenta a instabilidade financeira mundial ao tirar dos países em desenvolvimento o controle de suas taxas de câmbio.

Nos anos 1990, a globalização contou com o apoio dos países do Norte, que partiam do pressuposto que, na competição global, teriam vantagem. Isso, entretanto, só era verdadeiro em relação à abertura financeira, porque esta, ao impedir os países em desenvolvimento de administrar sua taxa de câmbio, deixava livre a tendência à sobreapreciação da sua taxa de câmbio.

Não era verdade em relação à abertura comercial, porque, desde que os países em desenvolvimento neutralizassem aquela tendência, sua mão-de-obra mais barata lhes garantiria êxito na competição global sem necessidade de proteção.

Para que isso ocorresse o país em desenvolvimento deveria preencher três condições: (1) ser um país de renda média (que já passou pelo estágio da indústria infante), (2) manter o equilíbrio fiscal e (3) contar com uma estratégia de desenvolvimento que implicasse a determinação nacional de neutralizar a tendência à sobreapreciação da taxa de câmbio -uma tendência existente em todos os países em desenvolvimento devido à doença holandesa e à atração que as economias desses países exercem sobre os capitais abundantes e relativamente mal-remunerados do Norte. Os países asiáticos dinâmicos hoje capitaneados pela China satisfizeram essas condições; mantiveram tanto as finanças do Estado quanto do Estado-Nação sadias graças ao estrito controle orçamentário e à administração da taxa de câmbio para mantê-la sempre competitiva -e cresceram muito mais do que os países ricos.

Outra, porém, foi a sorte dos países latino-americanos. Subordinaram-se à ortodoxia convencional; aceitaram, além da globalização comercial, a financeira; passaram a receber capitais de que não têm necessidade; perderam o controle de suas taxas de câmbio; deixaram-se se apreciar até a beira da crise de balanço de pagamentos; e ficaram para trás. A globalização, que lhes poderia ter sido tão favorável, afinal não os beneficiou, porque, embora tivessem as condições para competir mundialmente, suas elites não têm a autonomia para poder aproveitar a oportunidade.


LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, 73, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

domingo, 27 de julho de 2008

O QUE PENSA A MÍDIA
EDITORIAIS DOS PRINCIPAIS JORNAIS DO BRASIL
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1039&portal=

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


CLIENTELISMO, PÓ E VOTO
Luiz Carlos Azedo


O “pai” do Bolsa Família e do PAC precisa tomar providências enérgicas para evitar a associação do clientelismo ao banditismo nas áreas onde o governo federal tem intervenção direta

O cientista político Luiz Werneck Viana, professor do Iuperj, em entrevista ao jornal carioca O Globo, foi na bucha: “A cidade está toda feudalizada. Nos setores subalternos, pela milícia, pelo tráfico. No mundo urbano, igualmente está feudalizada. Cada pequeno lugar, cada esquina, onde há possibilidade de uma vida mercantil qualquer”. Referia-se ao Rio de Janeiro, é claro, mas o fenômeno não é isolado. Conexões entre a economia informal e o banditismo, sejam por meio dos traficantes e ou das milícias e “mineiras”, alimentam os indicadores de violência das grandes cidades. O problema existe em São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Salvador e no entorno de Brasília. O impacto na qualidade da política e dos políticos já é visível a olho nu. A topografia e o dinamismo econômico de cada região metropolitana se encarregam das diferenças, mas o rumo é o mesmo: o carioca.

Banditismo

Werneck denuncia que o Rio de Janeiro foi dividido em feudos eleitorais, tanto nas áreas urbanas quanto nas comunidades carentes. “A orla marítima é um exemplo. A cidade está toda ela repartida em territórios, e cada território entregue a donatários. A diferença é que, nas favelas, o território não é livre. Na praia e em outras áreas urbanas, os candidatos podem circular”, explica. Segundo ele, por causa disso, o voto de opinião — que sempre foi uma das características das eleições no Rio de Janeiro — está sendo sufocado pelo voto de clientela, que hoje dita as regras das eleições dos vereadores da cidade. Resultado: 10% dos integrantes da Câmara do Rio estão envolvidos com o tráfico, as milícias ou a contravenção.

Nas favelas, a coisa é mais grave. Os currais eleitorais estão sendo controlados pelos traficantes, que escolhem seus representantes e pressionam comunidades inteiras a votarem nos “candidatos do pó”. Mesmo os candidatos majoritários, que antes circulavam nessas áreas, agora estão sendo impedidos. É a falência do Estado naquilo que poderia gerar a energia capaz de fazê-lo reagir: o voto popular em áreas controladas pelo tráfico. As milícias também passaram a lançar candidatos e financiá-los. Na semana passada, um deputado estadual fluminense foi preso em flagrante quando a Polícia Federal “estourou” o quartel-general de uma milícia carioca. Houve até troca de tiros.

Clientelismo


No vale-tudo para influenciar o resultado das eleições municipais, o governo federal ampliou a escala do clientelismo nas comunidades carentes. A prática era sobretudo municipal e também estadual, mas agora virou federal. Graças ao programa Bolsa Família e às obras de saneamento e urbanização do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O governo federal acaba de anunciar que 1,4 milhão de famílias do Bolsa Família irão receber em suas casas uma carta do governo federal comunicando que poderão disputar uma vaga num plano de qualificação profissional na área da construção civil. Estão localizadas em cerca de 280 municípios, de 20 regiões metropolitanas do país.

Essa é uma boa notícia, mas tem propósitos nitidamente eleitorais. E que podem ter conseqüências lastimáveis. O presidente da Comissão de Segurança da Câmara, deputado Raul Jungmann (PPS-PE), denuncia que chefes do tráfico se associaram a líderes políticos da Rocinha e do Complexo do Alemão para controlar a contratação de peões nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) nas favelas. Segundo Jungmann, o grupo se associou para pressionar eleitores a votar em candidatos indicados pelos chefes locais. “É chocante. Meio milhão de pessoas sem poder votar livremente. É a ditadura do narcotráfico em plena democracia”, dispara.

Ninguém pode responsabilizar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva por esse tipo de parceria, mas o “pai” do Bolsa Familia e do PAC precisa tomar providências enérgicas para evitar a associação do clientelismo ao banditismo nas áreas onde o governo federal tem intervenção direta. Já basta o lamentável episódio do Morro da Providência, no centro do Rio, onde o Exército guarnecia as obras de um projeto eleitoreiro do governo federal — “Cimento Social — para favorecer o senador Marcelo Crivella (PRB), candidato a prefeito do Rio que Lula apóia por baixo dos panos. Um tenente entregou a traficantes rivais três jovens que o haviam desacatado, inconformado com o fato de seu comandante soltá-los. Os três rapazes foram executados. --> --

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS


A PONTE QUE RESTA ENTRE MORRO E ASFALTO
ENTREVISTA: Zuenir Ventura


No Rio de parlamentares milicianos, traficantes sádicos e polícia sangrenta, a salvação virá pela cultura popular. Já aconteceu uma vez, diz o escritor e jornalista


Pedro Doria - O Estado de S.Paulo

Durante mais de um século, o carioca do asfalto olhou para cima e secretamente fantasiou a remoção da pobreza nos altos e nas encostas. O Morro do Castelo foi abaixo por volta de 1900. Nos anos 60 Carlos Lacerda removeu favelas. Mesmo quando algum governo, como o de Leonel Brizola, tratou com simpatia o morro, não procurou integrá-lo à cidade. Brizola abandonou-o ao tráfico que nascia. A rejeição social se instalou, como se o morro fosse um corpo estranho, e não parte do todo.


Zuenir Ventura lançou o livro Cidade Partida em 1994, fruto de um olhar atento sobre as favelas. Desde então, tudo piorou. O carioca das classes médias persiste, intimamente, no sonho que o jornalista chama de "solução final". Sonha com o Exército que sobe, a polícia que atira e o confronto que consumará o fim. "Não é por maldade ou patologia", diz Zuenir. "É por medo e insegurança."


Foi num dos períodos de maior insegurança na cidade, quando tudo parecia perdido em princípios do século 20, que ali pelo centro, entre os marginais, nasceu o samba. O samba integrou morro e asfalto. Hoje, jovens de classe média vencem medos e sobem os morros em busca do funk. Não querem drogas, querem a dança. Numa cidade cada vez mais agressiva, uma "verdadeira necrópole", Zuenir vê na cultura o último fio de esperança, o traço que ainda pode unir a cidade partida. Mas não há solução a curto prazo, como argumenta nesta entrevista exclusiva ao Aliás.

Políticos presos como chefes de milícias, traficantes comandando currais eleitorais, polícia corrupta, medo na população. Ainda que vários fatores possam sugerir que o Rio não tem solução, Zuenir aposta o contrário, apoiado numa premissa básica: "O povo não é suicida".

O que mudou desde a publicação de ?Cidade Partida??

Passei o ano de 1993 visitando constantemente Vigário Geral. Naquela época, o líder do tráfico era um rapaz chamado Flávio Negão. Ele havia sido criado lá, tinha uma relação afetuosa com a comunidade. As senhoras davam bronca nele. Ele se preocupava com melhorias, asfalto, iluminação. As instituições eram respeitadas. Ninguém tocava em jornalista, por exemplo. Na última vez em que conversamos ele me mostrou um fuzil que tinha adquirido. Era uma arma que podia atingir helicópteros. "Mas você vai usar isso?", perguntei. "Não, Deus me livre, se usar a polícia invade o morro no dia seguinte." Ele gostava de dizer que seus soldados não cheiravam nem fumavam, tinha a consciência de que comandava um comércio e não queria guerra com a polícia pois atrapalharia os negócios. Lá conheci o Elias Maluco, que comandou o assassinato de Tim Lopes. Era um dos soldados menores do Negão. Essa é a mudança. Os jovens traficantes, gerações depois, são viciados e não têm nenhuma responsabilidade. Já foram tantas invasões das várias facções nos diversos morros que não sobrou ligação afetiva. São loucos. Cheiram e saem matando com crueldade inominável. O traficante Robin Hood acabou. Quinze anos atrás, eu passava a noite numa favela. Não dá mais.

Foi só o tráfico que mudou?

A polícia continua com a mesma política de tratar a situação como guerra. Quando governou o Rio, Marcello Alencar criou um instrumento chamado "gratificação faroeste", que premiava com dinheiro os policiais que matavam mais. A gratificação caiu, mas o espírito persiste. A atual cúpula de segurança parece honesta. Mas ela acredita que deve subir o morro dando tiros e alega que os danos colaterais - a morte de crianças e inocentes - fazem parte da guerra. Quando você começa a acreditar que a polícia serve não para evitar a morte, mas para matar, esse é o resultado. O combate às drogas, hoje, mata mais do que as próprias drogas, uma incoerência. É claro que é preciso enfrentar. Mas deve se fazer isso com informação. Se tem gente inocente morrendo, está errado. O Elias Maluco foi preso sem que a polícia desse um tiro, porque houve apoio da inteligência. A atual polícia sai matando. É ela que decide quem é bandido, sem julgamento, sem nada. A última ação de grande repercussão foi a invasão do Morro do Alemão, no ano passado, que terminou com 19 mortos. Fui ver o resultado depois de a polícia sair. Havia marcas de bala para todo lado, mas o chefe do tráfico continuava no cume do morro. Se escondeu uns dias, voltou. Segundo as pesquisas, 90% da sociedade apoiou a iniciativa policial. É porque há a ilusão de que o enfrentamento funciona. Não muda nada. Dias depois, estava tudo igual.

A polícia do Rio é a que mais mata. Não é também a que mais morre?

A polícia do Rio mata quatro vezes mais do que a dos Estados Unidos. E morre muito. Morrem, nesses confrontos, mais de cem pessoas por mês. E não tem eficácia. Mata e morre sem nenhum resultado. O Rio está se transformando numa necrópole povoada por vítimas mortais. E a vocação do Rio não é esta - é a festa, a alegria, o congraçamento.

Qual é a solução?


Nos anos 80, durante o primeiro governo de Leonel Brizola, até por causa dos abusos da ditadura ele implantou um populismo de respeito aos direitos humanos. A polícia não subia em favela. As coisas, no Rio, acabam sendo oito ou oitenta. O que aconteceu? Os traficantes acharam uma maravilha, ocuparam e consolidaram seu território. Foi um período de total conivência com o crime, que acabou desmoralizando os direitos humanos. Conversei muito sobre isso com o sociólogo Hugo Acero, que foi subsecretário de segurança de Bogotá. Em 1993, a Colômbia tinha um índice de homicídios de 80 para cada 100 mil habitantes. Caiu para 18. Como fizeram? Houve enfrentamento, mas a polícia não pode entrar no domínio do tráfico e depois sair. Tem que continuar. A ocupação não pode ser apenas policial. Tem que levar escola, posto de saúde. No governo Brizola a polícia não subia, mas o Estado também não. Uma vez, vi a cena de um menino de 2 anos que teve desidratação. O traficante chegou e o levou para o hospital. Vai explicar para a mãe do menino que ele é um malfeitor... Esse vácuo do poder público, naquele primeiro momento, foi ocupado pelo tráfico. Hoje, a situação piorou muito.

Essa semana, um deputado estadual foi preso, acusado de comandar uma milícia. Seu irmão, um vereador, está na cadeia desde dezembro. De onde vem a promiscuidade entre política e crime no Rio?

Temos uma cultura de promiscuidade no Rio. Por um lado, ela se manifesta na informalidade carioca. Por outro, é o desrespeito. É uma cidade ilegal na qual todos desobedecemos às leis. Alguns meses atrás, o deputado estadual Álvaro Lins (PMDB), que dirigiu a Polícia Civil no governo de Rosinha Garotinho, foi preso - mas seus colegas na Assembléia Legislativa o soltaram. Agora é a vez do deputado Natalino Guimarães e seu irmão. A filha de um deles já é candidata a vereadora e provavelmente será eleita, porque eles comandam um território cativo, em Campo Grande, no qual controlam os votos. Segundo a polícia, comandam uma milícia que tem nas suas contas centenas de mortos. Mas lembremos do passado. Quando o líder dos bicheiros, Castor de Andrade, ia para a avenida assistir aos desfiles de carnaval, recebia em seu camarote toda a sociedade carioca. Todos achavam muito natural ser convidado do "doutor Castor de Andrade". Essa miscigenação que existe no Rio é uma mistura alegre de classes que a praia facilita, mas tem esse reverso que é a promiscuidade. É um terreno pantanoso, muito próprio da cidade.

As milícias fazem tráfico?

Não, não fazem.

Então a violência do Rio já independe do narcotráfico?

Essa é uma tendência evidente. Agora, sobre as milícias, a gente sabe muito pouco - não sabemos sequer a extensão desses grupos. Dizem que de cada cinco favelas, elas dominam uma. As milícias descobriram que poderiam faturar muito, de uma maneira mais tranqüila, taxando serviços e instituindo uma máfia. Controlam as vans, a entrega do gás, a televisão via o "gato" da Net. Faturam talvez mais do que o tráfico e sem o estigma. Já ouvi depoimentos de gente que mora perto da favela de Rio das Pedras dizendo "agora dá para dormir com as janelas abertas". Você imagina o que é isso para o morador daquele lugar. Antes, quando nem todo o mal das milícias tinha vindo a público, elas foram tratadas como alguma coisa que estava pondo ordem na casa - podiam até ser meio exterminadoras, mas não eram corruptas. Essas milícias organizam até a recepção do nordestino que chega para morar na favela. Conseguem para ele o primeiro emprego, às vezes até uma casa. E ele terá que pagar por isso, evidentemente. Vai ficar sob o domínio dessa organização.


Mas as milícias são tão violentas quanto os traficantes?


Em Campo Grande, na região da milícia liderada supostamente pelo deputado Natalino Guimarães, a taxa de homicídio caiu em quase 30% após a prisão dele. São violentíssimas. Agora, se esse pessoal é capaz de entrar na favela, ocupar o espaço e expulsar o tráfico, por que o Estado não fez isso antes? É uma pergunta que se coloca. Por que isso nunca foi tentado? Por que não se faz uma ocupação gradual de cidadania, aquilo de que o Betinho falava?

Há quem argumente que tudo poderia ter sido evitado se a política de remoção de favelas do governo Carlos Lacerda, nos anos 60, tivesse sido levada adiante. Você concorda?

É preciso lembrar que aquela política, que criou bairros populares para a transferência dos moradores, como a Cidade de Deus, não levou emprego para aquela região nem implantou uma rede de transporte público que servisse à população. Grande parte daqueles chefes de família transferidos para longe continuaram trabalhando na zona sul, e constituíram novas famílias. Foi uma política desagregadora. Talvez porque previsse em que a expansão das favelas ia dar, o governo Lacerda foi corajoso. Mas não deu condições de fixação daquele novo morador e nenhum dos governos seguintes deu continuidade ao processo de remoção corrigindo os problemas iniciais.

Os mesmos críticos argumentam que, quando permitiu o uso de alvenaria nos morros, Leonel Brizola contribuiu para a fixação definitiva das favelas.

Essa fixação seria inevitável. O problema foi a falta de planejamento. Já que os barracos precários seriam substituídos por construções de cimento e tijolo, deveria ter havido um plano de urbanização. Mesmo quando os governos têm a melhor das intenções, olham para a favela como algo que não faz parte da cidade. Nós todos fazemos isso: achamos que aquilo é um corpo estranho. Não percebemos que a favela também é Rio. Naquela época, deram material de construção e disseram para os moradores, "se virem". Isso nunca aconteceria em Ipanema.


O carioca sonha com o dia em que se livrará da favela?

As favelas do Rio começaram com duas migrações, no início do século 20. Uma foi a dos soldados que derrotaram Canudos e, trazidos para o Rio, não tinham onde ficar. Ocuparam um morro. A outra foram os moradores pobres do Morro do Castelo, removidos dali quando foi posto abaixo pela urbanização impetrada pelo prefeito Francisco Pereira Passos. Há muito que se tenta tirar gente pobre de onde mora. Abriram as avenidas, mas, como não tinham para onde mover aquela gente de segunda categoria, transferiram para outro morro. A ironia da história é que, ao levar para os morros, eles estavam dando para o narcotráfico do futuro a melhor posição de tiro. Jamais houve política de regularizar o uso do solo nos morros. Sempre se encarou a favela como problema. Nunca se quis transformar a favela num bairro, como Alfama, em Lisboa. Alfama era isso. A população da favela, quem é? É a população de serviço da cidade. A classe média olha com desconfiança para o morro, mas esquece que o ascensorista, o motorista, a empregada doméstica, faxineiros, todos vêm das favelas. Essa integração entre o morro e o asfalto nunca foi feita. Ela só acontece do ponto de vista cultural. A cultura do Rio é uma de inclusão. A cultura tenta unir o que a economia separa.

Nunca houve tentativa de integrar morro e asfalto?

Sim. O projeto Favela-Bairro, durante a primeira passagem de Cesar Maia pela prefeitura, teve boas intenções e alguns bons resultados de urbanização. Mas não resolveu o problema do tráfico. Chegamos ao absurdo de achar que a população da favela é conivente. Não. O que acontece é que ela está inteiramente subjugada por uma tirania que detém o poder econômico, político e militar.

Existe um desejo de extermínio por parte da classe média?

Existe. Mas veja, isso não é por maldade ou crueldade. Não é uma patologia. É o medo que leva a isso. Vivemos uma situação de paranóia em que a morte daquele que se considera o inimigo vem pelo desejo de segurança. A questão é que a morte não resolve. Leva a mais morte, mais crime, mais medo. E persiste essa fantasia da "solução final", de resolver tudo de uma vez com o extermínio.

Como o morador da favela lida com essa rejeição do asfalto?

Ele rejeita na mesma proporção. O favelado tem orgulho de onde mora. Ao contrário do que pensamos, ele tem muito amor por aquilo lá. O ator principal de Era uma Vez (novo filme de Breno Silveira), que inclusive tem como subtítulo Uma História de Amor numa Cidade Partida, mora no Morro do Vidigal e diz que, mesmo depois do filme, vai continuar lá.

A irreverência do Rio é sempre celebrada. Mas ela não tem um outro lado? Essa constante quebra de regras e flerte com a infração não torna o carioca agressivo?

O Rio sempre foi uma cidade muito anárquica, no sentido de ser muito irreverente, indisciplinada. Isso, levado às últimas conseqüências, denota uma cidade que não quer se sujeitar às leis e às regras. É o lugar em que o motorista de táxi sugere "doutor, vamos fazer uma bandalhazinha aqui, a gente pega essa contramão..." E você, que quer chegar na hora, diz: "Tá ótimo, pode fazer". Claro que isso leva à indisciplina urbana, à permanente desobediência cívica. Claro que a conseqüência é agressividade, as pessoas simplesmente se sentem no direito de transgredir. Outro dia, vi um sujeito buzinar atrás de uma senhora que esperava o sinal abrir. Ele pôs a cabeça para fora e gritou: "Você não está na Suécia, não, ô perua!" Há uma degradação do convívio. Mas o Rio sempre foi uma cidade amena, cordial. E ela se degrada unicamente por causa da impunidade. Só por isso. Não acho que o motorista carioca seja menos educado do que o de Paris ou Nova York. Lá, o sujeito paga multa pela infração. Mas o Rio tem momentos de euforia e de baixo astral. Por isso é tão difícil analisá-lo com maniqueísmo. Um colega francês que esteve aqui para o réveillon, estranhou: "Aqui não é a cidade da violência? Então como vocês fazem uma festa com 2 milhões de pessoas e não há nenhum incidente?" Afinal, o Rio é cordial ou violento? É as duas coisas, e para o francês cartesiano é difícil entender.

O Rio está culturalmente decadente?

Não. A cidade tem uma capacidade de dar a volta por cima, que se manifesta ao longo de sua história. Na virada do século 19 para o 20, a decadência era muito pior do que hoje. Os navios passavam a 40 milhas de distância porque havia surtos de febre amarela, tifo, todas as epidemias. A cidade estava decomposta. Mas enquanto isso, na Praça Onze, um grupo de pessoas perseguidas pela polícia estava gestando uma das manifestações culturais mais ricas do mundo, que é o samba. Em 1993, fui com o DJ Marlboro, então desconhecido, a alguns bailes funk. Na minha primeira vez, fiquei horrorizado com a violência - uma violência que é muito mais coreográfica do que real. O Marlboro me disse assim: "Olha, o funk vai tomar conta do Rio". Eu ri dele. Pensava: "Ele acha que uma manifestação dessa vai passar na televisão". Pois bem, anos depois isso aconteceu.


Mas o funk não é como o samba, é?

Os meninos de classe média que sobem o morro não para cheirar, mas para ir ao baile, adoram. O Marlboro brinca comigo: "O funk está soldando a cidade partida".

E você acha que está?

De certa forma, sim. Do ponto de vista cultural, sobretudo musical, não tem apartheid. O samba já tinha feito isso. Agora é o funk. A influência da moda hip hop, do sujeito com o boné virado, o cofrinho da menina aparecendo na calça - isso fez a periferia entrar no centro. No meio universitário sua música está entre as preferidas. A cultura, no Rio, sempre fez a ponte entre morro e asfalto.

Você acha que leva quanto tempo para resolver o problema?A longo prazo, sou otimista. Não o otimista babaca. Mas a própria sociedade, embora alienada, já sentiu na carne o problema da bala perdida. A solução não é a segregação. A sociedade pode ser insensível, mas não é suicida. Fatalmente chegará à conclusão de que é preciso incluir. Ninguém pensa mais em remover favelas. As alternativas de apartheid estão esgotadas. Como a saída não é o aniquilamento nem a guerra, de partida só há uma solução - unir e ceder à vocação do Rio: o encontro, o congraçamento, a festa.

Você escreveu sobre 1968 e voltou ao tema noutro livro. Escreveu sobre Chico Mendes e voltou à questão. Voltaria à cidade partida?

Só quando a cidade deixar de ser partida. Recontar a mesma história, só que piorada, não dá ânimo.

DEU EM O GLOBO


O MUNDO REAL
Merval Pereira


NOVA YORK. Esse mundo novo multipolar de que o candidato democrata à da República dos Estados Unidos Barack Obama falou para a multidão européia, onde a solidariedade entre os antigos e novos aliados derrubaria os muros de preconceitos, é que está em jogo nas negociações da Rodada de Doha em Genebra, onde o mundo tenta encontrar meios de avançar na liberação comercial para enfrentar a crise econômica e de alimentos que o afeta. Nesse ponto, o partido de Obama tem mais dificuldades que os republicanos, tradicionalmente mais abertos comercialmente. No discurso de Berlim, por exemplo, Obama defendeu o livre comércio, mas apenas se os acordos forem "livres e justos para todos".

McCain já votou contra os subsídios ao milho para fazer o etanol americano, e teve coragem de dizer isso ainda nas primárias em Iowa, terra dos grandes produtores. E o partido republicano apóia o programa de etanol brasileiro, com um acordo assinado entre os governos Bush e Lula. Obama, ao contrário, votou a favor dos subsídios e coloca o etanol produzido com milho como uma das opções para o programa americano de combustíveis alternativos.

Mesmo que se chegue a um acordo em Genebra, nas negociações da Organização Mundial do Comércio, o Congresso americano dominado pelos democratas pode vetá-lo, pois reduziria os subsídios já aprovados. Até mesmo com relação à Europa existem divergências sérias em termos de subsídios, seja na agricultura seja nas disputas industriais entre grandes consórcios, especialmente na área de aviação.

O fim do mundo unipolar dominado pelos Estados Unidos foi descrito por Richard N. Haas em recente artigo da revista "Foreign Affairs". Presidente do Council on Foreign Relations - que edita a revista -, uma entidade não-partidária com sede em Nova York, considerada uma das mais influentes em matéria de relações internacionais nos Estados Unidos, ele entende que o momento hegemônico dos Estados Unidos está superado e o século XXI será marcado por um poder mais difuso, e a influência dos Estados-nação declinará em função do aumento da influência de atores não-estatais.

Esse novo mundo vai exigir do futuro presidente americano uma capacidade de dividir o cenário internacional com "dezenas de atores possuindo e exercendo poderes de diversas maneiras, inúmeros centros com poderes específicos importantes", entre eles ONGs, organismos internacionais e países emergentes. Por enquanto, no entanto, o governo americano parece não estar disposto a abrir mão desse poder todo, e nem há sinais de que o futuro presidente, seja ele quem for, o faça.

Na recente reunião do G-8 no Japão, Estados Unidos e Itália se uniram para vetar sua ampliação, com a inclusão de países como o Brasil, África do Sul, Coréia do Sul e Índia, proposta pela França.

O candidato republicano John McCain, em recente entrevista ao "Estado de S. Paulo", deu um passo à frente e se disse favorável à entrada do Brasil e outros países no G-8, mas vetou a ampliação do Conselho de Segurança da ONU.

O professor de História da Universidade de Nova York Tony Judt, autor do recém-lançado no Brasil "Pós-Guerra", falando à coluna disse que a Itália sob Berlusconi "não pode ser levada a sério, infelizmente". A explicação para o veto seria que "a Itália vem a ser o "big boy" do G-8, situação que seria desfeita se outros entrassem. E já que a Itália não é player considerável em outros organismos, o país prefere manter o G-8 exclusivo".

Mas ele adverte: "Não tenhamos ilusão com relação a Sarkozy: a França é opositora ferrenha de abrir espaço no Conselho de Segurança da ONU para países como o Brasil e Índia, já que isso reduziria o espaço da Europa como apenas um lugar no Conselho".

Por outro lado, lembra Judt, "a administração Bush já é um "lame duck" ("pato manco"), expressão em inglês que identifica um governante enfraquecido) e reluta em tomar posições difíceis; talvez a exceção seja se Israel bombadear o Irã". Ele acha que também Obama não se oporá a uma expansão do G-8, mas considera que "trazer Índia e Brasil para dentro do Conselho de Segurança da ONU não terá o seu esforço".

Para o historiador Tony Judt, o republicano McCain "é menos sofisticado do que aparenta, e a área econômica é sua maior fraqueza. Duvido que ele tenha pelo menos pensado no G-8. Seus comentários sobre "Guerra de cem anos" no Iraque e a confusão que fez entre sunitas e xiitas sugerem um homem que pode ser mais simpático ao multilateralismo do que Bush, mas não entende realmente isso".

Na avaliação de Judt, "vai levar um longo tempo para que essa idéia de multilateralismo prevaleça, e desde que Rússia e China têm razões próprias para se comportar mal em temas como o Sudão ou Zimbábue, os conservadores na Europa e nos EUA continuarão a argumentar que quanto menos países poderosos tivermos, melhor".

Ele considera que "o Brasil e talvez a Índia são mais bem vistos como potenciais aliados do que as oligarquias autoritárias da Russia ou da China, mas vai levar um longo tempo para os Sarkozys do mundo aceitarem isso. Ele, por exemplo, não consegue ainda nem perceber como é autodestrutivo forçar a Turquia para fora da Europa".

Também Richard Haas, do Council of Foreign Relations, falando à coluna, diz não acreditar na ampliação do Conselho de Segurança da ONU, embora considere que seria uma medida necessária. "Acredito que Brasil e outras nações como Índia, África do Sul, Coréia do Sul, Japão, devem ser mais incluídas nas discussões internacionais. Mas não sou otimista com relação ao Conselho de Segurança da ONU, que considero quase impossível por causa da política". Para ele, "é mais fácil abrir o G-8, ou criar novas instituições. Precisaríamos ser criativos, flexíveis".

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


PESQUISAS DE AGORA
Marcos Coimbra
Sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi


"Veja-se o caso das eleições deste ano na cidade de São Paulo. Tomando como base a mais recente pesquisa do Ibope, os quatro principais candidatos reúnem 84% das intenções de voto. Isso vai mudar? Até que ponto?"

Todo mundo sabe que pesquisas de intenção de voto, em eleições municipais, só são capazes de antecipar resultados quando feitas perto do pleito. Temos, já, uma boa experiência com esse tipo de eleição, no Brasil de hoje em dia, e poucos se esquecem disso quando vêem resultados como os que agora estão saindo. O que nem todos se lembram é por quê.

Trata-se de uma regra que comporta exceções, que nos ajudam a entendê-la melhor. Ou seja, embora prevaleçam os casos de pesquisas pouco conclusivas, temos aqueles em que elas conseguem prever o que as urnas vão mostrar, meses depois.

É o que acontece em eleições onde os principais candidatos são bem conhecidos. Nessas, há pouca margem de crescimento para qualquer um, pois as imagens que os eleitores fazem a respeito deles estão formadas e consolidadas. Não há, portanto, lugar para “surpresas”, salvo, é claro, se fatos novos de grande impacto ocorrerem.

Veja-se o caso das eleições deste ano na cidade de São Paulo. Tomando como base a mais recente pesquisa do Ibope, os quatro principais candidatos reúnem 84% das intenções de voto. Isso vai mudar?

Até que ponto?

O que, por exemplo, faria com que uma parte grande dos 34% que pensam votar em Marta trocasse de candidato? Quem tem essa intenção não sabe quem ela é? Não ouviu já as críticas de seus adversários e suas respostas? E será que os 66% que preferem outros nomes não sabem que ela é do PT e que Lula a apóia?

Quanto aos que pretendem votar em Alckmin, por acaso ignoram quem sã o seus oponentes? Falta-lhes alguma informação sobre o ex-governador?

Com Kassab não é a mesma coisa? E Maluf, com seus fiéis 9%, que resistem a tudo que contra ele foi dito? Há alguma denúncia “nova” que os possa escandalizar?

Casos como esse são excepcionais, no entanto. O prefeito atual, dois ex-prefeitos e dois ex-governadores, se enfrentando na mesma eleição, só em São Paulo. Na maior parte das vezes, acontece o inverso, disputas que adquirem suas cores definitivas apenas quando se chega perto do dia da votação.

Alguns casos de pesquisas feitas pela Vox Populi em 2004, de Norte a Sul do país, mostram isso com clareza. São apenas exemplos, parecidos com vários outros.

À mesma distância que estamos hoje da eleição, na segunda quinzena de julho, tínhamos o candidato do PT com grande vantagem em Porto Alegre. Nas pesquisas, Raul Pont chegava a 36%, sendo que nenhum dos outros atingia 10%. No primeiro turno, Pont obteve 35%, mas Fogaça recebeu 27% dos votos. No segundo turno, deu Fogaça.

Algo semelhante ocorreu em Manaus, onde Amazonino Mendes tinha 58% e Serafim Correa, 14%, que se transformaram em 41% e 27%, respectivamente, na eleição. Ao invés de vencer no primeiro turno, Amazonino perdeu no segundo.

Em Belo Horizonte, quem liderava em julho era João Leite, com 35 %, contra Fernando Pimentel, com 28% das intenções estimuladas. Na urna, Pimentel foi a 60% e o candidato do PSDB retrocedeu a 20%.

Tudo isso acontece por uma razão primordial: a quantidade e a intensidade de mídia que nossa legislação concede aos candidatos a prefeito, nas cidades onde existe televisão e rádio. Eles, sozinhos, dividem o precioso tempo de inserções, a única mídia que atinge o universo do eleitorado (pois só assiste ao horário eleitoral quem quer). O mesmo tempo que os candidatos a presidente, governador, senador, deputado federal e estadual têm que compartilhar nas eleições gerais.

Isso muda completamente o quadro de informações do eleitorado, que pode ser apresentado e atraído por nomes novos, que desconhecia poucas semanas antes. Quem tem o que dizer, fala muito e fala rápido. Assim se fazem as “surpresas”.

Podemos ter certeza que, este ano, as teremos de novo. Quem tem juízo, olha com cautela as pesquisas de agora.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


É CEDO PARA APOSTAR
Eliane Cantanhêde


BRASÍLIA - As campanhas estão em fase de aquecimento, e não convém ainda fazer apostas. Em São Paulo, Rio, Porto Alegre, Recife e Salvador, tudo pode acontecer. Em Curitiba, o favorito de hoje tem tudo para ganhar mesmo amanhã, mas o segundo lugar ainda vai dar muito trabalho e o que falar.

São Paulo polarizou entre Marta (PT) e Alckmin (PSDB), e qualquer aposta tem que pular o primeiro turno e focar no segundo. Tudo depende da profundidade e das conseqüências do racha tucano. No Rio, Marcelo Crivella (PRB) está em primeiro, mas 24% não dão segurança para ninguém. Jandira Feghali (PC do B) está logo ali, com 16%, e Eduardo Paes, 13%, não é só a novidade em ascensão como tem o governador Sérgio Cabral.

Em Porto Alegre, como previsto, o prefeito José Fogaça (PMDB) lidera, mas Maria do Rosário (PT), 20%, e Manuela D"Ávila (PC do B), 18%, formam uma maioria feminina e de esquerda que pode ser decisiva no segundo turno. O DEM joga suas poucas cartadas em Recife, com Mendonça Filho, e em Salvador, com ACM Neto. Mas Cadoca (PSC) e João da Costa (PT), ambos com 22%, estão na jogada na capital pernambucana. E, na baiana, há um empate técnico com o tucano Antônio Imbassahy. Entre sete capitais, Curitiba é a única com chance real de fechar a eleição em primeiro turno: o prefeito Beto Richa (PSDB) tem 72%. Mas a petista Gleisi Hoffmann, 12%, teve um desempenho meteórico na última eleição e conta com uma aguerrida militância petista.


As duas curiosidades são a dianteira de Jô Moraes em Belo Horizonte e o PC do B entre os três primeiros no Rio, em Porto Alegre e na própria BH. Mulher, paraibana, comunista e de uma sigla pequena, Jô Moraes dá um nó nos poderosos Aécio Neves e Fernando Pimentel.Pelo menos até o início da propaganda na TV e as divisões de Napoleão chegarem à Rússia. É aí que o jogo (bruto) começa para valer.

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)


NA REPÚBLICA DOS BACHARÉIS
Alberto Dines


Em francês, rififi. Em vernáculo, há opções mais numerosas e sonoras: angu, auê, baralhada, babilônia, bochinche, fuzué, frege, lambança, sarilho, sururu, zorra. Começamos em sânscrito, na esfera mística da verdade absoluta para acabar em latim vulgar no pantanal dos paradoxos jurídicos, não muito longe do calão da malandragem.

O último lance da Operação Satiagraha foi propiciada por um cidadão carioca, motorista profissional, ex-aluno de direito – quem não é nesta terra? – que quinta passada entrou com uma ação popular para obter uma liminar que determine o retorno do delegado Protógenes Queiroz à chefia do inquérito que colocou Daniel Dantas na cadeia.

Wellington Borges da Silva Lúcio, ao que parece, não pretende apenas alçar o delegado da PF à condição de Elliot Ness (o intocável agente do FBI), quer confrontar a presidência da República que, aparentemente, forçou o afastamento do delegado Protógenes do comando das investigações.

Enquanto as cortes não se manifestam, a jurisprudência vacila e os autores divergem, o delegado Protógenes entregou (conforme prometera) o relatório final ao Ministério Público. Mais "enxuto", com menos 93 páginas, concentra-se mais no crime de gestão fraudulenta, exclui todos os jornalistas do relatório parcial, porém mantém as acusações à repórter da Folha de S. Paulo que antecipou, meses antes, as investigações da PF.

Curiosidades bacharelescas: como é que a imprensa soube dos detalhes a respeito do novo relatório? Inspiração divina, leitura labial ou funcionou novamente o velho e enferrujado cano dos vazamentos?

Não adianta esconder: o vazamento é a questão que deveria comandar o debate penal, não as algemas. Para isso seria indispensável uma dose menor de bacharelismo e mais atenção ao jornalismo, à imprensa (que, aliás, acaba de completar 200 anos sem qualquer comemoração). Como a PF tinha pressa e não dispunha de todos os elementos para incriminar definitivamente os acusados recorreu a uma imprensa que não resiste à tentação de publicar imediatamente, sem qualquer investigação, qualquer coisa que pareça sigilosa.

O primeiro vazamento para os jornais, há duas semanas, era altamente explosivo com nítido teor político e envolvia matéria remotamente ligada a questões financeiras, mas foi considerado estratégico para sobrepor-se ao entra-e-sai de Daniel Dantas do xilindró. Para a PF era imperioso fazer barulho, para a imprensa mostrar sua eficiência, quanto mais barulho, melhor.

Como o ministro Tarso Genro, não pode manter-se calado diante de um imbróglio tão retumbante, nesta mesma quinta-feira em evento da OAB fluminense aconselhou o cidadão brasileiro a acostumar-se com a idéia de que suas conversas telefônicas estão sendo grampeadas. A advertência não se referia à prodigalidade da justiça em autorizar gravações (são 33 mil ao mês, segundo levantamento do Globo), nem ao fato de que cada grampo é uma potencial mina de vazamentos. O ministro apenas compartilhava com a sociedade sua preocupação diante da infinita capacidade da "parafernália eletrônica" para invadir a privacidade de qualquer cidadão. O avalista do Estado de Direito não se incomoda em capitular publicamente ao Estado Big Brother, inquisidor e totalitário. Talvez tenha razão. Em questões de Direito, todos têm razão.

Então entram em campo corporações de magistrados e membros do Ministério Público apelando ao presidente da República para vetar o projeto que torna invioláveis os escritórios de advocacia. Alegam os meritíssimos e excelências que a blindagem legal impedirá decretos de busca e apreensão em escritórios de causídicos que defendem criminosos. Por acaso o veto impediria que estes advogados trabalhem em seus domicílios, garantidos pela inviolabilidade prevista na Constituição?

Com protagonistas devidamente togados, os duelos jurídicos são fascinantes: cada texto legal comporta interpretações diametralmente opostas, cada argumento contém a sua negação. Mas convenhamos: viver esta dialética só aumenta o forrobodó que impera na República.

» Alberto Dines é jornalista.