sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

José de Souza Martins* - O energúmeno

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana 

Quando o presidente desqualifica Paulo Freire, só pode ser coisa de um governo que institui aqui o “energumenato”

O presidente definir como energúmeno o educador brasileiro Paulo Freire, mundialmente conhecido pela obra de resgate de milhares de pessoas da escuridão do analfabetismo, só pode ser coisa de um governo que institui aqui o “energumenato”. O que faz do povo um povo sem vontade própria, uma sociedade de ordem unida, desprovida de consciência social e política.

Paulo Freire foi satanizado já antes do golpe e perseguido depois do golpe de 1º de abril de 1964 pelo mero motivo de ter criado um método de alfabetização rápida de adultos, uma necessidade do capitalismo e, é bom que se diga, do protestantismo voltado para o livre exame da Bíblia e para a emancipação republicana que faria de todos os brasileiros, cidadãos.

Freire desenvolveu seu método com apoio da Igreja Católica, que o aplicou no Movimento de Educação de Base, no Nordeste, de 1961. Foi inspirado no personalismo de Emmanuel Mounier, pensador católico, fundador da excelente e erudita revista “Esprit”. Ele pensava numa sociedade centrada na pessoa em oposição à sociedade materialista do indivíduo, fragmentário e alienado. O MEB foi iniciativa de um bispo conservador, Dom Eugênio de Araújo Sales, e da CNBB.

É claro que o método de alfabetização criado por Freire era adaptado à realidade de trabalhadores rurais pobres, já maduros e socializados numa cultura popular e mística que reconhecia na situação social em que viviam e trabalhavam os próprios remanescentes do cativeiro.

Seria ingênua e ineficaz qualquer tentativa de alfabetizá-los com frase de cartilha de criança da cidade, como “Eva viu a uva”.

Merval Pereira - Enxugamento partidário

- O Globo

A reorganização partidária que já está em curso, com a fusão de algumas legendas devido às cláusulas de barreira introduzidas nas recentes eleições gerais, deve ser acelerada este ano, até seis meses antes das eleições municipais, prazo permitido pela legislação eleitoral para mudanças dos candidatos.

Essa intensificação deve-se a outra inovação eleitoral, pois pela primeira vez serão proibidas as coligações proporcionais, atingindo as eleições de vereadores. Haverá um enxugamento do número de partidos políticos, exatamente a intenção da reforma constitucional que impôs também cláusulas de desempenho.

14 dos 35 partidos existentes não cumpriram a cláusula de desempenho exigida pela nova legislação, na eleição de 2018: Patriota, PHS, PC do B, PRP, Rede, PRTB, PMN, PTC, PPL, DC, PMB, PCB, PSTU e PCO. Desses, O PRP foi incorporado ao Patriotas; o PPL se fundiu com o PC do B; o PHS ao Podemos, e Rede e PV estudam uma fusão.

Os demais competirão em desigualdade de condições porque perderam o acesso ao fundo partidário e ao tempo gratuito de rádio e televisão. Nos anos de eleição, todos os partidos recebem um “fundo eleitoral”, mas sem fusões, nem coligações proporcionais, esses partidos dificilmente terão condições de subsistir. O tal fundo eleitoral está provocando a mais recente crise política do governo Bolsonaro. O presidente fez uma bravata populista sugerindo que vetaria o fundo de R$ 2 bilhões, mas está tendo que recuar, pois seria uma afronta política ao Congresso.

Luiz Carlos Azedo - Um pleito multipolar

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Nada indica que a polarização decorrente da disputa entre o presidente Jair Bolsonaro e seus opositores em nível nacional será o fio condutor das eleições municipais”

A Polícia Civil do Rio de Janeiro solicitou à Interpol a prisão do único suspeito do atentado contra a produtora do programa Porta dos Fundos identificado até agora: Eduardo Fauzi, que está em Moscou, na Rússia, onde tem uma namorada. Segundo imagens divulgadas pela TV Globo, ontem, na tarde de 29 de dezembro, ele embarcou para Paris, onde fez escala. Imagens mostraram sua chegada ao Aeroporto Internacional Tom Jobim e o momento em que passou pelo aparelho de Raio X do embarque.

Fauzi é um homem violento, com registros policiais e processos por ameaça, agressão contra mulher, lesão corporal e formação de quadrilha. Em 2013, em frente às câmeras, deu um soco no então secretário municipal de Ordem Pública, Alex Costa, quando era entrevistado por repórteres. Fauzi reagiu à fiscalização da prefeitura no estacionamento irregular no qual trabalhava. Na ocasião, foi preso por lesão corporal, mas respondia ao processo em liberdade. Um cartaz do Disque Denúncia fluminense oferece uma recompensa de R$ 2 mil por informações que levem à prisão dele. Filiado ao PSL desde 3 de outubro de 2001, será expulso da legenda por ter participado do atentado, segundo o deputado Luciano Bivar, que a preside.

O atentado à produtora do Porta dos Fundos, às vésperas do Natal, é um novo degrau da escalada de radicalização política no país. O grupo tem sido criticado nas redes sociais por causa de um especial de Natal exibido pela Netflix, no qual os humoristas sugerem que Jesus teria tido uma experiência homossexual após passar 40 dias no deserto. Antes de viajar, Fauzi postou um vídeo, com sete minutos de duração, em que chama os integrantes do grupo Porta dos Fundos de criminosos, marginais e bandidos.

No domingo anterior ao Natal, havia ocorrido outro episódio preocupante: um homem de 89 anos disparou contra um vizinho em um prédio no centro de São Paulo. Segundo testemunhas, Adel Abdo discutiu com a vítima, Rafael Dias, um dia antes. “Na noite do sábado, a gente fez uma festa no condomínio. Um morador começou a reclamar do som alto, porém a gente estava dentro das regras, de som até as 22h. Ele começou a nos ameaçar. Disse: ‘seu bando de viado, desliga isso, vou descer aí e atirar em vocês’”, relatou Anderson Oliveira, namorado de Rafael.

As eleições
O conservadorismo oficial em relação aos costumes, na contramão das mudanças, parece ter despertado os demônios da homofobia e outras manifestações do gênero, como o racismo e a xenofobia. Como em outras situações, indivíduos reacionários e truculentos se acham no direito de recorrer à força para impor seus padrões de comportamento a quem age ou mesmo pensa de forma diferente. Tais episódios sinalizam um ano eleitoral pautado pela violência política e ideológica.

Míriam Leitão - Na balança os números e os fatos

- Globo

Guerra comercial entre EUA e China foi ruim, mas a paz pode também trazer perdas para o Brasil, com efeitos sobre o agronegócio

O comércio exterior é aquele ponto no qual a ideologia se dissolve, e o pragmatismo é meio inevitável. A balança comercial do ano passado foi ruim porque a Argentina entrou em crise, a China e os Estados Unidos passaram o ano em guerra comercial, e o Brasil cresceu menos do que se esperava. Uma Argentina em crise é um mau negócio para o Brasil, seja de que tendência for o seu governo. A guerra entre Estados Unidos e China foi ruim, mas a paz pode trazer também perda para o Brasil porque um dos compromissos que os chineses assumirão no próximo dia 15 será comprar mais dos agricultores americanos, e isso pode significar menos exportações brasileiras.

O Brasil teve um grande saldo, de US$ 46 bilhões, mas foi o menor desde 2015. Ser menor não significa em si uma má notícia. O problema é que a corrente de comércio caiu também 5,7%. Ou seja, o Brasil vendeu menos e comprou menos. Só a crise argentina tirou do saldo brasileiro US$ 5,2 bilhões.

Enquanto o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, continua no seu delírio, a vida real exige atenção. Ele escreveu na mensagem de fim de ano que é preciso em 2020 “continuar lutando contra o mecanismo esquerdista” e alertou: “não basta fazê-lo dentro do Brasil.” Explicou que “a esquerda é sempre transnacional” e por isso “há que combater na frente externa”.

Fernando Abrucio* - Existe um Brasil para além de Bolsonaro

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Se quisermos sair do clima de confronto e da mediocridade impostos pelo bolsonarismo, precisamos lembrar do Brasil que vai além da lógica de guerra

Passado um ano de governo, um aspecto salta à vista: Bolsonaro criou um estilo próprio de liderança presidencial. Obviamente que ele repete certos padrões personalistas anteriores, que se apresentavam em figuras tão distintas como Vargas, Collor e Lula. Descontadas as semelhanças, o que fica é um modelo de presidente que busca a todo momento ser o centro da política brasileira, criando factoides que priorizam as críticas a pessoas, ideias e comportamentos. Trata-se de um modo basicamente negativo de construção de projeto de poder. Bolsonaro sempre precisará de um inimigo para governar o país.

A lógica bolsonarista de liderança é eficaz em vários sentidos. Primeiro, porque marca uma posição perante uma parcela do eleitorado, gerando uma forte identidade entre o líder presidencial e os seus correligionários - é o “eu contra eles”, num tom muito mais radical que o do petismo. A porção da população que vai ficar neste grupo ainda é uma incógnita. De todo modo, na pior das hipóteses, Bolsonaro consegue manter pelo menos de 15% a 20% ao seu lado, o que não garante a reeleição, mas solidifica um nicho de apoiadores que irão até o fim com o presidente, mantendo-o como um governante que tem anteparo para digladiar com outras lideranças políticas.

Selecionando inimigos e os atacando a todo momento, muitas vezes por meio de acusações e temáticas secundárias em relação às políticas governamentais, Bolsonaro obriga os criticados a se defender constantemente. O presidente se torna o dono da bola do jogo e faz com que os outros fiquem correndo atrás da pelota, sem que nunca a tenham por completo. Antigamente, isso tinha um nome: diversionismo, isto é, a capacidade de evitar o que é central na disputa do poder e nas políticas públicas. Essa estratégia dificulta ter um maior foco na crítica ao governo, pois se a cada semana há um assunto novo para se discutir, o que deve ser priorizado no debate com a população?

César Felício* - No meio do caminho

- Valor Econômico

Eleição municipal marca tendências para a nacional

É comum ver as eleições municipais no Brasil como uma espécie de “midterm election”, instrumento pelo qual o parlamento de alguns países se renova parcialmente durante um governo. No caso brasileiro, a eleição municipal é vista como um misto de referendo da gestão presidencial de turno e um presságio para o que deve acontecer a seguir. Há elementos para se pensar assim.

Em 2016, João Doria, Marcelo Crivella, Alexandre Kalil e Marchezan Júnior, entre outros, representaram de certa forma o espírito de uma época. Não ganharam em função da força de seus partidos e não os tornaram mais fortes, eis que servir como bússola partidária para a disputa seguinte é algo para o qual a eleição municipal definitivamente não serve. Os principais vencedores indicaram, contudo, uma tendência, a do voto de protesto. Eles eram contra algo. Seja o esquerdismo, a política tradicional, a degeneração dos costumes. Anteciparam a vibração que soaria na eleição de dois anos depois.

Retrocedendo mais, a eleição municipal de 2012 aparecia muito mais como a consequência do processo eleitoral passado do que sinal preditivo para a eleição seguinte. Assim Fernando Haddad surgia como o segundo candidato de proveta fabricado por Lula (depois de Dilma), e Eduardo Paes e Márcio Lacerda indicavam a força de estruturas políticas regionais muito assentadas então no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Os dois, aliás, reeleitos na ocasião. Lacerda, por sinal, também havia sido um “poste” em sua primeira eleição, quando surgiu do casamento entre o governador Aécio Neves e o prefeito Fernando Pimentel, em 2008.

Eliane Cantanhêde - Incertas e não sabidas

- O Estado de S.Paulo

Eleições municipais de 2020 encontram velhos e novos partidos em maus lençóis

Atenção: vencer ou perder as eleições municipais não significa, pelo menos não necessariamente, vencer ou perder as eleições presidenciais dois anos depois. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. As votações nos municípios confirmam a força ou a fraqueza de partidos e candidatos naquele momento, mas as projeções para as urnas nacionais dependem de vários fatos e fatores atrelados à dinâmica do País e da política.

Um exemplo recente: o PT foi fragorosamente derrotado nas eleições municipais de 2016, quando perdeu em todas as capitais, exceto uma, Rio Branco, no Acre. Detalhe: com a desincompatibilização do prefeito Marcos Alexandre, para disputar o governo estadual (aliás, sem sucesso), o partido ficou sem nenhuma das 26 capitais e nenhuma das cidades com mais de 200 mil eleitores.

E o que aconteceu com o partido de Lula em 2018, dois anos depois? Ultrapassou todos os demais partidos e empurrou Fernando Haddad para o segundo turno contra Jair Bolsonaro, do até então inexpressivo PSL. Perdeu no final, mas mostrou que está vivo.

Everardo Maciel* - Há perigos à espreita

- O Estado de S. Paulo

Recente decisão do STF, alargando as hipóteses de crimes tributários, é outro perigo à espreita

Em 2019 houve muita agitação no mundo tributário brasileiro. Felizmente, não prosperaram as pérolas da temporada de ideias ruins, especialmente a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, autodesignada reforma tributária. Às vezes, não fazer é também uma vitória.

Lentamente, foram sendo desvendadas as agendas ocultas daquela PEC, despertando a consciência dos parlamentares e dos contribuintes.

Não se deve, é claro, interditar o debate tributário. Assim, embora não esteja de acordo, reconheço autenticidade em proposta que pretende punir, entre outros contribuintes, as pequenas escolas e clínicas, os pequenos comerciantes e prestadores de serviços, os produtores de leite, os optantes do Simples e do Lucro Presumido e, concomitantemente, reduzir a tributação das instituições financeiras. Trata-se de opção de fundo ideológico.

Esconder esse propósito dos destinatários da proposta, entretanto, pode ser tido como politicamente desleal.

Dizia Amós Oz, notável escritor israelense: “O fanatismo começa no afã de mudar os outros supostamente ‘para o bem deles’. Utopias degeneram em distopias, paraísos teóricos em infernos práticos”.

José Eduardo Faria* - Economia de mercado e jogo de azar

- O Estado de S.Paulo

Parece que o que a equipe ministerial entende por liberalismo é o chamado libertarismo

Baixadas num período de sete meses, as Medidas Provisórias (MPs) da Liberdade Econômica e do Emprego Verde Amarelo têm como denominador comum o objetivo de afastar os obstáculos que estariam impedindo a retomada do crescimento, mediante a redução da intervenção regulatória do Estado. A diretriz programática dos dois textos foi classificada pelo ministro da Economia e por sua equipe como liberal. Mas que sentido eles dão a esse termo?

Historicamente, o liberalismo que predominou nos séculos 19 e 20 valorizou o livre jogo de mercado. Mas também deu o devido valor à regulação estatal em matéria de institucionalização do direito de propriedade, publicidade dos atos negociais, registro comercial, punição de falência fraudulenta, combate a práticas monopolistas e criação de mecanismos judiciais para assegurar a inalterabilidade e o cumprimento de obrigações contratuais - “a santidade dos contratos”, como dizem os juristas portugueses. Decorre daí a importância de alguns dos mais importantes primados do Estado de Direito, como, por exemplo, a igualdade de todos perante a lei, o acesso aos tribunais, o direito ao devido processo legal, o instituto jurídico da defesa da concorrência e o direito do consumidor.

Doutrinariamente, o liberalismo é avesso ao dirigismo estatal. Ele enfatiza o jogo de mercado, é certo. Contudo destaca as liberdades públicas como marcos normativos desse jogo e da atuação do Estado sobre os cidadãos, segundo regras democraticamente definidas por eles. Não descarta, igualmente, o princípio da responsabilidade social de quem empreende e obtém lucros, enfrentando os inevitáveis riscos de mercado. E, por mais que seja pró-mercado no âmbito da economia, o liberalismo clássico entende que, onde o Estado é reduzido ao mínimo, o contrato social tende a se esgarçar, levando ao risco de o estado civil retroceder ao estado da natureza.

Hélio Schwartsman - Garantia de confusão

- Folha de S. Paulo

Juiz que julga não deve ser o mesmo que atua nas apurações

Se me fosse dado criar um sistema penal a partir do zero, eu incluiria algo parecido com o juiz das garantias. Um magistrado que participe das investigações, mesmo que à distância, apenas por trocar ideias com policiais e procuradores, já tende a criar uma má vontade em relação ao réu. O ideal é que o juiz que julga não seja o mesmo que atua nas apurações.

Esse, contudo, não é o único nem o mais poderoso viés humano a conspirar contra o Direito. Um problema bem mais grave, me parece, é grande peso que a figura da testemunha ainda desempenha nos processos.

Sabemos hoje que a memória é absolutamente não confiável. Embora imaginemos nossas reminiscências como um registro preciso e estável do passado, elas são modificadas ao sabor das emoções toda vez que as acessamos. Psicólogos não têm dificuldades para executar experimentos em que implantam memórias falsas na cabeça das pessoas. Policiais também não, mesmo que inconscientemente.

Cristina Serra - Suas Excelências e suas mordomias

- Folha de S. Paulo

Maus exemplos no uso do dinheiro público estimulam descrença na democracia

Volto ao tema de reportagem publicada nesta Folha nos últimos dias de 2019 e que, pela importância, deveria ter tido maior reverberação. Refiro-me à viagem do presidente do STF, Dias Toffoli, à cidade de Ribeirão Claro (PR), em avião da FAB e comitiva de 11 pessoas. Toffoli teve como único compromisso na cidade inaugurar o fórum eleitoral local, que recebeu o nome de seu pai.

Como ninguém é de ferro, esticou o fim de semana em um resort de luxo e só deixou a região na segunda, em avião da FAB. A reportagem (de Camila Mattoso, Ranier Bragon e Ricardo Balthazar) mostra um traço enraizado nos costumes de autoridades no país: o uso de patrimônio público em compromissos privados.

Vinicius Torres Freire - Um mundo de surtos e política malparada

- Folha de S. Paulo

Economia mundial anda lerda em um planeta pontilhado de revoltas populares sérias

No ano que acabou de passar, especulava-se que poderia haver uma baixa feia no crescimento mundial. Que havia risco de recessão nos Estados Unidos e nova desaceleração significativa na China.

Não foi o caso, apesar da lerdeza econômica disseminada, que causou algum estrago por aqui, com a colaboração expressiva da Argentina, que se arrebentou outra vez mais por seus motivos muito próprios ou particulares, como temos feito por aqui desde os anos 10.

Quais previsões erradas podemos então fazer para 2020?

Pelo andar da carruagem, um chute mais ou menos informado e baseado nas estimativas de instituições multilaterais (como o FMI) e da megafinança internacional, parece que não haveria mudança notável no ritmo do PIB do mundo neste 2020.

Mas, como se sabe, o mundo é um lugar perigoso e tem andado especialmente instável pelo menos desde que a megafinança quebrou o planeta, faz pouco mais de uma década.

A situação se tornou política e particularmente mais turbulenta desde a eleição de Donald Trump, que animou o que, por comodidade sarcástica, vai se chamar de corações e mentes dos demagogos autoritários pelo mundo.

Anna Virginia Balloussier - A esquerda e os crentes

- Folha de S. Paulo

Esquerda faz muito pouco para se aproximar do eleitorado evangélico

Falar em autocrítica deixa muita gente mais arredia que gato em casa de banho. Mas, se começo de ano serve para alguma coisa, é para digerir erros e evitar seu replay dali pra frente.

À esquerda não faria mal destrinchar por que se come poeira na corrida pelo eleitorado evangélico. Ela parece chegar sempre atrasada nesse fenômeno agigantado no pleito que premiou a direita bolsonarista.

O que faz para correr atrás? Após quase uma década escrevendo sobre movimentos evangélicos, eu diria: bem pouco. Aqui e acolá despontam meas culpas, aquele papo de "precisamos dialogar com os crentes". O problema é não só o ritmo tartaruga, mas as vias tomadas para tanto.

Exemplo: a dias do segundo turno, Fernando Haddad (PT) se reuniu com pastores. Beleza. Importante. Só que a maioria deles, progressistas carimbados, tem alcance limitado no raio evangélico, em boa parte conservador. Pregar para convertidos, aqui, ganha certa literalidade.

Nelson Motta - O som do Rio

- O Globo

O erro é querer avaliar o funk carioca com critérios estritamente musicais

Quem diria, o funk carioca comemora 30 anos e se espalha pelo mundo levando alegria e dança às pistas, às festas e às ruas. É uma vitória e tanto. Sair das favelas e das periferias, enfrentar o preconceito musical e social e a violência policial, os narizes torcidos e os ouvidos surdos dos que se creem detentores do monopólio da “boa música”, seja lá o que isso ainda possa significar.

“É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado” não é só um grande verso da nossa música popular mas a completa tradução da força e do poder do funk carioca. É uma música que não passa pela razão, vai direto aos sentidos, ao corpo, às pernas, e, sim, à bunda. E por que não? Não é o que fazem o samba? A salsa? O rock? Quem dança seus males espanta.

Flávia Oliveira - Cidade, pega a visão

- O Globo

Favelados têm voz e precisam ser ouvidos. É sobre isso a luta histórica por direitos

Dias antes da virada do ano, a pesquisa DataFavela/Instituto Locomotiva deu o papo sobre sonhos, projetos e reivindicações dos habitantes de 63 comunidades brasileiras para o ano novo. A consulta, mês passado, ouviu 2.006 moradores de favelas dos 26 estados e do Distrito Federal. Foi o maior levantamento já feito sobre percepções subjetivas nas quebradas; nele está nítido que protagonismo e representatividade são agendas que vieram para ficar. A favela sabe quem é, como a veem, o que deseja, quem a sabota. Os sinais estão por toda parte.

Chama atenção o trecho no qual pessoas de dentro e de fora são convidadas a listar palavras que associam aos territórios. Nos dois grupos, pobreza foi o substantivo mais citado, prova de que a insuficiência de renda é real. Mas a coincidência termina aí.

Quando pensam em favela, habitantes do asfalto mencionam violência, tráfico, assalto; favelados imaginam família, alegria, amizade, felicidade. Apresenta-se, sem retoque, o hiato que separa carência e potência, como ensina o geógrafo Jailson Souza e Silva. De um lado, o ambiente reduzido a falta de dinheiro e violência de sobra; de outro, as experiências inestimáveis de convívio social, laços afetivos, redes de solidariedade e relações comunitárias.

Pedro Doria - Ouvir, o verbo do ano novo

- O Globo

Se a regra de ouvir atento e com dedicada empatia for obedecida, vocês vão adorar a conversa

Chegou o ano novo. Posso compartilhar uma aflição? Perguntem e ouçam as respostas. A palavra chave é ouçam.

Sabe aquele seu tio bolsonarista? Por que ele acha que o país está melhor? A resposta será algo de óbvio — petralhas, corrupção, comunismo. Pergunte o mesmo doutra forma. Dificilmente haverá algo novo. Pergunte, pois, uma terceira vez. Os cacoetes, as respostas pré-fabricadas vão embora. Virão suas aflições, valores, preocupações.

Talvez você descubra, na terceira, que há pontos de encontro. Se não nas soluções, talvez no diagnóstico.

Sabe aquele amigo querido Lula livre? De cara falará sobre golpe, fascismo. A segunda resposta vai melhorar um pouco, mas resvalando na repetição fácil. Na terceira, o que causa angústia começará a aparecer. E você concordará em alguns pontos, sabe?

Se a regra de ouvir atento e com dedicada empatia for obedecida, vocês vão adorar a conversa. É seu tio, é seu amigo. O afeto já está lá, basta reencontrar. Somos as mesmas pessoas que éramos dez anos atrás. Perdemos foi a capacidade de tolerar o diferente.

Há razões.

Cidadania: o velho ‘Partidão’ ficou liberal

Herdeiro do PCB e do PPS, a sigla promove uma guinada ideológica em direção ao centro e sonha em abrigar a candidatura de Huck em 2022

Por José Benedito da Silva, André Siqueira – Revista Veja

Chancelado pelo Tribunal Superior Eleitoral há pouco mais de três meses, o partido Cidadania destaca em seu estatuto a “defesa da liberdade, do pluralismo político e do protagonismo da sociedade civil”. Não faz nenhuma referência ao socialismo nem ao comunismo.

O documento, assim, ratifica o divórcio da legenda com seus antepassados: o histórico Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922 — de quem é considerado herdeiro formal pelo TSE —, e o seu sucessor, o Partido Popular Socialista (PPS), nome que passou a ostentar em março de 1992, depois do fim da União Soviética, e que carregava até 2019. A mudança não é só cosmética: a sigla abandonou o marxismo-leninismo dos velhos tempos e o “socialismo democrático” dos anos pós-queda do Muro de Berlim para abraçar uma combinação que une a defesa do liberalismo econômico com um forte discurso progressista na área social.

O movimento não é ocasional. Nos últimos meses, o partido atraiu diversos grupos de renovação política como o RenovaBR, o Agora!, o Livres e o Acredito, todos guiados por certo liberalismo humanista e imbuídos da pretensão de construir uma alternativa à polarização entre a direita, representada pelo bolsonarismo, e a esquerda, ainda capitaneada por Lula e pelo PT. O objetivo final do processo é abrigar em 2022 a candidatura presidencial do apresentador Luciano Huck, hoje sem partido, mas muito ligado a esses movimentos, inclusive financiando alguns, como o RenovaBR e o Agora!. 

A estratégia tem duas frentes. Uma é criar uma relação próxima com esses grupos ao acomodar seus representantes no comando da sigla. No Diretório Nacional estão o senador Alessandro Vieira (SE), do Acredito e do RenovaBR, e os deputados Marcelo Calero (RJ), do Livres e do Agora!, e Daniel Coelho (PE), do Livres, este alçado à condição de líder na Câmara. A outra é deixar os parlamentares ligados a esses movimentos à vontade para votar segundo suas convicções.

O que a mídia pensa – Editoriais

Bolsonaro sofre desgaste político e aposta na economia – Editorial | Valor Econômico

Enquanto implodia o único partido que o apoiava, Bolsonaro restringe cada vez mais sua pregação aos convertidos

Não se deve esperar do segundo ano do governo de Jair Bolsonaro mais do que ele ofereceu no primeiro - testes permanentes da resistência das instituições democráticas, combinado com avanços na agenda econômica. A situação política do governo, porém, pode piorar aos poucos, ao mesmo tempo em que as perspectivas da economia sinalizam melhora.

Bolsonaro desprezou a articulação política como nunca se viu em um antecessor, propiciando um grau de liberdade ao Congresso também incomum. Essa heterodoxa e involuntária divisão de trabalho entre os poderes dificilmente vai perdurar à medida que o calendário eleitoral for se aproximando. A opção por não ter uma base firme no parlamento tem custos. O presidente foi o que mais teve MPs rejeitadas ou reprovadas, assim como mais vetos derrubados pelo Congresso. Faz parte do jogo político no qual Bolsonaro diz não querer entrar.

Por sua carreira, Bolsonaro sempre foi um franco-atirador, avesso a partidos - passou por pelo menos seis, sem ser aborrecido por eles. Chegou à Presidência a bordo do minúsculo PSL, que seu prestígio elevou à segunda maior bancada do Congresso. Não é um instrumento desprezível para quem pretende permanecer no poder e arregimentar o maior apoio possível para uma agenda controversa.

Música | Perfume da Poesia - Frevo de Bloco

Poesia | João Cabral de Melo Neto - Para a feira do livro

A Ángel Crespo

Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.

Silencioso: quer fechado ou aberto,
Incluso o que grita dentro, anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam as suas redes.
Mas apesar disso e apesar do paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Opinião do dia: Henri-Benjamin Constant* - O legislador

De forma alguma a obra do legislador está completa quando ele apenas tornou o povo tranquilo. Mesmo quando esse povo está contente, ainda resta muito a ser feito. É preciso que as instituições completem a educação moral dos cidadãos. Respeitando seus direitos individuais, poupando sua independência, não perturbando suas ocupações, elas devem, entretanto, consagrar a influência deles sobre a coisa pública, chama-los a participar, por meio de suas determinações e seus votos, do exercício do poder, garantir-lhe um direito de controle e vigilância pela manifestação de suas opiniões e, preparando-os, dessa maneira, pela prática, para essas funções elevadas, dar-lhes ao mesmo tempo o desejo e a faculdade de cumpri-las.

*Henri-Benjamin Constant (1767-1830), é um dos mais importantes autores do que viria a ser reconhecido como o “liberalismo político”. “A liberdade dos antigos comparada à dos modernos”, Paris, 1819. edipro, 1ª edição, p.78. São Paulo, 2019.

Merval Pereira - Chances renovadas

- O Globo

As crises políticas que Bolsonaro alimenta podem representar obstáculos intransponíveis a qualquer momento

O novo ano começa como os últimos, com esperanças de que o país recupere sua capacidade de crescimento econômico. As perspectivas desta vez são melhores do que já foram, especialmente porque o governo, eleito pelo voto popular, mantém seu projeto reformista, avalizado pela aprovação da reforma da Previdência.

O governo Temer, um intervalo entre o petismo e o bolsonarismo, chegou a ter o controle político do Congresso, mas perdeu a chance de aprovar a reforma da Previdência devido à crise desencadeada pelo diálogo gravado com o empresário Joesley Batista.

Temer teve que trocar o apoio que tinha no Congresso pela manutenção de seu cargo, perdendo força para aprovar as reformas. Hoje, temos pela primeira vez um Congresso renovado que comprou a ideia de que é preciso reformar estruturalmente o país, e um governo que mantém o objetivo de aprovar as reformas tributária, administrativa, do pacto federativo.

O parlamentarismo branco faz com que o Congresso module as reformas propostas pelo Executivo, às vezes avançando, principalmente na economia, em outras as adequa a seu perfil, como no pacote anticorrupção. Sempre, porém, tem havido progressos.

Carlos Alberto Sardenberg - Privatizações: tudo veio do governo FHC

- O Globo

No início do governo FHC, havia um grupo mais moderno, a favor de reformas liberais e privatizações. E outro, claramente estatizante. FHC entendeu o momento e arbitrou

Na coluna da semana passada, comentei que pela primeira vez tínhamos uma verdadeira equipe liberal ortodoxa, tocando reformas e privatizações por ideologia e não por necessidade. Lá pelas tantas, escrevi: “Governos anteriores, por exemplo, faziam privatizações por necessidade, para arranjar uns trocados ou para se livrar de empresas inviáveis”.

Foi claramente injusto. A frase cabe para os governos do PT, mas nunca para o governo FHC, como me lembrou David Zylbersztajn. Para reparar, dou a palavra a ele:

“Participei de dois momentos importantes em processos de privatização. No governo Covas, em São Paulo, como secretário de Energia, liderei a venda das estatais do setor. Nossa meta era promover o saneamento das contas públicas, mas, principalmente, viabilizar a finalização de dezenas de obras paradas, estancar a sangria da roubalheira oriunda de uma sequência Maluf-Quércia-Fleury (e fechar as portas futuras), e, notadamente, a certeza de que a expansão do setor só se sustentaria com gestão e capitais privados.

E até hoje as regras que norteiam as privatizações federais estão no Programa Nacional de Desestatização, dos anos 90. E não por acaso, mas dentro de um processo pensado e politicamente criado no sentido de viabilizar o capital privado, foram criadas as agências reguladoras, sem as quais nenhuma privatização seria viável.

Da metade dos anos 90 para frente foram vendidas as empresas do setor siderúrgico (lembra o que significava vender a CSN em 1994?), petroquímico, a Vale, Light, Escelsa, Eletrosul, o sistema Telebras. E as concessões de estradas, que não existiam? Não foi para arrumar uns trocados. Foi caso pensado, como linha política de governo.

Míriam Leitão - Ano melhor do que aquele que passou

- O Globo

A crise foi tanta nos últimos anos que o Brasil reduziu as expectativas. Hoje já se contenta com alta do PIB na casa dos 2,5%

As análises dos bancos para 2020 trazem uma coleção de dados otimistas, ainda que a projeção para o crescimento seja de apenas 2,5%. Esse número é melhor do que o dos últimos três anos, mas o Brasil, se o atingir, estará ainda assim crescendo menos do que a média do mundo. Os bancos avaliam que o ano começa sem alguns dos riscos que assustaram a economia mundial em 2019, e com a previsão de crescimento maior no Brasil. Há mais otimismo em relação a determinados setores, como o da indústria do petróleo, que deve crescer acima de 6% com a entrada em operação de quatro novas plataformas.

O clima de “agora vai” é tão forte que na mensagem que encaminha seu relatório sobre 2020 a XP Investimentos diz que o “avião está na cabeceira pronto para decolar”. A crise foi tanta nos últimos anos que o Brasil reduziu as expectativas. Hoje já se contenta com alta do PIB na casa dos 2,5%. Nenhuma decolagem se dá com voo tão baixo. “À nossa frente o horizonte está limpo e aberto. Os preparos necessários já foram feitos.” Começa assim o texto da XP. O Brasil tem um volume considerável de preparos necessários e não feitos antes que se possa falar em decolagem. É mais torcida do que análise.

O Itaú ressalta no seu cenário que o ano começa sem duas ameaças, a da guerra comercial China-EUA e do Brexit desordenado. O Bradesco já não aposta que o risco da guerra comercial tenha ficado para trás. De fato, a ciclotimia da relação entre as duas potências torna difícil garantir que não haverá outros momentos de incerteza. E se agora há um mandato político claro para o primeiro-ministro Boris Johnson sair da União Europeia, os efeitos sobre a economia britânica e outros países ainda não estão controlados. E, como lembra o banco, a eleição americana vai acirrar a polarização. O mundo deve continuar sendo um ponto de dúvida no cenário.

Luiz Fernando Verissimo - Martha Rocha

- O Globo | O Estado de S. Paulo

O que explica o ressurgimento no noticiário nacional do movimento integralista senão uma autonostalgia?

O Brasil avança para trás. Tem saudade de si mesmo. O que explica o ressurgimento no noticiário nacional do movimento integralista senão uma autonostalgia? Uma organização que se denomina integralista anunciou não ter nada a ver com os coquetéis Molotov atirados contra o prédio da produtora do “Porta dos fundos”, programa humorístico da TV. O que espantou muita gente: por saber que o integralismo não apenas ainda existe como tem uma organização, e não só tem uma organização como uma dissidência que atira bombas.

O movimento integralista que deixou saudade foi o mais atuante dos movimentos filofascistas que cresceram nos anos 30, no Brasil. Ganhou alguma relevância política — e chegou a tentar um golpe — com a ascensão do Getúlio Vargas, que endossava algumas das suas pregações totalitárias, aceitou sua ajuda, mas não lhe deu nada em troca. Tinham um líder, Plínio Salgado, chamado de carismático, mas cujo carisma não sobrevivia nas fotos dos jornais mal impressos. Usavam todos camisas verdes e um signo inspirado na suástica nazista, e saudavam-se com o braço direito erguido, também como os fascistas. As manifestações dos camisas verdes atraíam multidões, na época. Era grande a simpatia pelos integralistas.

Luiz Carlos Azedo - O mundo é redondo

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“As exportações pelos estados setentrionais do Brasil tendem a crescer regularmente, com a ferrovia norte-sul e o chamado Arco Norte, incluindo portos da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e do Amazonas”

Em 12 de abril de 1961, a bordo da Vostok 1, Yuri Gagarin se tornou o primeiro homem a ser lançado no espaço. A nave media apenas 4,4 metros de comprimento por 2,4m de diâmetro, e pesava 4.725 quilos, com dois módulos, um para acomodar os equipamentos e tanque de combustível, e o outro era a cápsula onde o cosmonauta realizou a proeza de ser o primeiro humano a ver que o nosso planeta é redondo: “A Terra é azul! Como é maravilhosa. Ela é incrível!”, exclamou Gagarin, durante a única volta que deu em órbita. Aos 27 anos, ele havia sido selecionado entre 19 pilotos submetidos a testes físicos e psicológicos rigorosíssimos. Tinha somente 1,57m de altura e pesava 69kg, ou seja, seu porte físico acabou sendo um diferencial para a seleção, como acontece com submarinistas e jóqueis.

Quando entrou na nave, fez um comentário como se fosse o último: “Em poucos minutos, possivelmente, uma nave espacial irá me levar para o espaço sideral. O que posso dizer sobre estes últimos minutos? Toda a minha vida parece se condensar neste momento único e belo. Tudo o que eu fiz e vivi foi para isso!” Naquele mesmo ano, ainda criança, levado por minha mãe ao Monumento dos Pracinhas, no Rio de Janeiro, tive a oportunidade de ver o Gagarin. A imagem que trago na memória não é a do seu porte físico, é a da multidão, e não a do seu sorriso cativante, que aparece em todas as fotos, classificado pelo poeta russo Evguêni Evtuchenko (1932-2017) como o mais bonito do mundo.

Maria Hermínia Tavares* - O ovo da serpente

- Folha de S. Paulo

É hora de usar as leis da democracia para impedir que a serpente do terrorismo saia à luz

Na madrugada da véspera do Natal, coquetéis molotov atingiram o prédio onde funciona a produtora do grupo humorístico Porta dos Fundos, no Rio.

Logo depois, em um vídeo que circulou nas redes sociais, um grupo que se dizia pertencer à “família integralista” reivindicou a autoria do atentado. O vídeo era caseiro: a encenação —tendo como fundo o estandarte da organização, à frente a bandeira do Império do Brasil e um mascarado dando o recado— plagiava mensagens de grupos terroristas.

O texto pueril chamava os humoristas de militantes do “marxismo cultural” empenhados em “destruir o povo brasileiro, suas crenças e seu patrimônio imaterial”. Tudo tão malfeito e patético que o primeiro impulso seria minimizar o episódio, atribuindo-o a um bando de lunáticos, desejosos de exumar a Ação Integralista Brasileira de Plínio Salgado, dos anos 1930, importada da Itália fascista.

Fernando Schüler* - 2020: um país com menos raiva?

- Folha de S. Paulo

A ilusão é imaginar que a intolerância venha deste ou daquele lado do campo político

Elena Landau disse algo interessante, em uma entrevista recente. Não dá pra ser um liberal pela metade. Isto é, defender a liberdade econômica, mas ser avesso às liberdades no terreno da cultura e dos costumes.

Acho que a Elena quis dizer o seguinte: no plano pessoal, você pode professar a religião que quiser e escolher o tipo de vida que deseja levar, desde que isto não danifique a liberdade dos outros. O que você não pode é usar a força ou recorrer ao Estado para promover suas crenças, sejam elas ligadas ou não à religião.

Não é pouca coisa. Ronald Dworkin escreveu um belo texto, fruto de uma conferência dada no Metropolitan Museum, em Nova Iorque, em que se pergunta se um Estado liberal pode apoiar as artes. Sua resposta é sim, mas com uma condição: apoiar de um modo geral, sem tomar partido por esta ou aquela corrente estética ou visão de mundo.

A Lei Rouanet sempre pretendeu agir desse modo, e não sei se sempre conseguiu. De qualquer maneira recomendo a leitura do texto de Dworkin para o pessoal que lida com cultura, hoje no país.

Essas coisas vão longe. Um estado liberal deveria impedir a ideologização de livros didáticos, deveria proibir o governo de fazer propaganda de si mesmo ou de seus projetos com dinheiro público, deveria se abster de comandar emissoras de comunicação ou escolher a escola em que os pais devem matricular os filhos. E não deveríamos ser obrigados a votar. A lista é longa, e é certo que estamos muito longe disso, aqui pelos trópicos.

Ricardo Noblat - O jogo de xadrez entre Bolsonaro e Moro de olho na eleição de 2022

- Blog do Noblat | Veja

Um tem a caneta mais poderosa da República. O outro, maior popularidade

Em setembro último, a um grupo de servidores da Receita Federal, um ministro do Tribunal de Contas da União disse ter ouvido de Jair Bolsonaro que Sérgio Moro não terminaria o ano no cargo.

Não ficou claro para os servidores se Moro não ficaria porque seria demitido por Bolsonaro ou se não ficaria porque pediria demissão. Mas ele ficou. Frustrou-se, portanto, a previsão de Bolsonaro.

Quanto mais tempo ficar no cargo de ministro da Justiça, melhor para Moro – seja para aumentar suas chances de ser candidato a vice de Bolsonaro em 2022, seja para concorrer à sucessão dele.

Moro sabe disso. Bolsonaro, também. Os dois movimentam suas peças num tabuleiro invisível de xadrez. Bolsonaro comporta-se como candidato à reeleição. Moro, disfarça sua ambição.

Bolsonaro é dono da caneta BIC mais poderosa da República, capaz de fazer e desfazer ministros. Mas Moro é mais popular do que ele fora da Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Roberto Dias – Luneta míope

- Folha de S. Paulo

Ainda mais divertido do que ler previsões é relê-las anos depois

Ainda mais divertido do que ler previsões é relê-las anos depois. Nossa capacidade média de prever o futuro, inclusive o imediato, é baixíssima.

Números redondos como os deste 2020, então, prestam-se a exercícios ainda mais estrambólicos.

Dez anos atrás, ninguém poderia imaginar que o país seria varrido pela Operação Lava Jato, que colocou na cadeia certa elite que passou décadas vivendo em um planeta que não o da lei brasileira. Ou que um apresentador de TV loiro viraria o homem mais poderoso do mundo —TRUMP PRESIDENTE!, foi o escrito na manchete da Folha que bem resumiu o espanto.

Voltando mais ainda, só piora. Em 2000, era cedo demais para arriscar previsões de que a esquerda chegaria ao poder no Brasil, menos ainda que lá ficaria por mais de 13 anos. Quem diria, então, que o país que colocava George W. Bush no poder elegeria, ainda naquela década, seu primeiro presidente negro.

Chegar a 1990 é até covardia. A internet, responsável pela maior revolução na vida humana desde então, é citada duas vezes em textos da Folha naquele ano —a rede, que tem seu embrião remontando a 1969, só chegaria comercialmente ao Brasil em 1995. Por aqui, aliás, quem sonhava com Collor e seu tiro único na inflação acordou no pesadelo traumático do impeachment e acabaria vendo o tigre dos preços morrer de maneira mais sofisticada a partir de 1994.

William Waack - Apertem os cintos

- O Estado de S.Paulo

Ninguém gosta de turbulência, mas não é uma grande causa de queda de avião

A maior lição de humildade para integrantes da minha profissão é o já clássico livro “Superprevisões – a arte e a ciência de antecipar o futuro”, publicado em 2016 por Philip Tetlock e Dan Gardner. Uma das célebres conclusões da obra, apoiada em mais de 20 anos de material empírico, é a de que jornalistas (especialmente os de televisão) acertam na média menos prognósticos do que um chimpanzé atirando dardos numa parede onde estão escritas respostas para perguntas como “qual será o preço do barril do petróleo no fim do ano?” (a taxa de acerto aleatória está em torno de 18%).

Claro que previsões só têm validade se respeitarem um limite de tempo – é fácil acertar a previsão “o mundo vai acabar”; a questão é acertar quando. Com toda humildade vamos, então, a alguns prognósticos para temas que devem ocupar espaço no noticiário.

Donald Trump deve perder o voto popular nas eleições de novembro (Hillary Clinton já o havia derrotado por 3 milhões de votos em 2016), mas conseguirá se reeleger. Os eleitores anti-Trump já vivem em colégios eleitorais democratas como Nova York ou Califórnia. Portanto, seu voto é “desperdiçado” e a verdadeira batalha é em colégios eleitorais menores, no Meio-Oeste, onde dificilmente Trump decepciona os mesmos eleitores que lhe garantiram a vitória quase quatro anos atrás.

Eugênio Bucci* - Acertos e erros na cobertura da Lava Jato

- O Estado de S.Paulo

A cobertura ampla das conversas impróprias foi um acerto de boa parte da imprensa, mas há também um saldo negativo a ser contabilizado

Depois de projetar para o primeiro escalão da República o ministro mais popular da Esplanada, Sergio Moro, da Justiça, a Lava Jato atravessou um ano amargo. As revelações do Intercept Brasil, publicadas em conjunto com outros órgãos de imprensa - Veja e Folha de S. Paulo entre eles -, fez os mais notórios expoentes da operação serem chamados explicar as evidências de jogo combinado entre integrantes do Ministério Público e do Poder Judiciário para prejudicar réus escolhidos a dedo. Foi um ano ruim para eles. Sua aura de liga de heróis investido de uma missão sacrossanta avinagrou.

A perda de prestígio não se deu sem, como anda na moda dizer, disputa de narrativas. Uma breve recapitulação nas páginas dos jornais mostra como foi. No começo, algumas das personagens flagradas nas conversas expostas pelo Intercept e pelos veículos a ele associados saíram dizendo que não reconheciam a autenticidade dos diálogos, mas, alegavam preventivamente, caso fossem verídicos não viam nada “de mais” no que estava ali. Essa primeira tática teve fôlego curto. A desconversa defensiva durou pouco, não só porque o material se mostrou autêntico (tal como foi atestado por diversas verificações feitas por diversos repórteres que apareciam nos registros vazados), mas principalmente porque as falas de uns e outros tinham, sim, muita coisa “de mais”.

Em seguida, vieram as acusações de que o Intercept se teria beneficiado de material roubado por um hacker, o que constituiria vício jornalístico equivalente ao crime de receptação, previsto no Código Penal. Outra vez o argumento logo caiu no vazio. As reportagens não surrupiaram nada de ninguém; ao contrário, entregaram ao público e à Justiça o conhecimento de condutas que jamais deveriam ter sido adotadas às escondidas. Em outras palavras, o trabalho jornalístico liderado pelo Intercept devolveu ao público o que era do público e retirou dos porões da clandestinidade o que nunca deveria ter estado lá. O público tinha o direito de saber; as autoridades é que não tinha o direito de esconder o que tentaram esconder.

Zeina Latif* - Dicotomia

- O Estado de S.Paulo

O aumento do consumo não é para todos. São 17 milhões de desocupados e desalentados

O mercado financeiro é só alegria. A bolsa bate recordes, impulsionada por juros baixos e a boa perspectiva de crescimento para 2020. O mercado de capitais registra expressivo aumento na emissão de dívida das empresas por conta do (necessário) encolhimento do BNDES – iniciado por Joaquim Levy quando ministro da Fazenda de Dilma – e das condições favoráveis para a captação de recursos internamente. Foi um ano muito positivo para indústria de fundos, que se beneficiou do corte dos juros pelo Banco Central. Os investidores celebram os ganhos obtidos no ano.

A euforia, no entanto, não é integralmente compartilhada pelo setor produtivo, até porque o mercado de capitais reflete as perspectivas do “grupo de elite”, e não da totalidade das empresas. Apesar da melhora nos indicadores, a confiança dos empresários continua abaixo da linha d’água de 100 pontos, indicando pessimismo de uns tantos. Muitas empresas enfrentam dificuldades financeiras e de acesso ao crédito.

No varejo, as vendas estão próximas dos patamares pré-crise, enquanto a produção da indústria está 15% abaixo. O primeiro se beneficia da volta do crédito ao consumidor, enquanto o segundo sofre com a baixa competitividade em relação aos importados.

O sensível aumento do consumo não é para todos. Os desocupados e desalentados, que totalizam mais de 17 milhões de pessoas, não foram chamados à festa e alimentam a desigualdade, que sobe desde 2015.

Cláudio Gonçalves Couto* - Que centro é este?

- Valor Econômico

Eleitorado se deslocou à direita, mas parte se assustou com o radicalismo bolsonarista: abre-se espaço para um centro

2019 foi marcado pela discussão sobre a polarização que marcaria nossa política. Frequentemente, o termo foi tomado como sinônimo de extremismo ou radicalização política. Polarização não tem a ver com isso, mas com a contraposição de alternativas políticas claras. É assim que historicamente Democratas e Republicanos polarizam a política nos EUA, Conservadores e Trabalhistas no Reino Unido, Socialistas e Republicanos na França.

No Brasil, entre os anos 90 e 2014, a polarização foi entre um partido social-liberal (o PSDB) e um social-democrata (o PT). Na medida em que o PT caminhou para o centro, deslocou o PSDB para a direita, configurando uma típica polarização centro-esquerda/centro-direita, cujo centrismo foi acentuado nos dois casos pela necessidade de coalizões. Assim, o vermelho oposicionista do socialismo petista se debotou, assumindo tons rosados no governo, enquanto o social-liberalismo tucano se tornou menos social e mais liberal, primeiro pela imposição das reformas econômicas, depois pela oposição ao adversário à sua esquerda, o PT.

As jornadas de junho de 2013, a Lava-Jato, o impeachment e o impopular governo de Michel Temer mudaram as coisas. Muito enfraquecido num primeiro momento (como se notou nas eleições municipais de 2016, quando perdeu 60% de seus prefeitos), o PT recuperou algo de sua força depois, chegando ao segundo turno das eleições presidenciais e fazendo a maior bancada na Câmara. Com isto, manteve-se como um polo da disputa, sendo o ator principal à esquerda do espectro nas eleições nacionais.

Contudo, à direita, o PSDB (associado ao governo Temer e ao establishment) minguou, culminando no vexaminoso desempenho de Geraldo Alckmin na disputa presidencial e na redução das bancadas congressuais do partido. O eleitorado à direita, que votava no PSDB (ou contra o PT) desde os anos 90, migrou para Jair Bolsonaro e deu ao PSL a maior votação para a Câmara de Deputados. Mesmo nas disputas estaduais, deram-se bem candidatos que se alinharam ao bolsonarismo durante a eleição, como Wilson Witzel no Rio de Janeiro e João (Bolso)Dória em São Paulo. Criou-se uma nova polarização, entre uma esquerda socialdemocrata momentaneamente mais estridente e uma extrema-direita oriunda da margem do sistema político.

José Roberto Campos * - A agonia dos sindicatos

- Valor Econômico

O sindicalismo está em sérios apuros diante da revolução tecnológica, desemprego e informalidade

Sindicalistas tiveram participação desprezível nas grandes manifestações de descontentamento da década, em junho de 2013. Os protestos foram um réquiem para o governo de Dilma Rousseff, antes dela começar seu segundo mandato, e também para longa agonia das entidades sindicais. Movimentos estruturais já vinham arrancando as raízes da organização tradicional dos trabalhadores, enquanto que a vanguarda das grandes greves operárias durante a ditadura militar passara a receber seus holerites do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

A ascensão de Jair Bolsonaro passou como um carro fúnebre sobre o poderio político declinante dos sindicatos. As mudanças velozes da economia fizeram o resto. Uma tempestade perfeita desaba sobre aspirações e ações sindicais no mundo e, de forma peculiar, no Brasil. Coincidiu por aqui com uma recessão brutal, o encolhimento e prostração da indústria, o fim do imposto sindical obrigatório, desemprego enorme, aumento da informalidade e a destruição das formas tradicionais de emprego provocada pela tecnologia, sobre as quais os sindicatos costumavam basear suas lutas.

Os maiores e mais atuantes sindicatos, agrupados em torno da metalurgia paulista, se formaram e cresceram principalmente na luta por salários que recompusessem a inflação galopante que prevaleceu até meados da década de 1990. A Central Única dos Trabalhadores, liderada pelo PT - contrário ao Plano Real, que liquidou a inflação - tornou-se a maior do país. Em seguida vieram outras - hoje são mais de uma dezena de centrais a disputar os sindicatos locais. O imposto sindical, repudiado pelo sindicalismo combativo, foi mantido até ser abolido em 2018 pela reforma trabalhista do sucessor constitucional de Dilma, o presidente Michel Temer.

Ribamar Oliveira - O ano em que os juros foram jogados ao chão

- Valor Econômico

Queda do custo da dívida representa mais de dois Bolsas Família

Há boas razões para acreditar que 2020 será melhor para a economia do que o ano que passou. O ritmo da atividade econômica ganhou impulso nos últimos meses de 2019, por causa da liberação dos saques do FGTS e do aumento do crédito. A confiança dos empresários aumentou com a estratégia econômica adotada pelo governo, com a aprovação da reforma da Previdência Social e com a melhora do quadro fiscal do setor público.

A expectativa que predomina no mercado é a de que um cenário de maior crescimento deverá se consolidar ao longo dos próximos meses, embora algumas nuvens negras que vêm do exterior ainda provoquem incertezas. Existem dúvidas também sobre o encaminhamento de algumas reformas indispensáveis à continuidade do ajuste das contas públicas, em virtude do ano eleitoral.

É importante destacar nesta coluna, no entanto, o fato econômico mais marcante de 2019 - ano que ficará conhecido como aquele em que os juros no país foram jogados ao chão. Quem acompanhou a economia brasileira ao longo das últimas duas décadas sabe avaliar a dimensão do fenômeno que presenciamos no ano passado. Durante anos, o Brasil foi um dos campeões dos juros altos no mundo, com taxas reais que eram verdadeiras aberrações.

O enorme custo financeiro dessa anomalia, que perdurou por longo tempo, foi suportado pela população mais pobre, ajudando a agravar a brutal desigualdade de renda do país. Uma Selic (a taxa básica de juros da economia, fixada pelo Banco Central) de dois dígitos foi considerada como normal durante muito tempo. Em março de 1999, por exemplo, ela chegou a 45% ao ano.

Na década de 1990, o país conviveu com taxa de juro real acima de 10% ao ano, situação que se manteve no início deste século. Depois, ela foi caindo lentamente para algo em torno de 5%, ainda muito distante das taxas praticadas no mercado internacional. Numerosos artigos e teses, escritos nos últimos anos pelos mais renomados economistas do país, tentaram explicar a anomalia brasileira dos juros altos e encontrar uma saída.

Entrevista | Temer: ‘Bolsonaro está dando sequência ao que eu fiz’

Entrevista com Michel Temer, ex-presidente da República

O ex-presidente Michel Temer diz em entrevista ao ‘Estado’ que votou em Bolsonaro, mas discorda de bandeiras do sucessor

Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo

Oito meses depois de ser preso na rua por policiais, o ex-presidente Michel Temer mantém uma rotina discreta. Afastado das articulações políticas, hoje ele se dedica a fazer palestras e a escrever um romance de ficção inspirado em sua própria história. Em entrevista ao Estado, o emedebista diz que o governo Jair Bolsonaro “vai indo bem” porque dá sequência ao que ele fez, mas afirma ser contrário a bandeiras de seu sucessor, como o excludente de ilicitude.

Ao falar sobre política, Temer avalia que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deveria ter buscado a pacificação ao sair da cadeia e descarta a “rotulação” dos políticos entre direita, esquerda e centro. “Essa coisa de esquerda e direita ninguém dá mais importância. Mesmo o centro”, disse.

 A seguir os principais trechos da entrevista:

Entrevista: Se Trump for derrotado, democratas não poderão fazer só mais do mesmo, diz líder de organização de prevenção de conflitos

Ex-assessor de Obama, Robert Malley, do International Crisis Group, diz que soluções para estabilidade global exigem 'ir além do status quo'

André Duchiade | O Globo

Os protestos que sacudiram o mundo no ano passado, em lugares que vão do Chile a Hong Kong do Haiti ao Sudão, têm desfecho ainda bastante incerto, podendo tanto gerar mais democracia e direitos sociais como descambar para novas formas de violência e autoritarismo, avalia o cientista político Robert Malley, presidente da organização de prevenção de conflitos International Crisis Group.

Ex-assessor do Conselho de Segurança Nacional para o Oriente Médio durante o governo de Barack Obama, Malley entende que, caso Donald Trump seja derrotado nas eleições deste ano, boa parte das medidas que o atual presidente tomou poderão ser revertidas. Ainda assim, afirma, um eventual governo democrata precisará fazer mais do que já fez, para encontrar soluções sustentáveis em longo prazo.

• Esta década começou com a Primavera Árabe e termina com grandes protestos em lugares tão variados como Chile, Iraque, Haiti, Sudão e Hong Kong. Algo une tantas insurreições tão diferentes?

É muito difícil fazer generalizações, mas podemos dizer que esses protestos são por oportunidades iguais. Eles afetam países com governos de esquerda e de direita, autocráticos ou democráticos, relativamente pobres ou de classe média, e que ficam no Oriente Médio, na América Latina, na Ásia e na África. Seria um pouco ambicioso tentar buscar uma causa comum para todos. Mas parece ser claro que há frustração, alienação e raiva com governos corruptos e que não representam as pessoas, ou as representam de forma desigual, que não parecem ser capazes de oferecer oportunidades iguais para os cidadãos.

• O que esperar destes movimentos?

Seria prematuro tentar tirar conclusões sobre para onde vão. Podem seguir o caminho da Síria, o do Sudão ou algo no meio, considerando o primeiro caso como o pior cenário possível, onde o governo usa seu aparato para esmagar a oposição, e o Sudão um caso otimista, no qual as ações dos manifestantes, que estão disciplinados e unidos, e a intervenção de atores externos põem pressão e levam a uma transição mais consensual. Este seria um cenário mais otimista para outros lugares, como Iraque, Líbano, Hong Kong ou Chile.

• O senhor acha que Trump vai se reeleger neste ano?

(Risos) Eu não sei. Perdi muito dinheiro apostando em 2016 e obviamente eu estava errado, assim como a maioria das pessoas. Acho que eleições ainda estão bem abertas, e que o resultado deve ser apertado.