segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Os liberais e a fragilidade do capitalismo

Antônio Inácio Andrioli
DEU NA REVISTA ESPAÇO ACADÊMICO N° 91

Com a crise do mercado financeiro, surpreendentemente, economistas e jornalistas liberais passaram a defender a interferência do Estado na economia capitalista. Contraditoriamente ao seu discurso clássico, marcado pela apologia do livre mercado como único regulador da economia, os liberais defendem a ajuda financeira do Estado aos bancos e empresas em estado falimentar. Teriam os liberais revisto suas teorias, analisado seus equívocos e modificado suas posições? Trata-se de uma crise do capitalismo ou do liberalismo?

Até bem pouco tempo, sequer a palavra “capitalismo” era mencionada no discurso político dominante no mundo. Parecia que estávamos vivendo em uma sociedade em que a desigualdade, a pobreza, a exclusão social e a destruição ambiental, quando consideradas, eram geralmente analisadas como sendo decorrentes da ação de indivíduos, sem que uma lógica estrutural conduzisse os seres humanos a agir de determinada forma. Inclusive, em tempos de crise, muitos intelectuais continuam moralizando a economia, procurando os culpados: os assim considerados “maus capitalistas”, “maus banqueiros” e “maus investidores”.

Mesmo com uma vasta disponibilidade de indícios empíricos e de acúmulo teórico de análise crítica das forças destrutivas do capitalismo, o discurso hegemônico continuava confundindo as causas com soluções. Por exemplo, diante das constatações de que o livre mercado era responsável pela generalização da crise capitalista em nível mundial, as soluções apontadas sugeriam a ampliação do livre mercado, a privatização e a interferência cada vez menor do Estado na economia.

Com o aprofundamento da crise e a perspectiva de uma depressão econômica em nível internacional, agora os liberais utilizam uma tática ideológica antiga: a naturalização da economia. Na Idade Média, por exemplo, os senhores feudais, reis, nobres e demais privilegiados podiam contar com a crença divina para justificar a situação social gerada pelo modo de produção hegemônico. Atualmente, os liberais, confrontados com a negação empírica das suas teorias, tentam difundir um inexorável determinismo natural combinado com doses de cetiscismo para explicar seu fracasso teórico. O discurso dominante tende a considerar que compreender a economia mundial, na complexidade como ela se desenvolveu contemporaneamente, seria uma tarefa impossível. Ou seja, a humanidade teria avançado muito em termos de ciências naturais, de entendimento da astronomia, da física, da química e da biologia, mas não teria condições de compreender os fenômenos econômicos em nível internacional.

A tentativa de difundir uma noção de incompreensibilidade da economia mundial, assim como a tentativa de naturalizar os fenômenos econômicos, demonstra a perplexidade dos liberais com os atuais acontecimentos. O comportamento não é novo: ao invés de assumir que a “mão invisível do mercado” não funciona, contraditoriamente, se nega o próprio discurso, afirmando a necessidade de ação emergencial do Estado. Isto é, a negação hipócrita procura minimizar o fato da atual retórica estar revelando o fracasso prático da sua teoria.

Curiosamente, entretanto, a atual crise econômica internacional não é a primeira da história e podemos verificar enormes paralelos com as crises anteriores, tanto no processo gerador da crise como na tentativa de sua explicação. A primeira crise econômica mundial iniciou no dia 09 de maio de 1873 em Viena, atingiu Nova Yorque em seguida e, posteriormente, Hamburgo, ampliando-se para os principais mercados capitalistas daquela época. Se seguiram 5 anos de profunda depressão econômica. A segunda crise econômica mundial, a mais conhecida, iniciou no dia 24 de outubro de 1929 e encerrou somente com o final da segunda Guerra Mundial, com a vitória dos Estados Unidos e seu domínio sobre o mercado mundial. Assim como em outros tempos, a maior economia mundial passou a ser a maior potência militar, impondo seus interesses, sua ideologia e sua linguagem de forma hegemônica sobre os demais países.

O atual domínio estadounidense sobre o mundo se justifica principalmente pelo seu poder militar (especialmente através das armas nucleares) e a instituição do dólar como moeda-padrão para a economia mundial. O longo período de hegemonia dos EUA é marcado por guerras e destruição. O keynesianismo e a construção do Estado de bem-estar social contribuíram para estabelecer ciclos de crescimento econômico num nível nunca antes visto na história da humanidade. Isso serviu para evitar o surgimento de um contra-poder, iminente com a existência de um bloco não-capitalista (soviético e chinês), resultante de revoluções sociais no mesmo período. Mesmo assim, a economia mundial ameaçava entrar em crise nos anos 1980.

Com o desmoronamento da União Soviética e a queda do Muro de Berlim (1989-1990), cerca de 2 bilhões de pessoas, que há mais de 50 anos estavam fora do alcance do capitalismo, dispondo de ¼ dos recursos mundiais, passaram a integrar o mercado capitalista, permitindo um novo ciclo de expansão, caracterizado como globalização econômica. Esse ciclo de acumulação está chegando ao seu final, deixando, mais uma vez, explícitas duas características fundamentais do capitalismo como modo de produção: a instabilidade e a insustentabilidade.

A economia capitalista é marcada por crises contínuas, umas menores e outras de caráter mundial. Em tese, portanto, podemos afirmar que não existe capitalismo sem crise econômica. As crises cíclicas de superprodução são intrínsecas a esse modo de produção, caracterizado pela separação entre capital e trabalho. O crescente investimento em capital constante (prédios máquinas, tecnologia, etc.), desproporcional ao investimento em capital variável (trabalho vivo), conduz a uma tendencial queda da taxa de lucros, pois somente o trabalho gera o valor e a mais valia (fruto da exploração do tempo de trabalho). Diante disso, os liberais procuram uma saída de sobrevivência ideológica, pois não querem assumir que Marx tinha razão.

Os capitalistas, confrontados com essa fatalidade, há muito tempo conhecida, tendem a investir em outros setores da economia quando determinados investimentos passam a ser considerados menos lucrativos. Assim, muitos investidores deixaram de investir na produção, passando a alocar dinheiro no mercado imobiliário, em bolsas de valores e em bancos. Contudo, “dinheiro não gera dinheiro”. Para que o dinheiro possa valorizar é necessário que ele seja investido na produção, de forma que seja possível se apropriar do excedente de valor gerado pelo trabalho. Por isso, as consequências negativas sobre o capital produtivo são enormes, pois para suportar a carga do pagamento de juros e satisfazer a expectativa dos acionistas, as indústrias, por exemplo, são obrigadas a aumentar a mais-valia (a exploração do trabalho), através de maiores jornadas de trabalho e menores salários. O efeito final, entretanto, somente reforça o problema da crise de superprodução: os menores salários e o desemprego diminuem o poder de compra, desaquecendo a economia como um todo e estimulando os acionistas a investir em outros setores. A crise gira em círculo e o espiral depressivo somente tende a aumentar.

A expectativa de valorizar dinheiro através do mercado financeiro e imobiliário é comparável a um jogo de cassino, onde apenas alguns se apropriam de vantagens a curto prazo, resultantes das perdas de outros. Com a ampliação do mercado financeiro e a mundialização do capital, foi generalizada em nível internacional uma espécie de cassino mundial, embora mantendo o maior fluxo de capital entre os países capitalistas mais ricos. Para que o mercado mundial de capitais pudesse crescer em tamanha proporção, decisões políticas foram necessárias para permitir equiparações e garantias mínimas aos investidores. A expectativa era estimular o crescimento da economia através do fluxo de investimentos que, segundo a crença dos liberais, seria regulado pela “mão invisível do mercado”.

Atualmente estamos diante de mais um fracasso histórico do liberalismo. Nunca o mercado havia sido tão liberalizado e em escala internacional. As expectativas dos liberais foram frustradas porque suas teorias partem de uma ilusão central: a idéia de que o mercado seria uma força autoreguladora e que, em função da concorrência, os recursos econômicos seriam alocados da melhor maneira possível. Essa idealização do mercado como mecanismo regulador segue uma lógica de pensamento que corrobora a circulação e o aquecimento da especulação nas bolsas de valores.

Na realidade, entretanto, o mercado funciona com base nas relações socias entre seres humanos que trocam produtos. O mercado é regulado pela oferta e pela procura de mercadorias, uma relação meramente quantitativa, que cumpre uma função de mediação. Mas, assim como a mercadoria pode operar como fetiche, o processo de troca de mercadorias produz e necessita de ilusões para continuar funcionando. Na lógica do mercado, os vendedores pressupõem que compradores pagam, em forma de dinheiro (uma mercadoria comum que serve para trocar mercadorias), e os compradores pagam porque internalizaram a idéia da troca. Com base na mesma idéia, credores e devedores negociam, acionistas e investidores aplicam dinheiro (mesmo quando este continua nos bancos, sendo apenas uma expectativa, uma virtualidade, pois trata-se de cifras, de transações bancárias sem o uso de moeda-papel, de documentos que geram expectativa de pagamento).

Quando a virtualidade do mercado idealizado foi confrontada com uma crescente impossibilidade real de pagamento (por parte do assim chamado capitalismo real, dependente da produção), as expectativas dos “apostadores” se reduziram a riscos. O problema maior, para além das expectativas de ganho frustradas (como eram virtuais não poderiam ser caracterizadas como perdas, pois se baseavam meramente em apostas) dos assim chamados investidores, é a incidência negativa do crédito sobre a produção capitalista, gerando endividamento, falências e uma depressão econômica real. Contudo, a origem do problema continua na produção capitalista, tendencialmente geradora de crises de superprodução. A crise financeira é sua decorência e apenas agrava a crise do capitalismo “real”, surgindo em escala global quando a maioria dos economistas liberais a menosprezava como distante, localizada e passageira, ignorando seu potencial destrutivo.

As soluções apresentadas para sair da crise confirmam o caráter ideológico do liberalismo. A atitude de negação do próprio discurso em favor do livre mercado e a proposta de “ajuda econômica” por parte do Estado demonstram claramente o equívoco da concepção do mercado como alocador de recursos: o mercado é um instrumento de poder que opera no sentido da concentração de recursos econômicos, tendo como maiores consequências negativas o desperdício (destruição do meio ambiente) e a exclusão social (radicalização da desigualdade).

A força política da idéia de mercado se manifesta na aceitação da premissa proposta: a necessidade de ajudar o capitalismo a sair da crise. Em outras palavras, os prejuízos são socializados (na forma de subsídios, ajuda financeira, isenção de impostos) e os benefícios privatizados (os jogadores que perderam no cassino, utilizando dinheiro de outros, recebem uma nova chance de jogar, novamente com o dinheiro alheio). O Estado se endivida para ajudar os responsáveis pela crise com dinheiro público e, com isso, continua reduzindo investimentos em programas sociais e em projetos de infra-estrutura. E, enquanto isso, a concentração de renda e de capital continua.

É claro que, diante das evidências do fracasso e da fragilidade do capitalismo, o Estado poderia estatizar os bancos endividados, estabelecer regras para evitar crises futuras e controlar o fluxo de capitais. Mas, pelo contrário, a solução apresentada pelos liberais consiste em solicitar a ajuda do Estado para ajudar o sistema a sair da crise e depois deixar o mercado como regulador até que uma próxima crise se instaure. Essa é a função do liberalismo, como teoria legitimadora do modo de produção capitalista, conduzindo à aceitação das suas propostas por parte da maioria da sociedade, que arca com o ônus da crise gerada em função da concentração do capital. A evidência da fragilidade do capitalismo e do fracasso teórico do liberalismo, entretanto, não conduzem, automaticamente, à sua superação, pois os interesses que os fundamentam são mais importantes e se situam acima dos argumentos. Mesmo assumindo a contradição no seu discurso, os liberais não extraem dela todas as conseqüências, porque o interesse maior permanece na continuidade da produção capitalista, a razão da existência do liberalismo como teoria. O “rei está nú”, mas a crença ilusória no Deus que o instituiu continua lhe servindo de vestimenta.

Samuel Huntington

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


S Samuel P. Huntington morreu na véspera do Natal. Tendo adquirido notoriedade no Brasil por seus contatos com o governo a propósito da "descompressão" do regime de 1964, Huntington, com quem tive contato pessoal como estudante anos atrás, foi, dentre os grandes nomes da ciência política contemporânea, talvez o mais propenso a iconoclastias e mesmo a posições antipáticas ou politicamente "incorretas". Ditada pelo compromisso tanto com o rigor profissional quanto com valores políticos, em que a identificação com o Partido Democrata (e a forte oposição à intervenção no Iraque, por exemplo) se mesclava com certo conservadorismo realista, essa propensão o manteve em evidência e o expôs a críticas azedas ao longo de sua carreira acadêmica.

Uma das contribuições importantes do realismo de Huntington ocorreu, ainda na década de 1960, nas discussões sobre desenvolvimento político. Seu trabalho substituiu a mera ênfase corrente na democracia pela atenção dada ao "grau" de governo (ele seria um dos responsáveis, um pouco mais tarde, pela introdução da questão da "governabilidade" das democracias) e à capacidade que os sistemas políticos revelem de construir e operar instituições fortes e estáveis - o que não é sinônimo de instituições não-democráticas, apesar de embutir alguma tolerância com o autoritarismo, incluindo a reavaliação em termos favoráveis da União Soviética, que era então anátema para a ciência política academicamente dominante. De toda forma, o contraste decisivo seria o que opõe sistemas "institucionalizados" ou "cívicos" a sistemas "pretorianos", onde a fragilidade institucional induz cada foco particular de interesses a valer-se na arena política dos recursos de qualquer natureza que tenha à mão, resultando no fatal protagonismo dos militares.

Há inconsistências, que levaram a claros erros de avaliação em casos concretos (destaque-se o caso do Paquistão, com Ayub Khan erigido em grande legislador pouco antes de o país se ver reduzido ao caos). Há também a discutível visão da condição pretoriana como uma espécie de pântano em que se chapinha sem rumo e sem saída. Mas a perspectiva tem o mérito de apontar para uma sociologia das instituições políticas cujo horizonte é o equilíbrio necessário entre a autonomia perante o jogo cotidiano dos interesses, de um lado, e, de outro, a sensibilidade e a adaptabilidade perante a multiplicidade de interesses ou de "forças sociais", em particular os novos interesses a emergirem em qualquer momento dado. E esse equilíbrio envolve um outro, entre ação intencional e enraizamento cultural e valorativo: "a cultura importa" é o título de um volume organizado por ele já em 2001.

Justamente o impacto da cultura e dos valores foi o foco polêmico de suas intervenções mais recentes. Temos a tese do "choque das civilizações", marcado pelo confronto entre o Ocidente e, em especial, o mundo islâmico, com os muitos comentários negativos que suscitou - sem deixar de suscitar igualmente, porém, retratações importantes, como a de Fouad Ajami no New York Times em janeiro de 2008, recuando da crítica a Huntington a respeito e dando-lhe razão. Temos ainda as denúncias sobre o perigo que a intensa imigração mexicana, e latino-americana em geral, representaria para os Estados Unidos. Em entrevista de 2004 ao mesmo jornal a propósito do volume dedicado ao tema ("Who Are We?"), Huntington ilustra numa pílula a disposição de dizer verdades desagradáveis que lhe marcou a carreira. Diante da observação da entrevistadora de que o livro endossava os valores anglo-protestantes, sua resposta é mais ou menos a seguinte: "Os Estados Unidos seriam o país que foram e ainda são hoje se, nos séculos 17 e 18, em vez de sermos colonizados por protestantes ingleses, nossos colonizadores tivessem sido católicos franceses, espanhóis ou portugueses? A resposta é não. Seríamos um Quebec, um México, um Brasil." O artigo e o volume sobre o choque das civilizações contêm uma definição de "Ocidente" que dele exclui a América Latina, com implicações intrigantes sobre onde situar apropriadamente Espanha e Portugal. A resposta de 2004 insinua o deslocamento da própria França, e dos países católicos em geral, para uma espécie de Ocidente de segunda.

Huntington sustenta na entrevista que sua posição não é contrária à imigração, mas pela assimilação plena dos imigrantes (e lembra que sua mulher é filha de um imigrante armênio). A questão de interesse que a resposta citada suscita é a de se deve ser lida como apontando um mero fato ou se haveria razões para tomar a sério a insinuação que indico, em que um estilo de vida baseado na ética do tabalho, racionalizador e economicamente dinâmico desqualifica um outro passível de ser mistificado em termos de relaxamento, desfrute e "ócio criativo": se este último se associa com desigualdade, elitismo e pobreza, não há como deixar de buscar dose importante dos ingredientes do primeiro.

Mas há matizes. A corrida presidencial do ano passado mostrou com clareza as duas faces da vida política dos Estados Unidos, e seria difícil pretender ligar, sem mais, as raízes anglo-saxônias com a face melhor. A vitória de Obama sem dúvida envolve um importante elemento positivo de mudança cultural. E mesmo se Obama (que Huntington, já doente, com certeza apoiou) pode ou deve reclamar a reafirmação de elementos igualmente importantes do legado que recebeu das tradições do país, essa mudança cultural tem claro substrato na transformação demográfica, de que a imigração é parte destacada: o país melhora não com a assimilação irrestrita dos imigrantes, mas com a mudança que a imigração há muito ajuda a produzir.

Seja como for, viva Huntington, que pensou e defendeu abertamente as posições a que a reflexão o levou.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

PSDB e DEM já montam palanques para 2010

Marcelo de Moraes, BRASÍLIA
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Em fevereiro, legendas farão encontro para discutir chapas regionais que sustentarão aliança nacional

Para os partidos de oposição, a largada para a campanha eleitoral de 2010 começa no mês que vem. Dirigentes do PSDB, DEM e PPS se reunirão em fevereiro, em Brasília, para discutir a montagem dos palanques estaduais comuns aos três partidos, o que sustentará a próxima campanha presidencial apoiada pelo grupo encabeçado provavelmente pelo governador paulista, o tucano José Serra. A ideia é solucionar divergências regionais o mais rapidamente possível e limpar o terreno para a candidatura ao Planalto.

O problema é que já existem pelo menos dois cenários complicados para o grupo administrar. Na Bahia, o PSDB sondou o ex-governador Paulo Souto, do DEM, para ser o candidato tucano à sucessão do governador petista Jaques Wagner. E no Rio Grande do Sul, a governadora tucana Yeda Crusius não tem mais relações políticas com o vice-governador Paulo Feijó (DEM), que faz oposição sistemática ao governo, desde sua posse, por divergência em relação a medidas administrativas tomadas.

No caso da Bahia, o DEM não aceita o assédio do PSDB sobre Paulo Souto. Seus dirigentes acham que uma eventual desfiliação do ex-governador para fortalecer um partido parceiro no projeto nacional criaria uma aresta política grave na relação entre o DEM e os tucanos.

“A ideia é formar uma aliança nacional que ajude os três partidos nas eleições de 2010. Não é uma corrida para ver qual partido chega na frente. Então, não adianta o PSDB quebrar o DEM na Bahia para se dar bem. Paulo Souto é o nosso candidato ao governo e a eleição baiana é um alvo estratégico muito importante para o DEM. Não vamos aceitar que o PSDB tente resolver seus problemas políticos na Bahia criando uma situação difícil para nosso partido”, afirma o presidente nacional do DEM, deputado Rodrigo Maia (RJ).

Na sua avaliação, a manutenção da boa relação também garante um esforço extra do partido para tentar reaproximar o diretório gaúcho do governo de Yeda Crusius. “Nosso primeiro movimento é para reaproximar politicamente os dois grupos. Se isso vai resultar numa candidatura convergente mais adiante, é um segundo passo. E a ideia é começar as conversas nesse sentido”, diz o dirigente do DEM.

CRISEApesar desses problemas, Maia avalia que o caminho de acerto entre os três partidos em torno de uma candidatura nacional comum já está mais do que pavimentado. “Seja em torno de José Serra ou de Aécio Neves, os três partidos certamente caminharão juntos na sucessão presidencial. E a convergência na formação dos palanques regionais é uma sinalização importante porque mostra que é uma aliança política plural.”

“Todos ganham com esse movimento. Ganham o PSDB e seu candidato, porque terá os melhores palanques regionais possíveis. Ganham DEM e PPS, que não terão o candidato à Presidência, mas reforçarão suas candidaturas regionais e participarão do projeto de poder nacional, em caso de vitória”, acrescenta Maia.

A reunião de fevereiro também servirá para que os partidos afinem o discurso contra o governo federal em relação à crise, que deve ser a agenda dominante.

Guerra quer evitar erro de 2006

Christiane Samarco, BRASÍLIA
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Naquele ano, faltaram palanques regionais a Alckmin

A antecipação da negociação em torno dos palanques de PSDB, DEM e PPS é para evitar que em 2010 se repitam situações como as que teve de enfrentar o tucano Geraldo Alckmin, na campanha de 2006, contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Não queremos chegar à situação de o candidato a presidente não poder sequer visitar determinados Estados por conta dos conflitos entre aliados, como ocorreu no passado recente”, lembrou o presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE).

Ele se referia à falta de um bom palanque para a campanha presidencial de Alckmin em Estados como Rio de Janeiro, Tocantins, Amazonas e Bahia, em que os aliados viviam às turras. Dois anos atrás, o PSDB baiano juntou-se ao PT do governador Jaques Wagner e derrotou Paulo Souto, que dividia o palanque com Alckmin.

A base inicial, formada por PSDB, DEM e PPS, também quer ampliar o arco de alianças, e, sempre que possível, a orientação é para que se dê prioridade ao PMDB. Na avaliação da direção tucana, as construções políticas locais serão favorecidas pela boa perspectiva da candidatura nacional do partido. A aposta geral é que, com presidenciáveis como os governadores de São Paulo, José Serra, e de Minas Gerais, Aécio Neves, ficará mais fácil agregar aliados aos palanques estaduais do PSDB.

Em Sergipe, o partido não só espera novas adesões, como se empenha em reduzir a distância entre tucanos e o grupo do ex-governador do DEM João Alves. No Rio Grande do Norte, o PSDB só não apoiou a candidata vitoriosa à Prefeitura de Natal, Micarla Souza, por conta das dificuldades locais com o líder do DEM no Senado, José Agripino, que apadrinhou a candidatura, e da aliança local com o PSB da governadora Vilma Faria. O resultado, além da derrota na capital, foi o enfraquecimento do PSDB no interior.

Diante de resultados como esse, Guerra propõe que a prioridade, neste primeiro semestre de 2009, seja pacificar a base. “Vamos trabalhar para harmonizar os partidos para que nosso candidato a presidente não fique com o apoio das cúpulas e sem solidariedade das bases partidárias”, afirmou Guerra, ao dizer qual é a agenda prioritária da reunião de fevereiro próximo. No Rio de Janeiro, o roteiro é “dar consistência” à aliança com o PPS e o PV, que teve 50% dos votos na capital.


O Brasil em busca de um porviroscópio

Marco Antonio Rocha
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Vai ser melhor ou vai ser pior?

Vai ser bom ou vai ser ruim?

Principalmente hoje, que é quando 2009 de fato começa - depois das comilanças, bebelanças e festanças da passagem -, essas indagações estarão na cabeça de muitos. Claro que se referem ao ano presente, em comparação com o transposto.

Pode ser até que o Brasil inteiro esteja, hoje, em busca do porviroscópio - um acelerador do tempo - inventado pelo professor Benson (personagem de Monteiro Lobato) para divisar o futuro, possivelmente mais útil hoje do que quando foi escrito O Tempo Artificial.

Todavia, duas visões de futuro se podem ter mesmo sem o aparelho do sábio lobatiano: não há nenhuma possibilidade de um 2009 melhor do que 2008, do ponto de vista da economia. Haverá pessoas, empresas e países que terão um ano melhor, mesmo com a crise, pois sempre há quem lucre com uma boa crise. Aliás, parece certo que é exatamente nelas que as fortunas mudam de mãos. Mas, no geral, o ano não será melhor. Até porque 2008 foi muito acima da média. Então, até sem crise, dificilmente 2009 seria melhor.

A segunda visão garantida é que 2009 será um ano de excepcional desafio - para o mundo e para o Brasil. Desafio que tem um enunciado direto: evitar que a recessão econômica, já iniciada, ganhe alento e se prolongue por muito mais do que apenas um ano.

Esse não é um desafio para amadores. Nem para bons improvisadores.

O presidente Lula é amador em economia, mas excelente improvisador em política. Não se sabe se esta combinação é a mais adequada para enfrentar o desafio que agora se apresenta. Foi boa para lidar com o desafio da sucessão de Fernando Henrique Cardoso.

Ciente de que era amador em economia, Lula achou melhor deixar tudo mais ou menos como estava nessa área - e viu que isso era bom, pois colheu bons frutos da boa semeadura anterior, inclusive em termos de popularidade política. Neste terreno, da política, excelente improvisador que é, não apenas transformou a oposição em ninho de baratas tontas, que até agora não encontram nenhuma boa estratégia para enfrentá-lo, como se desviou com maestria dos torpedos do mensalão, passou ao largo das armações desastrosas de companheiros “aloprados”, deixou na poeira da estrada a esquerda mais radical do seu próprio partido - que até mudou de partido - e quebrou as pernas de um “capitão do time” que pretendia desbancá-lo e assumir a liderança dentro do partido: Dirceu, O Pensador!

Em suma, nem fogo inimigo, nem fogo amigo perfuraram, até hoje, a couraça do “metamorfose ambulante”, como ele mesmo já se definiu.

Mas o tiroteio de que escapou era disparado por pessoas, ou grupos de pessoas.

O desafio deste ano não é de pessoas, nem de grupo de pessoas, é da conjuntura, um inimigo difuso. Na verdade, nem é tiroteio, é ameaça de incêndio. Como foi, até certo ponto, no começo do seu mandato, quando empresários, nacionais e estrangeiros, vaticinavam medidas tresloucadas do novo presidente. Logo, porém, ele provou que não estava ali para experimentos heterodoxos. E, graças à sua boa estrela, a isso vieram se somar os bons ventos da economia internacional.

O ventos de agora são outros, muito desfavoráveis. Não só para Lula. Ele pode ter o consolo de pensar que Barak Obama estará mergulhado numa conjuntura ainda mais desfavorável. E está, mas apenas com a vantagem de não ter de pensar desde já na sucessão. Este é o principal problema de Lula, politicamente falando - pensar na sucessão. Que essa crise econômica internacional vai dar uma travada na economia brasileira, mesmo ele - otimista, mas não tolo -, no íntimo, já sabe. O que ele não sabe é se essa travada vai ser prolongada e duradoura o bastante para solapar a sua popularidade a ponto de prejudicar seus planos sucessórios.

Vejamos. São dois anos: 2009 e 2010. Muitos economistas veem boas coisas para Lula no porviroscópio. Dizem que o Brasil, bem preparado que está, não sentirá muito a crise; e que no segundo semestre deste ano ela já terá sido superada. Se estiverem certos, o desgaste da popularidade do presidente não será nada grave, pode nem acontecer, e ele terá tranquilidade para continuar empurrando, rumo às eleições de 2010, esse vagão de carga que escolheu (será?) para sua sucessão.

No entanto, essa crise começou de maneira tão furtiva e tem deixado os governos tão confusos que outros economistas a estimam muito mais duradoura do que apenas seis meses, e bem mais perturbadora para o emprego e a renda das famílias. Nesse caso, a popularidade do presidente pode se desgastar mais e mais depressa, e seu vagão descarrilar.

Mas essas são as incertezas vindas de fora.

Aqui dentro, a margem de manobra do governo é mais estreita e se resume à velha alternativa: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. As dificuldades de crédito podem ser episódicas, mas a falta de horizontes é que trava os investimentos das empresas. Para animá-las o governo aumenta gastos e diminui impostos, o que pode criar um buraco nas contas fiscais, além do que já desponta nas transações correntes do balanço de pagamentos - e que exigiria contrair a demanda doméstica, com risco de desemprego, em vista das dificuldades para exportar e para captar recursos externos.

Se a economia crescer menos, mas a inflação não aumentar, até que dá para ir levando o barco só com marolinha. Mas, como alertavam em artigo do jornal Valor os professores Pastore e Cristina Pinotti, para o real não sofrer maiores quedas e a inflação não disparar o governo deveria “evitar o crescimento do seu consumo e do consumo das famílias”.

Só que isso é péssima notícia para os interesses eleitorais do presidente e da sua candidata.

*Marco Antonio Rocha é jornalista.

Entre um ano e outro

Paulo Brossard
DEU NO ZERO HORA (RS)


Como é sabido, em 2007 o governo pretendeu prorrogar, mais uma vez, o chamado imposto do cheque, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), que, criada para uma emergência no setor da saúde, preparava-se para transformar-se em definitiva. Para isso, recorreu a todos os expedientes. A sociedade, no entanto, entrou a reagir contra a burla de converter em permanente um tributo denominado transitório, e que servia para todos os fins, embora devesse suprir as deficiências dos serviços da saúde, como advertiu o ministro Jatene, que por este motivo deixou o ministério que honrava. E o Congresso rejeitou a prorrogação. O mínimo que se disse então foi que a administração iria parar, embora se soubesse que apenas o crescimento normal da arrecadação cobriria largamente a redução consequente à extinção do tributo. E começou a difundir que elevaria outros tributos para recuperar a perda sofrida.

Ocorre que o governo também desejava prorrogar a DRU – Desvinculação da Receita da União, para que pudesse manejar livremente 20% da Receita Federal, o que importava em alterar as verbas orçamentárias. Resultou daí um pacto publicamente celebrado entre governo e oposição. Com a anuência expressa do presidente da República, o Ministério da Fazenda assentou que não seriam majorados outros tributos, enquanto a oposição se comprometia a aprovar a prorrogação da DRU, que foi aprovada. Foi isto nos últimos dias de dezembro de 2007. Pois, nos primeiros dias de janeiro de 2008, o Executivo dava o dito por não dito e majorou tributos. Tudo isso ocorreu sem que houvesse pelo menos uma modesta plástica facial... E o ministro da Fazenda, dando mostras da facúndia de seu engenho, não corou ao participar que o presidente se comprometera em não majorar tributos nos dias finais de 2007, mas não se comprometera a fazê-lo em 2008! Como previsto, a arrecadação federal superou largamente o que deixara de ser cobrado a título de CPMF. Praticado por um particular, como seria chamado esse ato? Você compraria dele um carro usado? Cometido por altas autoridades, como se denomina?

Por que estou a ocupar-me de fato quase esquecido? Por algumas razões, inclusive por estar olvidado. Com efeito, é tamanha a massa de acontecimentos que dia a dia envolve a vida das pessoas para, no dia imediato, ceder lugar a outra onda, que também vai durar um dia, que, por mais grave sejam os fatos registrados, eles são rapidamente esquecidos. Ocorre que il y a de fagots et fagots como o que lembrei a mostrar a depressão moral que se alastra e a insensibilidade social que se expande. Ora, quando homens públicos celebram um acordo público e solene e no dia seguinte o desconsideram pura e simplesmente e ainda se referem a ele com o escárnio, estão a indicar que são capazes de qualquer coisa, como se fosse coisa de somenos.

Um homem público, seja ele qual for, não pode proceder como se a noção de honra não fosse inerente à própria função. De outro lado, as pessoas relacionadas com a função pública devem ser honradas e presumidamente o são. A menos que o exercício da função pública, qualquer que ela seja, se tenha desquitado a noção de honra. Mas, em sendo assim, que se pode esperar dessa função que é inseparável da coletividade e do Estado e que se pode esperar do Estado e da sociedade? Daí por que, em meio a todas as fragilidades humanas e sociais, há regras, singelas, mas nem por isso disponíveis e indiferentes ao presente e ao futuro da comunidade nacional. Também por isso entendi lembrar um fato quase esquecido, entre um ano que se apaga e outro que nasce.

*Jurista, ministro aposentado do STF

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
http://www.pps.org.br/2005/index.asp?opcao=editoriais&portal=

domingo, 4 de janeiro de 2009

É hora de derrubar os outros muros de Berlim

Fernando Abrucio
DEU NA REVISTA ÉPOCA


A queda do muro de berlim completa 20 anos em 2009. Essa data tão marcante parece que foi nublada pela crise econômica e pelos outros “muros” que ainda permanecem. Muita coisa precisa melhorar, mas não é justo dizer que a época da Guerra Fria era melhor. O mundo pós-1989 trouxe ganhos e potencialidades que devem ser revigorados no aniversário dessa surpreendente revolução pacífica.

Inegavelmente, a derrubada do Muro abriu mais fronteiras do que as que separavam as duas Alemanhas. Pelo ângulo político, vários países se livraram de regimes autoritários, e a democracia se tornou mais presente do que em qualquer época da história humana. Claro que ainda existem ditaduras, mas cada vez mais elas se tornam anacrônicas, atacadas como se fossem um estágio atrasado dos povos. Quem a mantém com menos pressão internacional é a China, graças à espantosa riqueza produzida por lá nos últimos 20 anos, para o mundo e para os chineses.

A exceção chinesa revela um paradoxo desse país em relação a 1989. Por um lado, a China realizou o inverso do sonho berlinense, no deplorável massacre da Paz Celestial. Ali foram enterradas as esperanças democráticas de uma geração. Por outro, o impulso globalizante trazido pela queda do Muro de Berlim foi um dos responsáveis pelas mudanças econômicas que favoreceram o estupendo crescimento chinês. Provavelmente, esse processo permitiu a convivência entre a bonança e a ditadura. A lição que podemos tirar disso é que a economia não é capaz, sozinha, de melhorar os regimes políticos. Mas a abertura de novas possibilidades de vida aos povos, como ocorreu com parte dos chineses nos últimos 20 anos, dificulta o retorno às condições anteriores. Se a crise atingir em cheio à China, o descontentamento chegará a níveis maiores que os de 1989. E será difícil manter a ordem apenas com uma solução ao estilo do massacre da Paz Celestial.

O processo globalizante impulsionado pela queda do Muro de Berlim deve ser avaliado não como um fato negativo, como agora fazem alguns, mas como imperfeito, por sua incompletude. A destruição da Guerra Fria gerou estilhaços de mudanças positivas pelo mundo, tanto no campo político como no econômico. Ganharam destaque temas que lutavam contra fronteiras físicas ou ideológicas, como a internet, o meio ambiente, a defesa dos direitos humanos e da diversidade cultural. É o “lado bom” da globalização. Mas os estilhaços positivos da queda do Muro não foram capazes de produzir uma governança global. As relações entre os países continuaram assimétricas. Prova disso é a manutenção do poder intervencionista dos mais fortes acima das instituições internacionais. Nessa linha de problemas, a ordem financeira global desenvolveu-se sem uma regulação eficaz, gerando crises.

A chegada de uma nova crise econômica global pode inspirar a volta dos sonhos de 1989

A chegada de uma nova crise econômica, agora de proporções épicas e atingindo o coração do capitalismo, pode trazer de volta os sonhos berlinenses de derrubadas dos “muros” que afligem a sociedade contemporânea. Mas eles só poderão ser destruídos se duas coisas que estiveram presentes naquele novembro de 1989, em Berlim, inspirarem as decisões dos governos, principalmente dos mais poderosos. A primeira diz respeito à palavra que mobilizou os berlinenses: unificação. Trata-se de constituir objetivos comuns e estabelecer uma atuação coordenada dos governos. A cooperação internacional é essencial para atacar os grandes problemas do mundo, seja os mais conjunturais, vinculados à ordem econômica, seja os de longo prazo, como a questão ambiental.

O outro legado importante da queda do Muro de Berlim refere-se à crença de que é possível mudar e mobilizar-se para isso. Muitos serão céticos quanto à possibilidade de melhorar o mundo em 2009, colocarão empecilhos e gerarão imobilismo. É verdade que a boa análise parte do princípio de que a imperfeição é uma marca da humanidade. Mas a história contém momentos em que os homens lutaram e alcançaram o inimaginável. É o que nos leva a retomar o sonho berlinense 20 anos depois.

Fernando Abrucio é doutor em Ciência Política pela USP, professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e escreve quinzenalmente em ÉPOCA

Esperando por Obama

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


A antecipação de medidas anticíclicas em todo mundo será capaz de evitar a depressão mundial? A resposta dependerá da eficácia das decisões do novo presidente dos EUA

O mundo espera a posse do novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, no próximo dia 20, para fazer alguma previsão sobre o que acontecerá em 2009. É como se o novo ano demorasse mais um pouco para começar, embora aqui no Brasil, tradicionalmente, todos puxem o freio de mão até o carnaval.

A guinada

Os mais otimistas apostam numa mudança política nos EUA, com muitas repercussões no mundo. A primeira seria na política internacional propriamente dita, na qual a diplomacia viria à frente do belicismo, para reverter uma concepção militarista que marcou o governo Bush e que ainda ruge na Faixa de Gaza. A segunda, em grande medida, ocorreria em relação à política de petróleo, com o gigante do Norte em busca de um novo padrão energético, menos dependente do carbono, o que seria muito bom para o planeta achar o rumo do desenvolvimento sustentável. Os pessimistas acham graça dessa expectativa, avaliam que os norte-americanos são predadores por natureza e não perderão a oportunidade de aproveitar o petróleo mais barato para reativar seu velho complexo militar-industrial e voltar a ser o que sempre foram: imperialistas. Prefiro começar 2009 com a esperança das utopias.

A propósito, li uma entrevista muito interessante do jornalista francês Marc Saint-Upéry, reproduzida no blog do meu amigo Gilvan Cavalcanti de Melo (gilvanmelo.blogspot.com), na qual ele trata da crise mundial e da esquerda socialista. Cita Ralph Nader, aquele candidato alternativo a presidente dos Estados Unidos que nunca foi levado muito a sério. Segundo Nader, quando era criança, seu pai fazia a seguinte pergunta: “Por que o capitalismo sempre sobreviverá?” E ele próprio respondia: “Porque sempre se usará o socialismo para salvá-lo”.

É mais ou menos essa lógica que me leva a acreditar que Obama adotará medidas reformadoras. Ele precisa delas para enfrentar a crise econômica. Sua política é uma mescla de trabalhismo, intervencionismo e preocupações verdes: mais sinergia entre público e privado, grandes programas estatais e ações de governo para estimular a economia e acelerar a transição a um modelo energético sustentável. Não é pouco para os EUA. Alguns podem ponderar que sua equipe é pluralista demais, tem muitos conservadores. Não importa. Como Saint-Upéry lembra em sua entrevista, o mundo já virou o disco. Segundo ele, quando o capitalismo enlouquece e desaba o mito do mercado autorregulado, se redescobre o receituário intervencionista e se escutam discursos anticapitalistas de parte de políticos conservadores. É o caso do presidente francês Nicolas Sarkozy. Por igual razão, artigos sobre o pensamento econômico de Marx, com sua “lei da tendência decrescente da taxa de lucro”, começam surgir em tradicionais revistas de economia ou são citados por figuras como o megaespeculador George Soros. É que o fetiche da mercadoria virou a “reificação” do mercado.

O tranco

A crise chegou ao Brasil, com menos intensidade do que a turma do “quanto pior, melhor” previa, mas já atrapalha a vida do governo, das empresas e dos cidadãos. Num primeiro momento, ela foi vista com jubilo pela esquerda, pois representou o colapso do neoliberalismo. Mas agora se verifica que é algo mais grave e sobra pra todo mundo: uma crise capitalista semelhante à de 1929. Porém, o peso do Estado na economia é muito maior, sobretudo na Europa e na Ásia, mesmo com a onda de privatizações e regulamentações que ocorreu na década de 1980. Essa força serviria de alavanca para governos de todos os matizes — conservadores, trabalhistas, social-democratas, populistas — reagirem à crise mundial. O governo Lula não é exceção.

Faz-se o que Lord Keynes preconizou como saída da crise em 1929, em maior ou menor grau. Sua velha teoria sobre as bolhas especulativas foi confirmada nessa crise. Mas há uma grande interrogação: a antecipação de medidas anticíclicas em todo mundo será capaz de evitar outra grande depressão? A resposta dependerá da eficácia das decisões do novo presidente dos EUA. Há uma contradição entre a superprodução mundial e a capacidade real de consumo dos países, inclusive a China, porque a renda real (principalmente a massa salarial) não acompanhou essa expansão. O déficit em conta corrente dos EUA, durante 30 anos, de certa forma alavancou a bolha do crédito e o consumismo. Gerou uma assimetria perversa do sistema financeiro, que bancou o consumo norte-americano 7% acima do que seria possível. Agora, o mundo está pagando a conta, porque tirou muito proveito disso. Nos anos 1990, a Ásia, o Brasil e a Rússia atraíram grandes fluxos de capitais e créditos; com a crise, o crédito sumiu e os investidores estão voltando aos títulos norte-americanos. Esse é o tranco.

Feliz novo século

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Nunca foi tão fácil adivinhar a agenda para o próximo ano como nesta virada de 2008/2009. Impossível prever qual será o encaminhamento das diferentes crises que nos assombram mas conhecemos as coordenadas.

Sosseguem: as bolas de cristal não serão aposentadas. Persistem enormes estoques de dúvidas e mistérios quanto ao teor das soluções mas os problemas estão claramente expostos e, como sabemos, a armação correta de uma equação é meio caminho para resolvê-la.

Socializou-se a futurologia global graças ao arsenal de ferramentas estatísticas e matemáticas. Mas não podemos esquecer que nossas percepções em relação ao futuro se aguçaram, porque aperfeiçoamos a capacidade de remexer e reciclar o emaranhado do passado. Neste jogo de prismas o espelho retrovisor desempenha papel crucial: podemos visualizar os ingredientes ancestrais das nossas angústias ou razões para rejeitar imagens obsoletas.

O que mais importa nos exercícios de profetismo é a noção do corte, a consciência da ruptura. Os filósofos de esquina até já rotularam a atual conjuntura como "pós-tudo", porque resulta de uma sucessão de barreiras derrubadas e substituídas por combinações pós-raciais, pós-ideológicas, pós-religiosas, pós-sociais, pós-modernas e pós-filosóficas.

Alguns dos dilemas que nos intoxicam completaram mil anos, estão saturados. Outros desaparecem por agregação. A ameaça concreta do aquecimento global, devidamente equacionada, aposenta um conjunto de venerandos confrontos.

Tudo indica que, pela importância do sacolejo, o século 21 esteja efetivamente começando. Assim como o anterior iniciou-se 18 anos depois da data convencional (no fim da Primeira Grande Guerra), este também ultrapassou os limites do calendário e inaugura-se quase uma década depois. O século 20 veio acompanhado por uma drástica alteração no mapa-múndi e este 21, embora sem tocar em fronteiras, varreu-as.

O mundo é uma bola. Ou uma bolha. Ao compreender esta bola e evitar as bolhas já estamos enfiados num processo terapêutico de grandes proporções que deve se prolongar por alguns anos e, obrigatoriamente, se impor aos litígios correntes.

A maior ameaça está no plano econômico – quanto a isso parece não haver dúvidas – mas enquanto persistirem ressentimentos religiosos, ou melhor, enquanto as religiões existirem como projetos de poder distanciadas de suas motivações espirituais, estaremos desperdiçando recursos e energias armazenadas para emergências globais.

A humanidade não é burra, sua agressividade parece ilimitada até o momento em que a sobrevivência corre perigo. Os fatores de dissensão situados habitualmente no campo ideológico, religioso ou racial, terão de ser superados. A conquista territorial tornou-se secundária, mais importante é a conquista de novas tecnologias, elas – e não o espaço vital – garantem as soberanias.

O fim da Guerra dos 30 Anos em 1648 e a criação em 1951 do núcleo da futura União Européia que interrompeu um ciclo de conflitos no coração do Velho Mundo são exemplos alentadores da sobrevivência do bom senso. O entendimento é possível. O arranjo funciona melhor do que os desarranjos

Uma pauta de transformações anti-catastróficas levará anos para ser implementada, impossível confiná-la em periodizações artificiais como os calendários das Copas do Mundo ou Jogos Olímpicos.

Com os cronogramas para a preservação da natureza entramos na era dos projetos decenais de grande porte e longa duração capazes de funcionar como freios para evitar exuberâncias e descontroles.

Barack Obama com a sua visão pós-racial do Sonho Americano deu um poderoso empurrão ao Século Pós-Tudo. O 4 de Novembro de 2008 pode ser o novo "Fin-de-Siècle" e sua posse a 20 de Janeiro de 2009, a primeira etapa de uma revisão em larga escala.

Feliz Ano Novo é pouco. Melhor saudar o novo século.

» Alberto Dines é jornalista

Começa o outono de Lula

Demétrio Magnoli
DEU NA VEJA


"No fim de seu segundo mandato, seremos ‘brancos’ ou ‘negros’ antes de sermos brasileiros. Eis aí a verdadeira mudança promovida pela era Lula: uma bomba social de efeito retardado que sua passagem pela Presidência deixa aos filhos e netos da atual geração"

Lula chegou ao Palácio do Planalto como a personificação de esperanças exageradas, quase ilimitadas: "Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu presidente da República: para mudar". Na hora em que começa o outono de seu segundo mandato, contudo, é tempo de investigar a sua herança: desses oito anos, o que ficará incrustado no edifício político brasileiro?

"Eu sou filho de uma mulher que nasceu analfabeta." Antes de tudo, provou-se que diplomas acadêmicos não são adereços indispensáveis para governar. Os acertos e os erros de Lula decorrem de suas opções políticas, não das supostas virtudes ou das óbvias carências associadas a um nível baixo de instrução formal. O presidente não precisou de uma universidade para preencher a diretoria do Banco Central com um time de economistas que ostenta medalhas acadêmicas incontáveis – e concepções opostas às doutrinas econômicas petistas. Bastou-lhe o faro político privilegiado do conservador que, no fundo, nunca deixou de ser. Inversamente, o elogio da ignorância, um traço ubíquo dos pronunciamentos presidenciais, não reflete uma suposta convicção de que a escola é desnecessária, mas o egocentrismo exacerbado de um líder salvacionista.

"Nunca antes neste país." O salvacionismo abomina a história, apresentando-se como o início de tudo: a virtude que exclui o vício e escreve uma nova história num mármore intocado. A democracia enxerga a si mesma como um processo de mudanças incrementais. O líder salvacionista não enxerga nada de positivo antes de seu próprio advento. Lula é uma versão pragmática, cuidadosa e mesquinha de salvacionismo. De dia, ele denuncia "a elite que nos governa há 500 anos". À noite, cerca-se de grandes empresários, a quem atende e de quem espera retribuição. O sucesso do estilo político salvacionista deriva das fraquezas de nossa democracia – e as perpetua.

"Não se enganem, mesmo sendo presidente de todos, eu continuarei fazendo o que faz uma mãe: cuidarei primeiro daqueles mais necessitados, daqueles mais fragilizados." Lula não inventou o paralelo entre a nação e a família, que faz parte da longa linhagem do pensamento conservador de raiz autoritária. Mas, com a expansão do Bolsa Família, ele encontrou uma fórmula de modernização do assistencialismo tradicional. A distribuição direta de dinheiro, no lugar das proverbiais dentaduras, não é a fonte do aumento do consumo dos pobres, que reflete o crescimento da economia em geral e do salário mínimo em particular. Pouco importa: em virtude de sua eficácia eleitoral, o Bolsa Família será adotado pelos próximos governantes, sejam quem forem. Eis um legado duradouro da "mãe do povo".

"Não tem Congresso Nacional, não tem Poder Judiciário. Só Deus será capaz de impedir que a gente faça este país ocupar o lugar de destaque que ele nunca deveria ter deixado de ocupar." O lulismo aprofundou a subserviência do Parlamento ao Executivo, que se manifesta sob a forma de um intercâmbio: o Congresso se anula politicamente enquanto os congressistas da base do governo chantageiam o presidente para conseguir cargos e favores. A troca descamba sem dificuldades para a corrupção aberta. O "mensalão" foi isto: um projeto de estabilização da base governista pela compra direta dos parlamentares. Ele acabou exposto, mas apenas em virtude de uma fortuita ruptura interna à ordem da corrupção. Lula não caiu, apesar de tudo, e a oposição nem sequer apresentou um processo de impeachment. A elite política aprendeu do episódio que um presidente popular não será punido nem mesmo se distribuir dinheiro a parlamentares.

"Se tem uma coisa que está dando certo no governo é a política econômica. O PT não pode se esconder, procurando motivos para as derrotas, com críticas a ela." O PT morreu como partido da mudança antes da vitória eleitoral de Lula, com a Carta ao Povo Brasileiro, que o converteu em partido da ordem. Nos partidos social-democratas europeus, transições similares verificaram-se antes e de modo diferente. Eles renunciaram publicamente a seus velhos programas revolucionários, adotando programas fundados nos cânones da democracia e da economia de mercado. O PT, não: embora, na prática, sustente a ortodoxia econômica do governo Lula, suas resoluções clamam pela ruptura socialista, denunciam a liberdade de imprensa e fazem o elogio da ditadura de partido único cubana. A cisão entre o gesto e a palavra não apenas corrompe politicamente o partido como também alimenta um tipo mais virulento de corrupção.

"Se eu falhar, será o fracasso da classe trabalhadora." Uma máquina clandestina petista, instalada dentro do Planalto, conduziu as operações do "mensalão". Militantes partidários em altos cargos públicos realizaram a quebra de sigilo do caseiro Francenildo, um crime de estado que passará impune. Se acreditamos que temos a chave do futuro e uma missão histórica redentora, não hesitamos em usar de qualquer expediente para realizar as finalidades partidárias. O PT não consegue estabelecer distinções entre as instituições públicas e o partido. No fundo, interpreta a democracia como instrumento transitório para a sua perpetuação no poder. Depois de Lula, o maior partido brasileiro continuará a figurar como elemento de distúrbio no sistema político.

"Quem chega a Windhoek não parece que está em um país africano. Poucas cidades no mundo são tão limpas." Os estereótipos raciais clássicos, afundados na lagoa do senso comum, são um componente óbvio da rasa visão de mundo de Lula. Entretanto, o programa de racialização da sociedade brasileira conduzido por seu governo decorre de um frio cálculo político. O presidente quer conservar na sua ampla coalizão as ONGs racialistas, financiadas pela poderosa Fundação Ford. Em nome dessa meta, patrocina uma enxurrada de leis raciais com repercussões na educação, no mercado de trabalho e no funcionalismo público. No fim de seu segundo mandato, todos os direitos dos cidadãos estarão mediados e condicionados por rótulos oficiais de raça. Seremos "brancos" ou "negros" antes de sermos brasileiros. Eis aí a verdadeira mudança promovida pela era Lula: uma bomba social de efeito retardado que sua passagem pela Presidência deixa aos filhos e netos da atual geração.

Por uma Nação mais cidadã

Gaudêncio Torquato
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


O que melhor poderia ocorrer ao Brasil em 2009? Cada brasileiro tem uma resposta na ponta da língua. Mais dinheiro no bolso, saúde, garantia de emprego, maior segurança nas cidades, harmonia social. Da parte dos governantes, o termo-chave é crescimento. A indicação a resumir as expectativas gerais pode ser esta: a expansão do Produto Nacional Bruto da Felicidade, o PNBF, que é o grau de satisfação das classes, medida por um conjunto de fatores econômicos e sociais. A meta, vale reconhecer, resvala pelas tortuosas curvas da imponderabilidade, comum às nações e desafio permanente de núcleos burocráticos que buscam e testam modelos para viabilizar as administrações e driblar os obstáculos, principalmente em ciclos de crise como este que abala as economias mundiais e cujo impacto - de acordo com todas as previsões - será mais forte no País no primeiro trimestre deste ano. Existe, porém, um amplo espaço de previsibilidade, com crise ou sem crise, que pode ser preenchido com decisões focadas para a melhoria do bem-estar social. Este território é o do entendimento sobre a abrangência da política e leva em conta o fato de que ela não é apenas a arte do possível, mas a vontade de viabilizar coisas que parecem impossíveis.

A começar, por exemplo, com as tão propaladas reformas política e tributária. O País vive uma crise crônica porque a natureza de sua política é incompatível com um modelo racional de Estado e uma gestão moderna de democracia. Em consequência, vive-se uma situação de precária governabilidade, agravada por tensões entre instituições. Há consenso sobre o diagnóstico. Entre as ações prementes, precisamos reformar o sistema político-eleitoral; modernizar a estrutura do Estado, a partir de limites sobre competências entre Poderes e redefinição de atribuições entre entes federativos; consolidar a legislação infraconstitucional, que mantém buracos desde 1988, e atualizar os eixos das relações do trabalho. Os cidadãos - de todas as classes, vale lembrar - precisam enxergar no Estado braços protetores, e não uma bocarra para engolir impostos, encargos e contribuições. Querem um sistema previdenciário que lhes retribua o peso de anos de contribuição. Uma escola pública de qualidade e capaz de abrigar milhões de brasileiros que permanecem fora do sistema educacional. Sonham com os tempos bucólicos de segurança nas calçadas de suas casas. Será que o governo não pode avançar em matéria de segurança pública? Ninguém pode ser contrário a programas de redistribuição de renda. Mas assistir 11 milhões de famílias por meio de bolsas, sem lhes dar uma saída para esse modelo acomodatício, é aprofundar o buraco, construir a cama perpétua da inércia.

Como interstício entre anos eleitorais, 2009 é chave para abrir a porta de reformas. O argumento é o de que medidas de cunho político só serão adotadas em 2014, e não em 2010. Dar-se-ia prazo suficiente para maturação das decisões. Não dá mais para esticar o cordão da crise intermitente que amarra o País às raízes arcaicas. O xeque-mate no jogo é a crise econômica. Diques pontuais para atenuar as ondas da pororoca (maior que a marolinha de Lula) só serão eficazes se acompanhados de reformas do Estado e de padrões políticos. Reformar, como se sabe, é mudar, inovar, avançar, recondicionar, conceitos que ultrapassam limites físicos para abrigar questões comportamentais. Implica mudança de atitudes. O presidente da República deve ser o primeiro a dar o exemplo, impulsionando vontades transformadoras, incentivando avanços, empurrando o Executivo em direção às reformas, sem pretensão de expandir o mandonismo do sistema presidencialista. Sob essa inspiração, o Palácio do Planalto só usaria o instrumento excepcional da medida provisória em caso de urgência e relevância. A sinalização de boa vontade e respeito ao sistema normativo seria reconhecida, contribuindo para aperfeiçoar sua imagem burilada de maneira tosca pelo cinzel do populismo.

Os corpos parlamentares, do Senado e da Câmara, tocados pela ideia de que as crises - a econômica e a política - apontam para a necessidade de decisões altaneiras, haverão de encontrar aquele traço de união, raro, mas não impossível, em que visões egocêntricas olharão para o altar da Pátria para ali depositar o fruto do consenso, consubstanciado em ações para combater o atraso. Se não é possível avançar muito, pelo menos se tente fazer o máximo. O que não se admite é intransigência por obra e graça de artimanhas com vista ao jogo eleitoral futuro.

No que diz respeito ao Judiciário, já se percebe que a justiça sai dos longos corredores das Cortes para chegar às ruas. Ainda é lenta e pouco acessível ao cidadão comum. Não se nega, porém, que os juízes começam a vestir uma toga de matiz mais humano. O ano poderá ser menos inóspito no campo das relações harmônicas entre o Supremo Tribunal Federal e os Poderes Executivo e Legislativo. O que parece inadmissível é ouvir o presidente da República falando mal de ministros. E estes, mesmo sob a elogiável intenção de popularizar a locução, poderiam ser mais cautelosos e menos afoitos no uso de adjetivos. Que tal um acordo para ajustar condutas ao tempero constitucional da harmonia, autonomia e independência dos Poderes?

O que se espera, enfim, dos atores do cenário institucional é o compromisso com os valores mais sagrados do sistema democrático e, sobretudo, a vontade de contribuir para elevar os padrões da cidadania. Em suma, espírito público, aquela chama cívica que Tocqueville enxergou, há 170 anos, quando descreveu a democracia norte-americana: “Existe um amor à pátria que tem a sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e indefinível que liga o coração do homem ao lugar em que nasceu. Confunde-se esse amor instintivo com o gosto pelos costumes antigos, com o respeito aos mais velhos e a lembrança do passado; aqueles que o experimentam estimam o seu país com o amor que se tem à casa paterna.”

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político

Torcer pelo Brasil em 2009

Suely Caldas
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Como o resto do mundo, o Brasil também demorou a acordar para a crise econômica global. Governo, empresas, bancos, consultores econômicos, ninguém prestou atenção, não souberam (ou não quiseram) avaliar os sinais que vinham de fora do País desde o último trimestre de 2007 e se acentuaram nos meses seguintes de 2008. Com a euforia da Bovespa, a produção industrial disparando, o crédito em expansão, o emprego crescendo, o Brasil mergulhou junto com o mundo na fantasia da falsa e inflada bolha, que encobria a realidade e turvava os maus presságios. O principal deles foi a rápida deterioração do setor externo da economia, os crescentes déficits nas transações com o exterior, que pioravam a cada mês e eram desprezados nas previsões econômicas.

Sempre muito cauteloso, até o Banco Central deixou passar: na divulgação mensal que fazia dos números, o BC minimizava o déficit externo, ignorava-o com a desculpa de que ele seria compensado pela entrada de capitais de investimento. E era verdade, até porque empresas estrangeiras investem em períodos de crescimento econômico. A explicação não estava errada. Errado foi descuidar de investigar o que acontecia no setor externo, por que empresas estrangeiras remetiam cada vez mais dólares para suas matrizes, por que o volume de mercadorias exportadas caía a cada mês (o problema era mascarado pela receita com exportações, que crescia junto com o preço das commodities e os analistas se deixavam enganar).

Na época, o secretário de Comércio Exterior, Welber Barral, ligou para contestar texto publicado aqui neste espaço, em 3 de agosto de 2008, advertindo para a queda do volume das exportações. Garantia não haver queda alguma e negava cálculos feitos pela Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex). Quem alertasse para a realidade era visto como ave de mau agouro, um torcedor contra o Brasil. Havia um clima de cumplicidade geral, as boas notícias inebriavam e eram usadas para ignorar os sinais da crise. Como o presidente Lula tentou fazer todo o tempo, dizendo que a crise não passava de uma marolinha. E ainda faz hoje, aconselhando os brasileiros a gastarem, e não se prepararem para dias piores que começaram a chegar com a crise.

É compreensível que o principal dirigente da Nação não atue como um anunciador do apocalipse e saia por aí levando mensagens negativas. Ele deve usar a liderança para injetar ânimo na população, estimulá-la a reagir, resistir. Isso é uma coisa. Outra muito diferente é desdenhar do poder da crise, ignorá-la, levar ilusão e fantasia a quem já tem tão pouca informação. E outra ainda mais grave é enganar a si próprio, não agir antecipadamente, mesmo que de forma reservada, para prevenir efeitos negativos da crise que se aproximava.

É verdade que as pesquisas do IBGE apontavam para a direção de um PIB que poderia chegar até a 6% em dezembro, não fosse a desaceleração a partir de outubro. Motivo de alegria, comemoração. O governo, contudo, não se deve deixar inebriar, pode e deve liderar a festa, mas tem obrigação de agir com sensatez, mesmo que silenciosamente e sem alarde, prevenir-se contra os efeitos da crise com ações concretas. E isso o governo Lula não fez. Apesar de todos os sinais, desde o final de 2007, só acordou e agiu depois do choque assustador da falência do banco Lehman Brothers, no fim de setembro. E assim mesmo desdenhando com a marolinha.

Espalhada a partir do centro nevrálgico do crédito em países ricos, no primeiro momento a crise atingiu com força justamente esses países, mas tem enorme poder de contagiar os emergentes, mais fracos, sem poupança própria para suprir o financiamento à produção e ao investimento e que precisam disputar o escasso crédito nos países ricos. Não foi por outro motivo que a poderosa Petrobrás teve de recorrer a crédito inédito da Caixa Econômica Federal, primeiro de R$ 2 bilhões, depois mais R$ 1,5 bilhão. Se nem a Petrobrás consegue crédito externo, o que esperar de todas as demais empresas brasileiras?

São preocupantes as perdas em operações de comércio exterior decorrentes da crise. Em agosto a corrente de comércio (exportações mais importações) somou US$ 1,772 bilhão e mês a mês tem caído, desabando para US$ 1,151 bilhão em dezembro, uma queda de 35% em apenas quatro meses.

Neste 2009, resistir, decidir no momento certo, agir com realismo e sem levar a ilusões é a melhor torcida pelo Brasil. E nosso maior desejo é que tenhamos todos um feliz ano-novo!

*Suely Caldas, jornalista, é professora de Comunicação da PUC-Rio

A balança e o balanço do dólar

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O dólar subiu muito e, em tese, ameaça a inflação; esse vai ser o problema do BC na decisão sobre os juros

NOS PRÓXIMOS meses haverá tiroteios a respeito do efeito do encarecimento do dólar sobre a inflação. Como quase todo mundo reconhece que o repasse da desvalorização do real para os preços do varejo costuma demorar (três meses? Seis? Quem dá menos?), as escaramuças ainda são suaves.

A desvalorização do real encarece produtos importados. Afeta ainda os preços domésticos de produtos que o país exporta. Como o exportador recebe mais reais pelos seus produtos, dada a desvalorização da moeda nacional, tende a "cobrar" mais também no mercado interno ou influencia os preços dos produtores que não negociam no mercado externo, "tudo o mais constante". O problema está, pois, aí, no "tudo o mais constante", pois os preços dependem ainda de outros fatores.

Os economistas estimam o repasse da desvalorização do real para os preços domésticos calculando como a inflação se comportou em episódios anteriores de perda de valor da nossa moeda. Em cálculos mais precisos, procuram levar em conta também fatores como a demanda doméstica e externa. Como há muitas variáveis em jogo, influenciando-se de modo diferente a cada momento, tais cálculos são imprecisos. Mas, no fim das contas, a gente sabe que desvalorizações da moeda não saem de graça. Quão mais caros os preços devem ficar é que são elas.

Nos 12 meses que correram até agosto de 2008, o preço das importações brasileiras (em dólar) tinha subido em média uns 20%. No mesmo período, o dólar perdera uns 18% de seu valor nominal em relação ao real (usamos apenas o dólar para simplificar o exemplo). Ou seja, os preços subiram em dólares, mas o real se valorizou. O efeito do encarecimento dos importados sobre os preços domésticos tendia então a ser "compensado" pelo do câmbio. Desde agosto, com a crise, o dólar subiu 40% (pela cotação média do mês, até novembro). O preço dos importados em dólar subiu 4,5%. Em tese, os importados ficaram quase 46% mais caros, em reais.

Quanto desse aumento de preços em reais é enfim repassado para o varejo? Há problemas variados nessa conta, como se dizia. Os empresários trabalhavam, de fato, com qual valor do dólar em agosto? Com R$ 1,60? Ou não reduziram seus preços quando o dólar caía (isto é, teriam "gordura" para queimar)? Trabalham agora com R$ 2,30? O dólar vai ficar por aí, vai cair ou vai subir? As empresas que lidam com produtos "comercializáveis" no exterior (exportação e/ou importação) vão conseguir repassar seus preços, tanto no mercado doméstico como externo? Desde outubro, a quantidade de produtos exportados pelo país vem caindo, e a demanda doméstica também deve cair. Com demanda menor, é mais difícil repassar aumentos para o consumidor.

No último trimestre de 2008, houve uma freada brusca na economia brasileira, por ora mais observada no "atacado" e em alguns setores do varejo, como o de automóveis e de alguns outros bens duráveis. A utilização da capacidade instalada das fábricas caiu muito e rápido. O comércio mundial não deve crescer em 2009. Mas o dólar subiu muito e, em tese, ameaça a inflação. Esse vai ser o problema do Banco Central, neste mês, na decisão sobre os juros.

Cavaleiros do apocalipse

Rubens Ricupero
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Uma solução negociada para o conflito entre Israel e os palestinos teria incalculável impacto político-econômico

DOS QUATRO maiores focos de conflito não solucionados no degelo pós-Guerra Fria e que se arrastam há mais de 50 anos, três são vulcões intermitentes: Taiwan, Caxemira e Coreia do Norte. Só a questão árabe-israelense é vulcão em estado de erupção quase ininterrupta. A dormência dos primeiros se explica porque todos os envolvidos (ou seus aliados) são potências nucleares, sujeitas ao mesmo mecanismo de autocontenção da violência, devido ao temor de que a guerra se converta de fria em incandescente e atômica.

No quarto exemplo, o desequilíbrio de poder e a impossibilidade moral de que o país forte elimine o outro lado condenam os adversários à violência permanente: ou a do terrorismo suicida, ou a do castigo desproporcional e inconclusivo. A inércia das potências internacionais sugere que elas se acomodariam ao status quo como mal menor. O problema é que "desequilíbrios estáveis" tendem a buscar equilíbrio mais duradouro, quase sempre com a explosão de crises perigosas. É o que se viu no domínio econômico-financeiro e se está vendo na faixa de Gaza.

Mesmo nas tréguas da carnificina, o conflito age como tumor contido na área da limpeza operatória, que se espalha por metástase pelo organismo. Começa pela radicalização e pelo endurecimento do adversário, de que são expressão o Hamas palestino e o Hizbollah libanês. Não para aí, todavia. Age como catalisador de todas as frustrações do mundo árabe-islâmico, precipitando-as sob forma violenta.

Liquidado com o Kosovo o contencioso balcânico e controlado o do Cáucaso pela derrota da Geórgia, a agenda mundial de crises se "islamizou". Isto é, em boa parte pelo efeito do contágio da questão crucial entre Israel e os palestinos, passou a ser dominada por ameaças que, embora de especificidade própria, têm em comum oporem ocidentais a muçulmanos: o terrorismo da Al Qaeda, Afeganistão-Paquistão, Irã, Iraque, Síria, Líbano, até a Somália e o corno da África.

A solução dessas últimas pouco altera o panorama geral da região, como se percebe da relativa redução da violência no Iraque. Em contraste, uma solução negociada entre Israel e os palestinos teria na área impacto político-econômico incalculável, comparável ao que o fim da Guerra Fria teve no mundo até em relação a problemas independentes como o apartheid.

Se fosse verdade que nenhuma questão grave se resolve sem uma crise aguda, Obama deveria estar agradecendo à sua estrela por lhe proporcionar a dupla oportunidade de enfrentar os dois maiores desafios econômico e político contemporâneos, no início do governo e ao mesmo tempo.

Dependem ambos não somente, mas acima de tudo, dos Estados Unidos, do poder que só esse país possui, da disposição de utilizá-lo contra os poderosos lobbies que sempre impediram soluções de compromisso nesses setores, articulando as políticas adequadas, que, num caso e no outro, terão de contar com a participação ativa da ONU (Organização das Nações Unidas) e da maioria dos países. Tudo, enfim, ao contrário do que fez o atual governo Bush.

Dizia o candidato que os norte-americanos, sim, podiam e que desejavam mudar. Terá agora de passar dos slogans aos atos e provar que funcionam na realidade. Em outras palavras, o teste imediato a que será submetido o futuro presidente estará à altura das gigantescas e talvez excessivas expectativas que despertou.

Rubens Ricupero, 71, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
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sábado, 3 de janeiro de 2009

O meu Berlinguer? Um solitário no mar

Pietro Ingrao
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: Gramsci e o Brasil

A autobiografia de Pietro Ingrao, Volevo la luna, detém-se numa fase crucial da sua vida, a morte de Moro e a recusa de ser presidente da Câmara de Deputados pela segunda vez. Daí, do final dos anos 1970, parte o diálogo entre Claudio Carnieri e o dirigente político, recolhido no livro La pratica del dubbio (San Cesario di Lecce: Ed. Manni, 2007), de que a seguir publicamos um trecho.

Pietro Ingrao, nascido em 1915, é figura histórica do velho PCI e referência moral da esquerda italiana. Dois dos seus livros estão disponíveis em português — As massas e o poder (Trad. Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980); Crise e terceira via (Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981) — e constituem ainda hoje, mesmo num contexto inteiramente mudado, pontos de referência para a reflexão sempre atual sobre democracia política e pensamento socialista.

E você, o que pensava? A seu ver, quais eram os limites da linha berlingueriana?

Resumiria com uma palavra: Europa. As deficiências do PCI sobre esta questão eram antigas. Mesmo com os companheiros franceses nosso entendimento era muitas vezes turvado pela obstinada rivalidade, que já surgira — e eu vivera isso pessoalmente — em alguns encontros entre os partidos comunistas realizados em Moscou. Há anos jurávamos fraternidade com aqueles companheiros franceses; em seguida, irrompia sua rivalidade irrefreável.
Já na metade dos anos setenta, Berlinguer tinha buscado ampliar o alinhamento comunista no Ocidente, dando vida a uma aliança tripolar com os “vermelhos” da França e da Espanha, e com seus líderes (Carrillo, Marchais), sob a fórmula do eurocomunismo. O entendimento a três entre comunistas italianos, franceses e espanhóis se efetivara sobretudo por causa do impulso e da autoridade de Enrico, muito apoiado, antes de mais nada, pelos companheiros espanhóis, e por Carrillo mais do que qualquer outro. A duração daquela fase foi breve, até 1977, quando surgiram disputas sobretudo com os franceses e com Marchais.

Mas o tema mais importante que tínhamos diante de nós era o entendimento com os socialdemocratas e com as correntes católicas avançadas, que se mostravam de novo vigorosamente presentes no cenário da Europa. O próprio Berlinguer começou a agir nesta direção, mas não sem algumas hesitações, que só desapareceram no início dos anos oitenta.

Aí veio a tragédia que nos abalou e comoveu a todos. Berlinguer trabalhava freneticamente naqueles anos: no seu esforço de união com os comunistas da Europa e com as correntes inovadoras do país, no qual de modo algum se extinguira o veneno do terrorismo, e também aprofundando sua nova atenção à esquerda européia e ao Terceiro Mundo. O líder estava nas ruas. Participava da luta cotidiana. Viajava pela Europa. Quando se precipitou a desgraça de modo fulminante.

Estava num comício em Pádua. Enquanto falava de um palanquezinho qualquer, foi colhido no meio de uma frase por um ataque fulminante. Desabou repentinamente no chão. Entre a dor e o susto foi levado rapidamente para um hospital. E lá, em Pádua, viveu dias desesperados entre a vida e a morte: sem nunca conseguir pronunciar uma só palavra.

Fui correndo para aquele hospital e vivi sua agonia hora a hora. Pertini [presidente da Itália] também veio e ficou durante dias ao lado do enfermo mudo, que parecia estático a perscrutar um horizonte distante e indizível. E depois o fim. E o choro incontido dos companheiros prostrados sobre o corpo, as invocações sem esperança, com uma dor que se igualava ao amor por ele, que era grande. Por fim, o corpo coberto por véus e flores começou sua dolorosa viagem pela península: com paradas em dezenas de estações, lotadas por pessoas em lágrimas, e, afinal, pelas ruas da capital, onde as vagas de uma multidão jamais vista, congeladas num silêncio incrível, o acompanharam até a praça San Giovanni. Vieram homenagear os restos mortais até mesmo os adversários de sempre: Guido Carli [presidente da Confindustria entre 1976 e 1980], conservador declarado...

E hoje, de tão longe, como vê aquele líder? Como o lê? O que sente?

Antes de tudo, tenho um sentimento de orgulho humano. Orgulho em razão da ligação dele com uma causa: a causa histórica de libertação do humano. E, também, simpatia pela sua singular paixão: vagar solitário pelo mar, quase a interrogar o horizonte. Vagabundo e silencioso. Vê-lo desabar daquele palanque, no qual falava do futuro do continente, pareceu-me uma violência cruel.

Mas você nunca foi “berlingueriano”. Nunca teve uma relação de familiaridade com ele. Por quê?

É difícil dizer. A memória desta pessoa está demasiadamente perto. A imagem impressa na minha mente é a de Berlinguer num barco, que avança perscrutando o horizonte. Um solitário no mar... E, como que misturadas na sua vida, no seu sentimento profundo, uma sede de solidão e ao mesmo tempo uma extraordinária capacidade de comunicação com as pessoas. Talvez porque jamais tenha fingido. Com um limite, talvez: ponderava tudo obsessivamente. Jamais se abandonava (pelo menos assim me parecia) à fantasia. Entre nós dois houve grande estima e recíproco respeito. Familiaridade, não. No fundo, os nossos vocabulários eram diferentes.

Voltemos ao início dos anos 1980, quando você foi trabalhar no CRS [Centro per la riforma dello Stato]. O que você fazia? O que é que pesquisavam? Antes de mais nada, onde se instalaram?

Lembra-se daquela rua em círculo, que, em Roma, leva do fim da via Nazionale até a Praça Veneza? Numa reentrância havia uma pracinha com uma pequena fonte na qual freqüentemente bebíamos. A sede do novo CRS ficava justamente diante daquela fontezinha e do edifício no qual, até 1956, tinha sido a sede de L’Unità: ali — naquela curva da rua — eu trabalhara furiosamente durante aproximadamente dez anos: primeiro como responsável pelo noticiário de Roma, depois como diretor de L’Unità. Naquele mesmo edifício havia um pequeno e excelente estabelecimento, do qual gostávamos muito: a livraria Tombolini. Voltei a vê-la quando passei a trabalhar no CRS, e não na via delle Botteghe Oscure [antiga sede do PCI]. Era muito agradável descer das nossas salas e — depois de tomar o ansiado café — escarafunchar as estantes daquele livreiro inteligente, sempre na expectativa de achar algumas novas pistas interpretativas sobre esse ardente século XX.

Em resumo, era a retomada de um hábito mais antigo. Naquelas incursões pelas estantes, nos anos de juventude, o que atraía sua curiosidade? O que é que você buscava?

Antes de mais nada, buscava textos que se relacionavam com minhas paixões de sempre: cinema, poesia. Mas também clássicos da política ou textos heréticos para os quais estranhamente o fascismo tinha deixado alguma abertura, eventualmente de editoras imprevistas, como, por exemplo, a Corbaccio. Quanto à literatura, buscava não tanto autores italianos, que há tempos estavam nas estantes da minha casa (Ungaretti, Montale, Quasimodo e todo o grupo de Circoli, a grande revista de poesia sediada na Liguria e dirigida por Adriano Grande).

Agora me interessavam autores do século XX europeu ou da literatura americana dos tempos de Roosevelt:

Faulkner, sobretudo, e Steinbech, seus textos mais jovens. Ratos e homens, por exemplo, este livro singular e ambíguo. Mas, acima de todos, para mim estavam aqueles grandes autores que haviam mudado, junto com o vocabulário e o catálogo das palavras, a leitura do humano: Joyce, antes de qualquer outro, e Kafka, o qual nos falava da cidade inesquecível que é Praga. Empalidecia o prazer do fraseado literário, ao qual o cenáculo florentino me arrastara. Operava uma nova língua, que se interrogava sobre o sentido das vicissitudes do homem.

Vejam o video com Pietro Ingrao:

De olho em 2010, TRE monta pacote de ações

Flávio Tabak
DEU EM O GLOBO


Tribunal do Rio identifica propagandas de possíveis candidatos, e presidente avisa: "A vassoura vai passar"

Mal tomaram posse os novos prefeitos e vereadores, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio (TRE) decidiu se antecipar ao calendário para começar a combater, desde já, irregularidades eleitorais como as que marcaram a disputa de 2008. Uma série de medidas será posta em prática logo este ano, antecedendo um pacote de regras para a campanha de 2010.

Entre elas, a elaboração de dossiês sobre possíveis candidatos que começaram a se promover antes do período permitido, a proposta de antecipação do calendário de registro eleitoral e convenções, a análise de gastos com propaganda institucional da máquina pública, e a criação de uma força-tarefa para atuar no interior e coibir abusos previamente.

Rigor nas contas de campanha

O presidente do TRE, desembargador Alberto Motta Moraes, determinou à equipe de fiscalização que analise a movimentação de políticos que se anteciparem ao calendário eleitoral. Operações não podem ser feitas em 2009 por limites da legislação, mas um banco de dados passou a ser montado pelo TRE.

Como antecipou Ancelmo Gois em sua coluna no GLOBO, o prefeito reeleito de Nova Iguaçu, Lindberg Farias (PT), espalhou outdoors pelo estado desejando "vitórias em 2009". Os fiscais do TRE já tinham identificado a ação do petista, cotado para disputar a sucessão do governador Sérgio Cabral: são 40 outdoors com a foto de Lindberg, distribuídos entre Nova Iguaçu, Duque de Caxias e Rio.

- Vamos acompanhar esse tipo de propaganda na rua e também em rádios e emissoras de TV para montar dossiês. Não podemos fazer nada em 2009 porque não é ano eleitoral, mas já começaram os agradecimentos, como os desejos de feliz Natal. Eleito um, no segundo seguinte já começa a campanha para o seu substituto. Eles podem instalar essa placas ter até o dia 31 de dezembro. De lá para a frente, a vassoura vai passar. Não tenha dúvida. Também será criada uma força-tarefa de fiscalização só para atuar no interior - avisa o presidente do TRE.

Uma das principais preocupações do TRE é com propagandas institucionais de prefeituras e governo do estado para fins eleitorais. Dados do Tribunal de Contas do Estado e do Município serão analisados para saber quanto os governantes estão destinando para propaganda. Se o gasto em anúncios nos seis primeiros meses de 2010 for maior do que a média dos três anos anteriores, está configurada irregularidade eleitoral. Motta Moraes também prevê que, como serão eleitos representantes de vários cargos, as contas das campanhas serão "assustadoras":

- Vamos desenvolver uma atividade de aproximação com os tribunais de contas para acompanhar gastos do estado e dos municípios. A propaganda eleitoral nos chamou muita atenção no ano passado. Em 2010, serão pleitos com grande movimentação financeira, e o despejo de valores nas campanhas será assustador. Nunca chega à Justiça Eleitoral exatamente o que está nas prestações de contas, mas não é nada que ultrapasse 25 a 30% da realidade. Os CPFs e CNPJs serão checados, um a um, nos relatórios de gastos.

Outro ponto a ser resolvido é o número de recursos que chegaram ao TRE no ano passado. Entre pedidos de impugnação de candidatura, multas e acusações, o tribunal viu dobrar a quantidade de municípios com disputas judiciais durante o processo eleitoral. Segundo levantamento feito pelo presidente, nas eleições de 2000, chegaram ao pleno do TRE recursos de 48% das cidades do estado. Em 2004, o número subiu para 62%, e, em 2008, atingiu 98%.

Prazo menor para convenções

Como o número de juízes não aumenta de acordo com a quantidade de processos - são sempre sete membros -, o tribunal vai tentar antecipar em três meses o calendário de 2010 para dar tempo de julgar os recursos. Segundo Motta Moraes, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Carlos Ayres Britto, concordou com a proposta, que precisa ser aprovada no Congresso até outubro para vigorar no ano que vem:

- Chegamos a julgar 394 processos em um dia. Por isso queremos antecipar o calendário eleitoral, trazendo para a primeira quinzena abril o registro de candidatos e convenções, que geralmente são feitos em julho. Assim teremos mais tempo. Fiz essa sugestão no colégio de presidentes dos TREs, e o ministro Ayres Brito achou sensacional.

'Os milicianos serão os grandes cabos eleitorais em 2010'

DEU EM O GLOBO

Além de cuidar de prazos legais e entraves jurídicos, o presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio, desembargador Alberto Motta Moraes, acompanhou de perto a Operação Guanabara nas eleições de 2008. Criada em conjunto com as Forças Armadas para permitir a circulação de moradores e candidatos em áreas consideras currais eleitorais da milícia ou do tráfico, Motta Moraes não descarta outra operação do tipo em 2010 e prevê mais problemas com criminosos na política.

Qual é a avaliação que o senhor faz da atuação das tropas na eleição do ano passado?

ALBERTO MOTTA MORAES: O Exército não veio para cá com a finalidade de acabar com as milícias. Foi uma idéia do TSE que nasceu no nosso tribunal. O ministro Carlos Ayres Britto ficou muito preocupado com a Liga da Justiça quando soube que era um grupo de criminosos. As Forças Armadas deram uma demonstração de que se pode resolver o problema, mas sua saída representou que o poder público virou as costas para aquela situação. Não era para o Exército continuar, mas o resultado foi esse. Os moradores continuaram entregues. Vai haver necessidade de uma nova atuação em 2010. Ainda não sei se com Forças Armadas.

O senhor prevê mais registros de candidatos ligados a grupos criminosos nas eleições de 2010?

MOTTA MORAES:
Não tenho dúvida de que os milicianos serão os grandes cabos eleitorais nas eleições de 2010. A nossa Zona Oeste é território dominado, disso ninguém tenha dúvida. A Baixada Fluminense ainda é uma zona meio inexplorada, mas eles estão ali. Também existe milícia em Cabo Frio, Campos, Magé, Macaé, Itaboraí. Eles estão se expandindo e são profundamente organizados. O tribunal vai procurar tentar minimizar, mas não temos atividade policial. Historicamente, falávamos que o Nordeste tinha currais eleitorais. Hoje nós temos, nos grandes centros, currais que são exercidos pelas milícias e pelos traficantes. Tem bancada ruralista, evangélica, católica, mas também existe a miliciana. A do tráfico talvez apareça para a próxima disputa.

Como o senhor imagina a atuação desses grupos no ano que vem?

MOTTA MORAES: Na eleição de 2008, em quase todos os lugares da cidade havia o candidato local e o majoritário absolutamente definidos. Em 2010, vamos ter uma coisa um pouco mais concentrada, porque estaremos elegendo os legisladores estaduais. Se nada for feito, vamos ter também novos representantes desses grupos de marginais na Assembléia Legislativa e na Câmara dos Deputados. Os governos têm de assumir a responsabilidade de enfrentar e não dar as costas, como vi fazerem no ano passado. Para os moradores, o que fica é essa certeza.

Além do crime na política, as eleições de 2008 no Rio foram marcadas pela distribuição de panfletos apócrifos. A prática deve ser combatida com mais rigor pelo tribunal?

MOTTA MORAES:
Acho que esse tipo de procedimento surpreendeu pela forma quantitativa, mas já apareceu na eleição de 2006, quando a candidata Jandira Feghali recebeu aqueles torpedos que diziam ser ela a candidata do aborto. Houve uma evolução de lá para cá, e não tenha dúvida de que será preparado para 2010. Pretendemos ter elementos para apurar o máximo de denúncias. Vamos usar todos os meios de fiscalização.

Sombra do passado

Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO


O Brasil viverá os primeiros meses de 2009 sob números ruins, que ainda têm a ver com 2008: na terça, dia 6, sai o resultado da produção industrial de novembro. As previsões de economistas e consultorias são de queda de 4% a 5%. A herança do ano passado ainda trará outros números negativos, como o PIB do quarto trimestre. O desafio deste ano não vai ser evitar a crise, mas reduzir seus efeitos.

A produção industrial caiu 1,7% em outubro e continuou caindo nos meses seguintes. Na primeira quinzena de dezembro, a venda de veículos caiu 3% em relação aos primeiros 15 dias de novembro, mês que já tinha registrado queda de 22% nas vendas, segundo a Fenabrave. A própria entidade prevê que este ano a queda total das vendas de veículos chegará a 19%. O desempenho tem efeito em toda a cadeia produtiva. Além de o mercado interno estar fraco, a sombra que paira sobre o setor automobilístico é o temor em relação ao destino das empresas na matriz. As siderúrgicas continuam reduzindo a produção.

A MCM Consultores e a Ativa prevêem queda de 4% na produção industrial de novembro, a MB Associados projeta queda de 4,5%, o Banco ABC e o Departamento de Estudos Econômicos do Bradesco esperam uma retração de cerca de 5%. E a produção industrial afeta o PIB.

O próprio Banco Central acredita que a desaceleração na atividade econômica fará com que o número do PIB do quarto trimestre seja de 0,7%. A MB Associados já revisou para baixo o crescimento do PIB para 2009, de 2,8% para 2,3%, e mudou também a projeção para o PIB do primeiro trimestre de 2009, de crescimento de 1,3% sobre o primeiro trimestre de 2008 para a estagnação.

O mais otimista é o Orçamento. Mesmo após a revisão de crescimento de 4,5% para 3,5%, esse número ainda é muito maior do que todas as previsões. O economista Alexandre Marinis, da Mosaico, acha que o número é irreal, mas que terá efeitos concretos: todas as receitas do orçamento foram projetadas com esse PIB e, se o crescimento for menor, o governo terá receitas a menos, mas já projetou gastos com base nessa previsão de arrecadação. O resultado pode ser o de reduzir o superávit primário.

- Como a maior parte do orçamento é comprometida com despesas obrigatórias, e como o governo contratou muito e reajustou nos últimos anos, ele não abriu espaço para o investimento público. E, aí, vai ter de rever o superávit primário. A meta do ano que vem não deve ser atingida - diz Marinis.

Para o economista-chefe do Banco ABC, Luiz Otávio Leal, as medidas adotadas pelo governo até agora foram acertadas, mas elas não fazem parte de uma ação maior, coordenada. Para ele, o governo errou ao conceder benefícios a servidores, que vão ter um impacto nos gastos de cerca de R$44 bilhões até 2011.

- É defensável aumentar o gasto público em obras de infra-estrutura, em construção civil, que geram mais emprego e mais renda. Não é defensável o aumento de gastos com as que estão sendo feitas por essas medidas provisórias. Não é deixar de reajustar, mas isso pode ser feito de maneira escalonada. Num momento desses, de menor receita, é hora de manter os pés no chão, e não de meter os pés pelas mãos.

O economista José Júlio Senna, da MCM Consultores, diz que, para minimizar com mais eficiência os efeitos da crise no Brasil, o governo deve conceder benefícios e desburocratizar a produção como um todo.

- O Brasil vai ter de afrouxar a política monetária. Tudo o que se puder fazer para destravar a produção vai ter de ser feito pelo governo. Tem de ter vontade política. Há um grande espaço para estimular a economia, reduzindo gastos públicos, diminuindo impostos e desburocratizando a produção como um todo. Esse é o desafio do Brasil para 2009.

O momento do mundo é outro. O crédito não circula, os investimentos externos estão se reduzindo, o mundo está comprando menos matéria-prima, o que impacta as exportações brasileiras e reduz a entrada de recursos. O governo montou um orçamento com um PIB inflado. Em 2009, na pior das hipóteses até agora, podemos ter um crescimento de 1,75%, que é metade do que foi projetado. Nesse caso, a receita do governo poderia cair para a metade. A atividade industrial está retraída, não vai ter o volume dos três primeiros trimestres do ano passado.

A preocupação deve ser com a queda da atividade. O Banco Central deve cortar os juros já na primeira reunião deste ano - a MB Associados prevê a Selic em 10,75% no fim de 2009 -, e o governo precisa agir em todos os setores, reduzindo a carga tributária, inclusive para pequenos e médios empresários, que são os que mais empregam e sofrem com os impostos.

Esta é a primeira crise do governo Lula, e o ano é o teste decisivo. Em 2003, na crise que enfrentou no início de seu governo, ele tomou as decisões certas de manter a estabilidade e o ajuste fiscal. Desta vez, o governo tem sido contraditório. Algumas decisões são acertadas, outras inteiramente fora de propósito. Em 2009 é que o governo Lula consolidará sua herança.

Os erros deste ano poderão prolongar a crise até 2010, ano de eleição presidencial.