Ex-assessor de Obama, Robert Malley, do International Crisis Group, diz que soluções para estabilidade global exigem 'ir além do status quo'
André Duchiade | O Globo
Os protestos que sacudiram o mundo no ano passado, em lugares que vão do Chile a Hong Kong do Haiti ao Sudão, têm desfecho ainda bastante incerto, podendo tanto gerar mais democracia e direitos sociais como descambar para novas formas de violência e autoritarismo, avalia o cientista político Robert Malley, presidente da organização de prevenção de conflitos International Crisis Group.
Ex-assessor do Conselho de Segurança Nacional para o Oriente Médio durante o governo de Barack Obama, Malley entende que, caso Donald Trump seja derrotado nas eleições deste ano, boa parte das medidas que o atual presidente tomou poderão ser revertidas. Ainda assim, afirma, um eventual governo democrata precisará fazer mais do que já fez, para encontrar soluções sustentáveis em longo prazo.
• Esta década começou com a Primavera Árabe e termina com grandes protestos em lugares tão variados como Chile, Iraque, Haiti, Sudão e Hong Kong. Algo une tantas insurreições tão diferentes?
É muito difícil fazer generalizações, mas podemos dizer que esses protestos são por oportunidades iguais. Eles afetam países com governos de esquerda e de direita, autocráticos ou democráticos, relativamente pobres ou de classe média, e que ficam no Oriente Médio, na América Latina, na Ásia e na África. Seria um pouco ambicioso tentar buscar uma causa comum para todos. Mas parece ser claro que há frustração, alienação e raiva com governos corruptos e que não representam as pessoas, ou as representam de forma desigual, que não parecem ser capazes de oferecer oportunidades iguais para os cidadãos.
• O que esperar destes movimentos?
Seria prematuro tentar tirar conclusões sobre para onde vão. Podem seguir o caminho da Síria, o do Sudão ou algo no meio, considerando o primeiro caso como o pior cenário possível, onde o governo usa seu aparato para esmagar a oposição, e o Sudão um caso otimista, no qual as ações dos manifestantes, que estão disciplinados e unidos, e a intervenção de atores externos põem pressão e levam a uma transição mais consensual. Este seria um cenário mais otimista para outros lugares, como Iraque, Líbano, Hong Kong ou Chile.
• O senhor acha que Trump vai se reeleger neste ano?
(Risos) Eu não sei. Perdi muito dinheiro apostando em 2016 e obviamente eu estava errado, assim como a maioria das pessoas. Acho que eleições ainda estão bem abertas, e que o resultado deve ser apertado.
• Como vê o reconhecimento por Trump dos assentamentos de Israel na Cisjordânia?
De certa forma, este é um reconhecimento da realidade que já existe. Os assentamentos existem a despeito da condenação internacional. Os EUA também tiveram, historicamente, uma atitude passiva em relação aos assentamentos, ainda que alguns governos tenham sido mais críticos. Isso, portanto, não marca uma virada. Mesmo assim, terá dois efeitos. O primeiro é descredenciar os EUA como um possível mediador confiável. Mesmo antes de Trump, muitos palestinos questionavam a efetividade e a justiça de os EUA serem mediadores, incluindo quando eu trabalhava no governo [com Obama], então não é algo novo. Porém, as medidas do governo Trump destroem o que sobra da credibilidade americana.
• E qual é o outro efeito?
Ajudar aqueles em Israel que defendem a anexação dessa faixa da Cisjordânia, e ajudar também Netanyahu, que atualmente luta pela sobrevivência política. Mas temos que ser honestos e reconhecer que os EUA, mesmo quando condenavam os assentamentos, não tomaram atitudes efetivas para haver uma solução.
• E a situação ruma para onde?
Dirigimo-nos para onde já estamos há um bom tempo. A realidade é que, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, só há uma entidade que governa, que é Israel. É claro que isso não satisfaz os palestinos, mas é a realidade há certo tempo. As experiências serão muito diferentes se você for um palestino ou um judeu, mas há um sistema. A melhor aposta sobre o futuro do Oriente Médio é a continuação do presente: uma consolidação do controle de Israel na Cisjordânia, com Gaza permanecendo uma prisão ao ar livre. Não quer dizer que será assim para sempre, mas é a projeção do futuro mais provável.
• Neste cenário, uma solução com dois Estados permanece realista?
Essa é a questão. Esse cenário levanta questões profundas sobre a viabilidade de uma solução de dois Estados. Quanto mais entranhados forem os assentamentos na Cisjordânia, mais difícil será revertê-los. Isto também levanta dúvidas sobre a viabilidade de se manter os palestinos na condição em que estão agora, e sobre que formas eles podem vir a desenvolver para se insurgirem contra a situação em que se encontram. Há, também, perguntas sobre quais relações haverá entre Israel e a Cisjordânia, se não houver uma solução de dois Estados.
• Caso Trump perca as eleições, ações como a retirada americana do acordo nuclear com o Irã, a volta do aperto contra Cuba ou medidas relacionadas a Israel poderão ser revertidas?
Algumas delas, sim. A saída do acordo com o Irã é reversível, a depender de onde estivermos — na situação atual, sim. Mas temos que ver se o Irã toma novas medidas em resposta às sanções, e até onde vai. A maioria dos candidatos democratas disse que voltaria ao acordo e que, com o tempo, pediria para o Irã reabrir negociações em certas partes do acordo. Também é possível que a posição americana sobre os assentamentos na Cisjordânia mude outra vez, porque ela está em desacordo com a lei internacional, não parece ter sido apoiada pelo Departamento de Estado e é contrária às resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovadas em 2016. Os fundos para os palestinos também podem ser descongelados. O mesmo é válido para Cuba. Ou seja, há muito que pode ser revertido. A dúvida não é bem essa, mas outra: o que mais pode ser feito e como se pode ir além do status quo? O que um governo democrata pode fazer de diferente? Por que o status quo anterior não estava levando à resolução do conflito com os palestinos nem tratou de todas as questões no Irã. Portanto, mesmo se você tentar voltar o relógio, muito mais trabalho precisará ser feito para se chegar a acordos sustentáveis.
• Este cenário pode ser significativamente diferente no caso da vitória de um candidato da ala progressista dos democratas, como Bernie Sanders ou Elizabeth Warren?
Há sempre diferenças entre o que se pode dizer, entre quais são as suas melhores intenções, e o que se faz quando se é presidente. Há limitações que dificultam a realização das promessas quando se está no poder. Por outro lado, escrevi propostas, trabalhei para o presidente Obama, tenho uma enorme admiração pelo que ele disse e pelo que defende e acho que, em algumas questões, ele mesmo terminou a Presidência decepcionado, porque havia coisas que ele não levou até a conclusão final, particularmente no Oriente Médio.
• O senhor vê novas formas de autoritarismo emergindo no Ocidente?
Claramente houve um crescimento de governos populistas autoritários ao redor do mundo. Você vive em um deles, mas há outros. Não há dúvida sobre isso, e este é outro reflexo do que falávamos, que tem a ver com insatisfação com os efeitos da globalização, e uma certa percepção de uma ameaça vinda de fora. Neste contexto, algumas reações são saudáveis e outras não, como políticas populistas, ultranacionalistas, contra imigrantes. E isto é o que mais me preocupa hoje. Meu trabalho é prevenir conflitos. E, mesmo se as pessoas não quiserem fazer isso por motivos humanitários, devem fazê-lo simplesmente porque, se não o fizerem, vão acontecer problemas que afetarão as suas vidas, queiram ou não. Seja na forma de fluxos de refugiados, de instabilidades que afetarão o trânsito pelas fronteiras ou de alguma outra maneira. Além da ética, há também interesses muito concretos para priorizar a prevenção de conflitos.
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