sexta-feira, 22 de maio de 2020

Merval Pereira - Armadilhas no caminho

- O Globo

Militares tentam retomar o papel moderador de garantidores da democracia que se esperava que assumissem desde o início

Mesmo disfarçados de civis, os militares que estão no governo não sabem enfrentar o jogo bruto da política, e se perdem em assertivas retóricas a favor da democracia enquanto os operadores políticos levam à frente ações antidemocráticas que não são coibidas pelo presidente Jair Bolsonaro.

Ontem foi o dia para justificarem suas presenças no entorno do presidente, em ações políticas positivas em direção ao diálogo. A reunião com os governadores foi cuidadosamente montada para que desse uma sinalização de armistício na relação entre os Poderes da República.

Os ministros militares Braga Netto, chefe do Gabinete Civil, e Luiz Eduardo Ramos, chefe da Secretaria de Governo, estiveram na Câmara dias antes conversando com o presidente Rodrigo Maia, e contataram o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para garantir um ambiente possível de entendimento.

O general Ramos, o único ainda da ativa na assessoria do presidente Bolsonaro, telefonou pessoalmente para os governadores, só não falou com o de São Paulo, João Doria, que foi procurado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Desarmados os espíritos, inclusive o de Bolsonaro, ocorreu o que está sendo classificado pelo Palácio do Planalto como “um encontro histórico”.

Ontem também o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, garantiu em uma palestra que “(...) Não passa [pela cabeça] ditadura, intervenções, isso são provocações feitas por alguns indivíduos que não têm coragem de dizer quais são suas ideologias, que ficam provocando os militares para ver se nós vamos reagir.”

Míriam Leitão - Um breve momento de harmonia na Federação

- O Globo

Governadores pediram o que a equipe econômica não quer que o presidente conceda, e o isolamento social ficou fora da pauta

O governo do Rio, em 2017, pegou um empréstimo com o BNP Paribas com o compromisso de privatizar a Cedae e quitar a dívida. Vence em dezembro. Se o governo federal não vetar a suspensão do pagamento das dívidas bancárias dos estados, o Rio poderá não pagar esse débito, e o Tesouro ficará impedido de executar as garantias. Esse foi um exemplo que ouvi no Ministério da Economia para explicar por que eles recomendaram o veto no ponto em que os governadores pediram tanto para não vetar. A reunião foi harmoniosa, mas as diferenças persistem.

Os governadores fizeram uma reunião prévia para discutir os detalhes. Foram escolhidos a dedo para falar os governadores do Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja, do PSDB, e do Espírito Santo, Renato Casagrande, do PSB. João Dória, de São Paulo, com quem houve a briga da última reunião, só entrou para referendar. Mas falou pouco, sua transmissão o prejudicou. Enquanto ele não conseguia conexão, o governador gaúcho, Eduardo Leite, entregou um recado: rapidez para regulamentar o acordo da lei Kandir. E isso ele deve conseguir.

Os governadores deram apoio ao veto no reajuste do funcionalismo. Na equipe econômica se dizia desde segunda-feira que o presidente Jair Bolsonaro não queria o ônus sozinho de contrariar os servidores. Os governadores disseram que a prerrogativa do veto é do presidente, mas que eles concordam. Em seguida, pediram a manutenção do artigo 6º parágrafo 4º que trata do adiamento da dívida com bancos e instituições como Banco Mundial e BID. Pediram também a sanção imediata do projeto para que o socorro chegue, como pediu Dória, até o dia 31 de maio.

Monica de Bolle* - Estado mínimo para quem?

- Revista Época

Esse Brasil que Paulo Guedes carrega na cabeça e tenta concretizar por atos e palavras está sendo rejeitado por todos aqueles que, da quarentena da indignação, batem panelas e gritam de suas janelas

Nesta quarentena da indignação não há um dia sequer em que não soframos alguma afronta do governo Bolsonaro, de seus ministros e de suas respectivas equipes. Mais uma vez, meteu os pés pelas mãos recentemente o ministro Paulo Guedes, cujos feitos dessa natureza são realmente espantosos. Perguntado sobre a prorrogação do auxílio emergencial, aquele cujo objetivo era impedir que as pessoas vulneráveis tivessem de escolher entre passar fome ou se contaminar, Guedes disse que pensa em reduzir o valor do benefício de R$ 600 mensais para R$ 200 mensais, o valor inicialmente defendido pelo governo federal. Antes dele, o secretário do Tesouro havia dito que não há dinheiro para pagar a renda básica, qualquer renda básica de natureza permanente. Quais contas ele apresentou? Em que dados fundamentou sua fala? Ora, em nenhum, evidentemente.

Neste exato momento, há pesquisadores pelo país trabalhando em diferentes propostas de renda mínima: fazem contas, buscam os fatos. Em artigo publicado no jornal britânico Financial Times, apresentei alguns cálculos para o Brasil e mostrei que daria, sim, para adotar um programa de renda básica permanente. Há vários projetos de lei para a criação da renda básica tramitando no Congresso. Destaco dois: o de autoria do senador Randolfe Rodrigues, que ajudei a elaborar, e o de autoria do senador José Serra. Em meio a todo esse trabalho, o secretário do Tesouro de Guedes teve o desplante de vir a público, mão na frente outra atrás, para dizer que não é possível fazer o que é preciso fazer sem apresentar qualquer sustentação para seu argumento. Será difícil esquecer essa fala.

Ricardo Noblat - Bolsonaro diz a Celso de Mello o que fazer com vídeo-bomba

- Blog do Noblat | Veja

Ministro ataca autores de ameaças a juízes

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou sua live semanal no Facebook para orientar o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, sobre o que fazer com o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril último onde ele, segundo o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, ameaçou intervir politicamente na Polícia Federal.

Celso tem três opções: autorizar a divulgação do vídeo na íntegra; ou apenas os trechos que têm a ver com a denúncia feita por Moro quando pediu demissão; ou manter o vídeo em segredo. A maiorias dos seus colegas aposta que ele autorizará a divulgação na íntegra. A decisão deverá ser anunciada hoje até o fim da tarde.

Bolsonaro fez um apelo público ao ministro para que vete a divulgação na íntegra. E garantiu, referindo-se à imprensa: “Vocês vão perder, eu estou adiantando a decisão do ministro Celso de Mello. Não tem nada, não tem nenhum indício de que eu interferi em processo da Polícia Federal naquelas duas horas de fita”.

Em seguida, como se se dirigisse ao ministro, orientou: “Tem questões reservadas [no vídeo], tem particularidades de interesse nacional. Tem dois pedacinhos de 15 segundos que são questões de política externa e que não pode divulgar.” Quando ao resto: “Divulga! E tem muito palavrão. Se divulgarem, tirem as crianças da sala”.

Ficou claro o receio de Bolsonaro com a quantidade de palavrões que ele disse e que poderão chocar, prejudicando ainda mais a sua imagem. Então ele recomendou: “Às vezes sai um palavrão, sem ofender ninguém. Não é o caso de tornar isso público, senão vão falar: vê se esse homem está à altura do cargo que representa”.

Dora Kramer - Encravado nas estrelas

- Revista Veja

O desafio das Armadas é evitar o contágio do vírus do descrédito

Militares com assento em gabinetes do Planalto e adjacências estão vendo como é difícil fazer parte de governos quando o ato de governar é presidido pela democracia. Panorama visto também por seus pares sem postos no Executivo, a serviço apenas do Estado. Uma boa experiência tanto para os remanescentes do regime autoritário quanto para as novas gerações lotadas no Exército, Marinha e Aeronáutica. Ressalvadas as exceções de praxe, para todos eles tudo indica serem pontos pacíficos a prevalência do poder civil resultante da escolha livre do voto e a normalidade institucional da Constituição de 1988. Nessa condição, depois de 21 anos no comando da nação, enquadraram-se ao ditame familiar à vida nos quartéis: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Nos últimos 35 anos não houve dúvida quanto ao imperativo de obediência devida à Carta Maior. Nesse período não se discutiram coisas como a hipótese de golpe militar.

O problema começou quando quem assumiu o topo da linha de comando mostrou não ter um pingo de juízo. Nessa hora, a de agora, as Forças Armadas passaram de instituição benquista a alvo de suspeições golpistas. E por quê? Grosso modo porque subverteram a ordem dos fatores e altas patentes aceitaram se submeter às ordens de um capitão. Reformado por indisciplina, acrescente-se. Na vigência de um regime de liberdades, garantia dos direitos individuais e submissão aos deveres constitucionais tudo tem um preço. Caríssimo e cobrado com juros da desmoralização quando se avalizam atos e palavras que extrapolam aqueles preceitos. Seja pelo compartilhamento do mesmo espaço, seja por ação e/ou omissão. No caso da junção dessas duas situações, o efeito dificilmente deixa de ser desastroso.

Bernardo Mello Franco - Diplomacia da destruição

- O Globo

Ernesto Araújo não está sozinho no esforço de destruição do Itamaraty. Para mostrar serviço, embaixadores torturam fatos e atuam como agentes do bolsonarismo

Na semana passada, o ministro Ernesto Araújo tomou uma providência para conter o fluxo de más notícias sobre o Brasil. Proibiu o envio de reportagens publicadas aqui para os postos diplomáticos no exterior. A tentativa de censura já seria inócua no tempo do telégrafo. Na era da internet, soou apenas como birra de um chanceler sem medo do ridículo.

Ernesto anda irritado. No início do mês, sete exministros redigiram um artigo crítico à sua gestão desastrosa no Itamaraty. O texto afirmou que a política externa em vigor afronta a Constituição, mina a credibilidade do país e afugenta os investidores internacionais. Era tudo verdade, mas o olavista não gostou de ser confrontado com o espelho.

Nelson Motta - Eles e nós

- O Globo

A piada da vez somos nós, e não Portugal

No domingo vi uma foto do presidente da República de Portugal, o professor e jornalista Marcelo Rebelo de Sousa, de bermudão, esperando na fila de um supermercado em Lisboa, de máscara, guardando a distância regulamentar e respeitando a fila. Nenhum segurança à vista. Um conservador muito educado e cordial, Marcelo tem 86% de apoio e confiança da população. Deu muita inveja.

Com 29.912 infectados e 1.277 mortos, Portugal está entre os países de menores índices de mortalidade por um milhão de habitantes no mundo. Um terço da Suécia, que tem a mesma população. É apavorante comparar ao Brasil, ainda em acelerada curva ascendente, porque temos 20 vezes mais habitantes do que Portugal, testamos 20 vezes menos e estamos fazendo o contrário do que eles fizeram. Lá eles já estão saindo do isolamento, enquanto aqui o pior está só começando e o antagonismo político, chamado de guerra por Bolsonaro, comanda o espetáculo macabro.

Vinicius Torres Freire - Dia de paz dos cemitérios na política

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro, parlamentares e governadores fazem acordinho, mas país segue sem planos

Foi um dia de “paz na política”, a paz dos tempos dos cemitérios cada vez mais lotados. Ainda que o acordo durasse, não há perspectiva de que se trate do essencial, a epidemia, e de novidade na política econômica, planos especiais de reconstrução, se e quando tal coisa for possível.

Nesta quinta-feira, os presidentes da Câmara, do Senado e Jair Bolsonaro combinaram de evitar escândalo na reunião em que conversaram com governadores sobre o auxílio federal a estados e municípios. Alguns senadores e governadores também combinaram de baixar o tom, inclusive governantes de esquerda do Nordeste e João Doria, de São Paulo.

No Brasil dos tempos que correm, tais arranjos podem durar horas, até o próximo comício bolsonarista ou até que vaze algum progresso dos inquéritos sobre a família presidencial, por exemplo. Além do mais, não foi possível ainda descobrir o alcance do acordozinho, se foi algo mais do que a tentativa de manter as aparências.

Ruy Castro* - Covid e caserna

- Folha de S. Paulo

Os soldados estarão espirrando juntos nos quartéis?

Graças a Jair Bolsonaro, atualmente na Presidência da República, o Ministério da Saúde está sendo ocupado pelos militares. Significa que, por falta de gente do ramo, leia-se médicos, no comando, a Covid-19 continuará rompante no país. Mas faremos alguns progressos. Nos hospitais, por exemplo, os pacientes serão acordados a corneta. Haverá juramento matinal à bandeira, rufo de tambores à visita de um coronel e revista diária de tropas, digo, enfermeiros, pelo oficial de serviço.

O que nos leva a uma pergunta. Já que nossos generais não acreditam em besteiras como confinamento, quarentena e distanciamento social, e não se conformam com que os escritórios, fábricas, igrejas, lotéricas e até manicures estejam parados, como anda a coisa entre eles? A julgar pela nova orientação do ministério, os militares não devem estar impondo ao seu pessoal os cuidados que muitos de nós, paisanos covardes, achamos prudente seguir.

Assim, pode-se imaginar que, neste momento, os quartéis estão cheios de rapazes marchando juntos, fazendo ginástica juntos, dando tiro juntos, dormindo juntos e acordando juntos, e também tossindo, assoando-se e espirrando juntos. Um soldado e um cabo, capazes de fechar sozinhos o STF, levarão a mão à testa centenas de vezes por dia, de acordo com o número de continências que terão de bater para o sargento. Não é um risco?

Bruno Boghossian – A vida boa de Guedes e Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Visão mesquinha sobre pagamento do auxílio emergencial está entranhada no governo

Quando era deputado, Jair Bolsonaro defendia o fim do Bolsa Família. Em 2011, ele foi à tribuna da Câmara para dizer que o benefício tornava "pobres coitados, ignorantes" em "eleitores de cabresto do PT".

"O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda", acrescentou o parlamentar.

Depois que assumiu o poder, ele tentou omitir os antigos discursos. Lançou o pagamento de uma 13ª parcela do programa e disse que aquela era uma conquista de pessoas que "ficaram esquecidas por muito tempo". A visão mesquinha do deputado polemista do baixo clero, no entanto, continua entranhada no governo.

O ministro da Economia mal consegue disfarçar. Numa conversa com empresários, Paulo Guedes disse que poderia estender o pagamento do auxílio emergencial do coronavírus por apenas um ou dois meses, além das três parcelas já previstas. Sem esse limite, "aí ninguém trabalha".

Reinaldo Azevedo - Impeachment civiliza, mas sem pressa

- Folha de S. Paulo

Nada obriga Rodrigo Maia a decidir em um prazo determinado

Um, por assim dizer, megapedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro acaba de chegar à Câmara. É subscrito por 154 cidadãos, incluindo parlamentares e dirigentes de PT, PC do B, PSOL e PSTU, e cerca de 400 entidades da sociedade civil. É o 36º a cair na mesa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). É mais do que justo e merecido. Convém, no entanto, apelando à poesia em tempos de pandemia, não perder a vida por delicadeza.

Vamos lá. Por mais que o lírico da tubaína com cloroquina dê, a cada dia, motivos novos para a institucionalidade se assombrar, é preciso pensar nas consequências, que vêm sempre depois (by Marco Maciel), caso a Câmara rejeite a autorização para enviar a denúncia ao Senado, que é a Casa que abre o processo. Quem quer Bolsonaro fora precisa de 342 deputados; quem não quer, de 172 apenas.

Não basta a maioria. É preciso ter uma maioria eficaz, o que não é fácil de conquistar. Não é necessário ser muito bidu para estimar que inexiste hoje esse número, especialmente quando o presidente decidiu ir às compras. O “fundão do centrão”, como já chamei nesta coluna, está à disposição —e não exatamente em liquidação. A cada dia, Bolsonaro torna mais caro o apoio da escória.

Hélio Schwartsman - A ciência da cloroquina

- Folha de S. Paulo

Insistir no uso do medicamento deixou de ser racional para se converter em opção ideológica

Idealmente, a ciência informa as decisões dos políticos e não é influenciada por eles. Gestores só adotariam medidas que já tivessem sido testadas em pesquisas e jamais interfeririam no trabalho de cientistas.

No mundo real as coisas são mais confusas. Não é que governantes nunca ouçam especialistas, mas frequentemente preferem fazer aquilo que acreditam que aumentará sua popularidade ou apenas seguem seus caprichos. A política também afeta a ciência por vários canais, dos mais concretos, como a disponibilidade de verbas, aos mais sutis, como a ideologia.

Como essas considerações se aplicam à cloroquina? Em março, quando o presidente Bolsonaro se tornou um entusiasta do medicamento no combate à Covid-19, sua posição não era absurda. Havia uma hipótese teórica para explicar sua possível ação e alguns poucos trabalhos (de má qualidade, é verdade) a sugerir eficácia.

Celso Ming - O novo imposto e a mão de gato

- O Estado de S.Paulo

Mais uma vez, Paulo Guedes insiste na criação de um imposto que lembra a velha CMPF, o imposto do cheque

O que é, o que é? Tem focinho de gato, orelha de gato, olho de gato, garra de gato, mas tem uma peninha na cabeça? A resposta qualquer criança sabe: é um gato com uma peninha na cabeça.

Pois, mais uma vez, o ministro da Economia, Paulo Guedes, insiste na criação de um imposto que lembra a velha CMPF, o imposto do cheque. Também desta vez, ele insiste em dizer que não tem nada a ver com CPMF. Mas não esconde que será um imposto provisório – que fique entendido – a ser cobrado sobre operações digitais.

Sempre que essa ideia aparece, vem com supostas meritórias intenções. Em 1996, quando o então ministro da Saúde, Adib Jatene, defendeu a criação da CPMF, argumentou que viria para financiar a saúde pública. Alguém poderia ser contra o melhor dos objetivos, o ataque às doenças? Logo se viu que era apenas um jeito maroto de vender o imposto, porque a arrecadação foi para o caixa geral e daí para onde o governo determinasse.

Sergio Amaral* - A agenda global pós-covid-19

- O Estado de S.Paulo

Tópicos prioritários: Estado, neopopulismo, desigualdade, bem comum e solidariedade

Alguns países já estão saindo da covid-19. Outros, como nós, estão apenas entrando. O número de óbitos e a destruição de riqueza são assustadores. Enquanto não houver uma vacina para impedir o contágio ou um remédio para curar a enfermidade, permaneceremos na incerteza. Não existe ainda uma luz no fim do túnel.

A crise do coronavírus não traz necessariamente fatos novos, mas acelera processos de mudança em curso, que apontam para um novo cenário global e uma nova agenda, que deverá incluir cinco tópicos prioritários: o Estado, o neopopulismo, a desigualdade, o bem comum e a solidariedade.

O pêndulo da História está-se movendo de um ponto de mais globalização e menos Estado para outro de menos globalização e mais Estado. Isso não quer dizer que globalização volte para trás, mas que o Estado será chamado a disciplinar os seus excessos e a assumir novas responsabilidades. Há vários sinais nesse sentido.

A própria pandemia mostrou que os governos terão um papel mais ativo nos serviços de saúde. Na economia, a crescente rejeição ao estrangeiro, sob a forma de bens ou imigrantes, levou à intervenção do Estado, quer sob a forma do protecionismo comercial, quer pelo bloqueio da imigração. Em vários países, como no Chile, expressivas demonstrações de rua clamaram por mais participação do governo na previdência social, na saúde, na educação e, por vezes, na própria indução ao desenvolvimento. Por fim, o Brexit mostrou a resistência do Estado nacional diante da transferência de poderes para um ente supranacional.

Ignácio de Loyola Brandão - Se eu morrer, saibam quem me matou

- O Estado de S.Paulo

Esta minha crônica é propositalmente caótica, porque retrata tempos que vivemos

Regina Duarte, esperamos que honre a memória de nomes como Paulo Emílio Salles Gomes, Almeida Salles, Rudá de Andrade, Caio Scheiby, Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Rubem Biáfora e B.J Duarte, pioneiros na fundação da Cinemateca

Esta é a crônica mais delirante e real que escrevi nestes meus 27 anos neste jornal. Se eu morrer de covid-19, saibam que fui assassinado. Sei que posso ser morto apesar dos cuidados que tomo. Estou há 50 dias encerrado em casa. Não desço sequer para atender motoboys que trazem medicamentos, compras de supermercados ou refeições. Gastei hectolitros de álcool gel, cheguei ao máximo de, após receber uma ligação, dar um banho no telefone com medo de ser contaminado pelo som. Quando vejo noticiário, desligo se o presidente começa a falar, enraivecido, espalhando perdigotos, tossindo, espirrando, dando a mão, insensível, abusado.

Tenho medo de ser infectado. Aqueles olhos claros que poderiam ser amorosos e cordiais nos fuzilam com chispas de ódio. Como deve sofrer quem vive assim na defensiva. Porque ele é pura defensiva o tempo todo. Segundo os sábios, não podemos olhar nos olhos de uma pessoa que odeia tudo, o mundo, a vida, porque podemos trazer para dentro de nós o que ela tem de maligno. Há o perigo de nos tornarmos como ela, malvada, perversa. Dona Ursulina, senhora sábia, que cozinhava como poucos, avó de um primo querido, diante de gente ruim costumava dizer: “Isso não é gente, isso é o demônio”. E esse presidente se diz religioso, vai a cultos, agrada a fiéis, bispos, pastores, o que for. Quem ele quer enganar?

César Felício - Bolsonaro e o abismo

-Valor Econômico

Pandemia contaminou imagem do presidente

Quase todas as pesquisas de opinião no Brasil, independentemente do instituto ou da metodologia utilizada, apontam a mesma tendência. O sentimento mais poderoso que existe no Brasil, com trajetória ascendente, não é o bolsonarismo, e muito menos o petismo. O presidente e seu antecessor contam com taxas de aprovação relativamente estáveis ao longo do último ano.

É o antibolsonarismo que se desenvolve, ainda sem auferir capital a ninguém na oposição ao atual governo. É uma onda por ora sem beneficiários. Existe, de forma cada vez mais nítida, uma demanda de opinião pública a ser atendida por quem se habilitar.

Talvez seja equivocado dizer que há espaço para o tal “centro”. Há uma brecha para se desenvolver uma candidatura que signifique o repúdio a Bolsonaro e a Lula simultaneamente, o que é diferente de estar no meio do espectro ideológico.

A pesquisa XP/Ipespe, por exemplo, que foi divulgada anteontem, mostra uma queda horizontal em relação ao presidente: o repúdio a Bolsonaro cresceu na segunda quinzena de abril em todos os segmentos, independentemente da faixa de renda, da religião, do sexo, da escolaridade, da região do país.

A rejeição avança conforme o coronavírus avança. O percentual de pessoas que conhece alguém afetado pela pandemia passou de 2% para 31% entre março e maio. O de quem teve impacto na situação financeira saltou de 26% para 56%. Há dois meses 21% se diziam com muito medo da pandemia. Agora são 43%.

Isso tudo mesmo levando em conta que 34% dos pesquisados já receberam o benefício de R$ 600 do governo e que 14% acreditam que ainda vão receber. Os programas para garantir a sobrevivências básica da população, ainda que garantam em determinados segmentos um salto importante de renda, como por exemplo entre os beneficiários do Bolsa Família, não estão por ora servindo de anteparo.

José de Souza Martins* - O saber médico e o popular

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A ignorância é, desde a origem do Brasil, um instrumento de poder. É esse o cenário que define os problemas da saúde pública em situação de emergência como agora

Os reiterados apelos de autoridades médicas para que a população permaneça em quarentena, durante a epidemia da covid-19, tem tido consequências aquém do esperado e, principalmente, do necessário. Há diversos fatores sociais e culturais por trás da imprudência coletiva. A começar de que milhões de brasileiros não têm habitação ou a habitação adequada ao isolamento.

Além do que, esses apelos se baseiam no pressuposto equivocado de que toda a população regula seu comportamento costumeiro, em questões de saúde, pelas mesmas concepções dos médicos e dos cientistas.

Equivocado porque, historicamente, o brasileiro é culturalmente duplo, nas concepções e na língua, uma das consequências das duas escravidões que fizeram o Brasil que conhecemos, a indígena e a negra, além da influência do branco retrógrado. Somos um país atrasado. O que faz do conhecimento científico um conhecimento paralelo ao popular, e com ele em disputa.

No geral, médicos intuem isso. Problema que se abrandaria se nos currículos das faculdades de medicina fosse incluída a antropologia. Uma ponte sobre o abismo que separa e contrapõe as duas culturas.

Fernando Abrucio* - O que deu certo em outros países e o nosso pesadelo

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Bolsonaro e seu governo estão na contramão de tudo o que tem obtido bons resultados até agora no combate à pandemia da covid-19 e seus efeitos sobre a economia dos países

Uma crise tão gigantesca e imprevisível como a atual não tem solução simples nem fácil. Nenhum país tem uma varinha mágica para acabar instantaneamente com o novo coronavírus e fazer a economia voltar a todo vapor. E mais: todos os governantes estão aprendendo a lidar com a covid-19 em exercícios de tentativa e erro, levando em conta as especificidades do desenvolvimento da doença em cada nação. Não obstante, é possível encontrar cinco características básicas dos melhores governos no enfrentamento da pandemia. Isso é positivo e permite encontrar alguma luz no fim do túnel. A notícia ruim é que o presidente Bolsonaro está na contramão de tudo que dá certo no plano internacional.

A primeira característica dos governos mais bem-sucedidos no combate à covid-19 foi a combinação de ciência e humanismo. Seus líderes usaram evidências científicas para construir as políticas públicas, mesmo que haja diferenças entre as respostas dadas por tais países. Construíram mapas de incidência da doença, planejaram a compra de equipamentos de saúde, propuseram uma variedade de tipos de isolamento social, tudo isso com base em dados sistematicamente produzidos e acompanhados. Esses governantes não tiveram medo de falar verdades inconvenientes quando foi preciso, porque optaram por soluções racionais e não pelo pensamento mágico.

Claudia Safatle - Volta à cena o Imposto sobre Transações

- Valor Econômico

A intenção é cortar a tributação sobre a folha de salários

Está na primeira fila das medidas em discussão no governo para o relançamento da atividade, tão logo ocorra a abertura da economia, uma reforma tributária que reduza a carga imposta às empresas e que ajude na reconstrução da política fiscal e na retomada do crescimento.

O principal candidato ao corte é a tributação sobre a folha de salário das empresas e, prosperando essa alternativa, vai ser muito difícil o governo escapar da discussão sobre a criação do Imposto sobre Transações Financeiras (ITF). Aliás, essa ideia nunca foi totalmente engavetada pela pasta da Economia e torna-se mais relevante no pós-pandemia.

Por mais penosa que seja essa hipótese para o presidente Jair Bolsonaro, que já a descartou por várias vezes e demitiu Marcos Cintra, então secretário da Receita Federal, por defendê-la, o argumento da área econômica é o de que a desoneração da folha, que carrega uma pesada carga de impostos que onera o emprego, requer uma receita substituta e que o Imposto sobre Transações tem uma base mais ampla e, portanto, pode ter uma alíquota pequena e é “insonegável” tanto para as transações legais quanto para as ilegais.

Naercio Menezes Filho* - Lockdown em São Paulo?

- Valor Econômico

Sem uma testagem em massa, a política mais sensata parece ser entrar em lockdown a partir de junho

A pandemia está tendo impactos muito grandes, não somente no número de mortos, mas também econômicos e sociais. Para evitar a disseminação descontrolada da pandemia o governo do Estado de São Paulo tomou medidas de distanciamento social, que têm efeitos colaterais econômicos significativos. A pressão pelo fim do distanciamento é forte. Mas, qual seria o efeito do fim do distanciamento sobre o número de mortes no Estado de São Paulo? Será que, na verdade, deveríamos ir na direção contrária e adotar um lockdown?

Para responder a essas questões nós simulamos uma versão ampliada de um modelo bastante utilizado por epidemiologistas em todo o mundo, calibrando os parâmetros para a população do Estado de São Paulo1. Esse modelo é chamado de “SEIR” (suscetible, exposed, infectious and recovered) e a versão que simulamos permite taxas de infecção diferentes entre jovens e adultos e utiliza matrizes de contato entre as pessoas para simular os efeitos de políticas de distanciamento social2.

Antes de passarmos aos resultados, é importante atentar para as limitações do modelo que estamos utilizando. Em primeiro lugar, os modelos SEIR dependem de parâmetros que ainda não conhecemos com certeza. Um dos parâmetros mais importantes é o R0, a taxa de reprodução básica, que depende do número de pessoas para as quais uma pessoa infectada transmite o vírus no início da epidemia e de quantos dias ela permanece infectada. Nas simulações estamos usando um R0 igual a 3, mas as projeções variam bastante se mudarmos esse parâmetro.

O que a mídia pensa - Editoriais

• Um entendimento a ser preservado em nome do país – Editorial | O Globo

Cordialidade no encontro entre Bolsonaro e governadores tem de ser a base para o enfrentamento da crise

A videoconferência realizada ontem entre Bolsonaro e governadores, mediada pelos presidentes da Câmara e Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, conseguiu interromper a escalada da crise política criada pela radicalização do presidente da República, assim que se viu limitado em suas ações pelo Legislativo e Judiciário, como ocorre na República.

Foi um progresso que pode ser decisivo, porque, sem entendimento entre governadores, prefeitos, Executivo federal e Legislativo, não é possível enfrentar as dificuldades que já desabam sobre a nação, atingindo, para começar, os mais vulneráveis na sociedade. Bolsonaro, cordato, se mostrou disposto a buscar este caminho.

Neste contexto, o clima de entendimento existente ontem na reunião conduzida pelo próprio Bolsonaro é um fato político importante, um marco nesses quase 17 meses do governo. O caixa de estados e municípios, sufocado pela queda de receitas provocada pela recessão já iniciada, precisa da ajuda de repasses da União para cobrir suas despesas, acrescidas pelos gastos adicionais causados pela epidemia da Covid-19. A maioria dos leitos ocupados pelas vítimas do Sars-CoV-2 é municipal e estadual.

Música | Alceu Valença - Eu vou fazer você voar

Poesia | Fernando Pessoa - Já não vivi em vão

Já não vivi em vão
Já escrevi bem
Uma canção.

A vida o que tem?
Estender a mão
A alguém?

Nem isso, não.
Só o escrever bem
Uma canção.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Míriam Leitão - A dor coletiva e o desamparo

- O Globo

Visitar os que sofrem em uma tragédia não é um ato simbólico, é parte de bem governar. Bolsonaro negou ao país esse gesto

Um chefe de Estado demonstra sentimento quando o seu povo sofre, vai aos locais onde a tragédia acontece, conversa com atingidos e os conforta. Um governante mantém uma atitude de seriedade quando o país é alvejado por alguma catástrofe. Tem palavras de encorajamento para os que estão na frente da batalha socorrendo os enfermos. O que parece ser apenas protocolo faz parte do conjunto de obrigações da pessoa pública. Isso não resolve o problema, mas impacta muito mais do que se imagina a tomada de decisões. Só tem chance de acertar o líder que entende a dimensão da dor coletiva.

A comunicação de quem governa não pode ser tocada por um miliciano digital. Tem que ter sobriedade e propósito. Não pode ser uma corrida por likes e lacrações. É a expressão do próprio Estado e por isso tem que ser dirigida por pessoas que evitem os ruídos e as agressões, as omissões e os conflitos. Mas nada substitui a palavra do líder, se ela for sincera e tiver relação com os atos praticados.

Ir até o local onde se sofre é a norma de conduta mais elementar que um governante tem que seguir. Não estar presente simboliza desprezo pelos governados. Normalmente, os que visitam o povo em seu sofrimento entendem a urgência da tomada de decisão. A pessoa pública conseguirá dialogar apenas com alguns e ver somente uma fração do que acontece, mas algumas histórias costumam falar por muitas e por isso, ao sair do seu casulo, onde os áulicos lhe dizem que está tudo certo, o governante precisará ter ouvidos para ouvir e aproveitar a chance de ver com os próprios olhos.

Merval Pereira - Cloroquina nele!

- O Globo

Se não há estudos conclusivos, e se o remédio usado no combate à Covid-19 pode causar até morte, por que ampliar seu uso no serviço público de saúde?

Nos anos 1970 chegou ao Brasil uma figura polêmica internacional, o futurólogo Herman Kahn, físico, matemático, escritor e estrategista militar, que trabalhou no projeto da Bomba H e foi consultor de diversos governos dos Estados Unidos. Considerado um gênio, dirigiu o Hudson Institute e foi da RAND Corporation. Obeso, seu peso de 150 quilos só era menor do que seu QI 200.

Foi o criador da tese da “destruição mútua assegurada”, MAD, que garantia que um ataque da União Soviética geraria uma reação da mesma proporção, base da estratégia dos Estados Unidos durante a Guerra Fria.

Pois Herman Kahn chegou ao Brasil para expor um projeto chamado “Grandes Lagos”, percebido como um primeiro passo para a internacionalização da Amazônia tanto pela esquerda brasileira quanto pelos militares. Uma barragem no Baixo Amazonas transformaria a bacia amazônica em um lago gigante que desenvolveria o comércio com outros países, facilitando o transporte de minérios e outras comoditties.

A revolta foi tamanha que uma foto sua saindo da piscina do Copacabana Palace, com aquele corpanzil, foi usada para um grande outdoor com as palavras: “Ciclamato nele!”. Foi um outdoor criado pelo publicitário Marcus Pereira. O jornal O Pasquim, à época, fez muitas críticas ao futurólogo americano. Naquele momento, pesquisas indicavam que o adoçante com ciclamato fazia mal à saúde.

Hoje, Bolsonaro mereceria um meme com a frase: “Cloroquina nele!”. O protocolo para o uso da cloroquina desde os primeiros sinais da Covid-19, assinado pelo ministro interino da Saúde General Eduardo Pazuello sem a validação de médicos, pode ser considerado uma ameaça à saúde pública, e certamente será questionado nos tribunais, sobretudo no Supremo Tribunal Federal que, aliás, ontem começou a tomar posição sobre tema análogo, a Medida Provisória que busca isentar de culpa o agente público que cometer erros durante o período da pandemia.

Ascânio Seleme - Até papagaio bate continência

- O Globo

Os milhares de cargos federais entregues a militares, suas famílias e seus amigos se transformam em motivadores do apoio a Bolsonaro

Nunca, desde abril de 1985, as Forças Armadas foram usadas de maneira tão escancarada em favor de um projeto político. E nunca, em toda a história do Brasil, cederam tão docilmente. A ocupação das estruturas do Executivo por militares já depõe sobre a subserviência das forças ao presidente Bolsonaro. Não se trata de disciplina, de obediência ao comandante em chefe, que podem ser até a desculpa oficial, mas é porque há uma compensação. Com esse loteamento de cargos, Jair Bolsonaro interfere à vontade em todas as instâncias de poder militar, sobretudo no Exército.

Não fosse assim, sua ordem para a revogação de três portarias do Comando Logístico do Exército que estabelecem controle, identificação e rastreabilidade de armas e munições jamais passaria. Passou e foi mais um dos muitos ataques de Bolsonaro ao Estatuto do Desarmamento, que o Ministério Público Federal denunciou por inconstitucional. O presidente já baixou diversos decretos autorizando porte, aumentando volume de compra de munições, reduzindo idade e ampliando áreas para uso de armas de fogo. Quase todos foram revogados depois de reconhecidas suas inconstitucionalidades.

Um desses decretos aumentava de 50 para 5.000 o número de munições que poderiam ser compradas anualmente por qualquer pessoa que tivesse arma registrada. Ela autorizava a compra de pouco mais de 2 bilhões de balas por ano, permitindo que se dessem quase 6 milhões de tiros a cada dia no Brasil. Caiu, claro. Em outro, Bolsonaro flexibilizava de tal forma a lei de compra de armas que um cidadão como você e eu poderia ir ao mercado e comprar um fuzil para defesa pessoal. Há quem veja nisso apenas o atendimento de uma pauta da turma da bala. Ma há os que veem mais do que isso.

Bernardo Mello Franco - O papelão da Viúva Porcina

- O Globo

Regina Duarte reviveu a Viúva Porcina. Foi secretária da Cultura sem nunca ter sido. Agora ela vai trocar o ócio em Brasília por uma sinecura mais perto de casa

Regina Duarte reviveu a Viúva Porcina: foi secretária da Cultura sem nunca ter sido. A atriz trocou o protagonismo nas novelas por uma ponta num governo de chanchada. Saiu de cena em menos de três meses. Um fracasso de público e crítica.

A estreia já foi um espetáculo constrangedor. Entre caras e bocas, Regina definiu a cultura nacional como uma mistura de chimarrão, pum de palhaço e caipirinha de maracujá. “Cultura é assim: é feita de palhaçada”, discursou. Nem o tradutor de libras conseguiu disfarçar o espanto.

Em poucos dias, o polemista Olavo de Carvalho sentenciou que a atriz não estava “bem da cabeça”. Ela tentou se livrar dos discípulos dele, mas fracassou. O guru manteve seus radicais no comando de órgãos como a Biblioteca Nacional e a Fundação Palmares. Sem poder efetivo, Regina se resignou a fazer figuração.

Carlos Alberto Sardenberg - Quem é o dono da vacina?

- O Globo

O acesso às doses exigirá um amplo esforço global, num ambiente de colaboração entre empresas, governos e instituições internacionais

No início deste ano, a companhia farmacêutica Moderna, com sede em Cambridge, nos EUA, tinha um valor de mercado em torno de US$ 7 bilhões. No início desta semana, bateu US$ 30 bilhões depois de ter informado que obtivera resultados positivos em testes com humanos para a vacina contra o novo coronavírus. Dois dias depois, esse valor caiu uns US$ 2 bilhões, quando cientistas e autoridades sanitárias levantaram algumas questões.

A principal: o teste havia sido limitado a poucas pessoas e ainda na fase 1. Mas a companhia já tinha autorização do governo americano para iniciar a fase 2, com milhares de testes. Estará pronta, se tudo der certo, depois de uma fase 3, lá pelo final deste ano ou início de 2021. Esperanças. Mas, de todo modo, a companhia já adiantou planos de levantar no mercado um aporte de US$ 1,2 bilhão.

A empresa recebeu ajuda do governo americano – algo como 500 milhões de dólares – mas é privada, com ações diluídas em bolsa.

Diversas outras companhias privadas estão trabalhando na vacina antiCovid-19. Há também laboratórios ligados a governos ou a universidades, mas é grande a possibilidade de que empresas privadas cheguem antes aos melhores resultados. E diferentes: as empresas estão desenvolvendo tecnologias diversas — por exemplo, ou enfraquecendo o vírus ou usando partes dele.

Na verdade, a melhor expectativa entre cientistas e autoridades sanitárias é a seguinte: que várias farmacêuticas, cada uma no seu caminho, cheguem a, digamos, quatro ou cinco tipos de vacinas.

Ricardo Noblat - Nas mãos de Celso de Mello, mais um campeão de audiência

- Blog do Noblat | Veja

Decisão sobre sigilo de vídeo pode sair ainda hoje

O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, acabou de retocar, ontem, seu voto sobre o sigilo do vídeo com a gravação da reunião ministerial de 22 de abril último onde, segundo o ex-ministro Sérgio Moro, o presidente Jair Bolsonaro ameaçou intervir politicamente na Polícia Federal. Foi por isso que Moro se demitiu.

Celso ficou chocado com o que viu. Ele disse que anunciaria sua decisão amanhã, mas fez a ressalva de que poderia antecipá-la. Hoje ou amanhã, não importa. O ministro já reuniu argumentos de sobra para justificar o voto a favor da liberação do vídeo na íntegra. Se assim for, vem por aí mais um campeão de audiência.

Quando o Procurador-Geral da República pediu a abertura do inquérito, Celso decidiu de pronto que tudo deveria correr a céu aberto. Sob reserva, apenas o que pudesse a certa altura prejudicar investigações ainda em curso. O distinto público tem o direito de saber se procede ou não o que Moro imputa a Jair Bolsonaro.

Os dois não são pessoas comuns. Um, além de ministro da Justiça, foi juiz durante mais de 20 anos e comandou a maior operação de caça a corruptos da história do país. O outro é simplesmente o presidente da República. Não poderão restar dúvidas sobre o comportamento de um ou de outro. Transparência mata dúvidas no nascedouro.

De resto, como um ministro do Supremo pode eventualmente tomar conhecimento de um ou mais crimes cometidos e preferir ocultá-los? A ser verdade que o ministro da Educação defendeu diante do presidente a prisão dos 11 ministros do Supremo, isso por si só já configura um crime que não pode ser ignorado.

William Waack - As razões dos militares

- O Estado de S.Paulo

Eles suportam um governo que embarcou numa perigosa aventura

Os militares que estão no governo aparentemente não comandam. Por motivo simples: uma coisa é a aptidão técnica e a formação intelectual para planejar e executar considerando meios e fins. Para isso os militares foram muito bem preparados em suas academias, que equivalem a escolas de business comparáveis às melhores lá de fora.

Outra coisa é o exercício da política, aprendizado que não está nos currículos dessas academias. Tem sido mais fácil para os militares no governo se apegar a seu padrão ético de “cumprir a missão”, “obedecer ao comando hierárquico” e “não abandonar o barco em dificuldades” do que enxergar que prestígio e respeito pacientemente recuperados pelas Forças Armadas após o regime que instauraram e conduziram por 21 anos estão naufragando pelo suporte que emprestam ao que hoje, sob Bolsonaro, deriva numa aventura rumo ao abismo.

O que os levou a pular para a carruagem do atual presidente, que estava longe de ser a primeira escolha deles, foi a noção de esgarçamento do tecido social e de desagregação institucional ilustrada por dois episódios significativos ainda no início da campanha eleitoral de 2018. O primeiro foi o fica ou sai de Lula da cadeia em Curitiba, devido a uma sequência de canetadas do Judiciário. Bagunça que por um triz não levou à desordem. O segundo foi a bagunça mesmo criada pela greve dos caminhoneiros.

Eugênio Bucci* - A pandemia da ignorância

- O Estado de S.Paulo

O remédio de que dispomos contra ela responde pelo nome de impeachment

Para falar das coisas prementes, vamos começar por um diagnóstico antigo: “Hoje, a maioria dos homens está doente, como que de uma epidemia, em função das falsas crenças a respeito do mundo, e o mal se agrava porque, por imitação, transmitem o mal uns aos outros, como carneiros”. Essas palavras foram mandadas gravar em pedras na cidade de Enoanda, na Capadócia (atual território da Turquia), por um certo Diógenes, no século 2.º desta era. Seguidor dos ensinamentos do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), Diógenes fez essas e outras inscrições em nome de seu mestre, para quem a filosofia teria o poder de nos curar. Epicuro via na ignorância um terrível mal da humanidade e nisso concordava com outros sábios gregos.

A ignorância é um mal que mata. Se alguém ainda duvida, que olhe para o Brasil. Em nosso país ficaram escancarados os nexos entre a estupidez e o fracasso no combate à pandemia da covid-19. Se quisermos olhar o mesmo fato por um ângulo invertido, diremos que estão mais do que patentes os nexos entre o conhecimento e o sucesso contra a pandemia. Países onde as autoridades evitam espalhafatos e ancoram suas decisões na ciência têm se saído melhor. Nesses lugares distantes, os governos agem com o que se pode chamar de bom senso: as decisões são pautadas na razão, nas evidências científicas, e, não menos importante, a sociedade compreende o que as autoridades falam. A comunicação honesta e séria deve ser concebida como uma dimensão integrante da razão. Onde as autoridades alopram, predominam os surtos cloroquínicos, as mortes se avolumam e ninguém entende nada.

Roberto Macedo* - A pandemia e a saúde da economia

- O Estado de S.Paulo

Cabe uma liberação controlada e focada em atividades econômicas específicas

Temo que a chegada e a reversão do pico da crise que a covid-19 impôs ao Brasil tomem mais tempo do que em países onde isso já aconteceu. Não temos ampla testagem de sintomas e contágios, nem assistência médica suficiente. Especialistas dizem que sete dias após o contágio os efeitos da enfermidade são muito mais acentuados. O ideal seria que testes antecipassem o tratamento.

Unidades de terapia intensiva (UTIs), respiradores, testes, leitos e pessoal da área médica são escassos diante das necessidades. O Estado do Amazonas, daquele tamanhão, só dispõe de UTIs na capital. Os fatos falam por si, pois esse mesmo Estado se destaca pelo forte avanço da enfermidade.

Nossa coesão social também é baixa e os apelos a isolamento e cuidados pessoais nem sempre são ouvidos. O segmento mais pobre da população é o mais atingido e a própria pobreza dissemina a doença, pois tem moradias de pequena dimensão, pouco isoladas umas das outras, saneamento frágil. O maior tamanho das famílias também contribui para o contágio.

De olho nos números da covid-19, costumo recorrer ao jornal britânico Financial Times (FT), que tem detalhada cobertura internacional sobre o assunto. Nos últimos dias, no Brasil, o número de novas mortes continuou batendo recordes, estamos apenas abaixo dos EUA quanto a esse número. Mas também é preciso levar em conta as grandes diferenças de tamanho da população, o que o FT faz num de seus gráficos. Aí o Brasil fica no meio do gráfico, com cerca de 3,4 mortes por milhão de habitantes no dia 18/5, em média móvel de sete dias, enquanto vários países superaram em muito esse número, chegando, no pico da doença, a cerca de 18 na Espanha e 25 na Bélgica.

Zeina Latif* - Ajustar engrenagens para travessia longa

- O Estado de S. Paulo

Toda ajuda estatal deve ter como objetivo a travessia nos próximos meses, e não corrigir falhas estruturais

O ex-ministro Luiz Mandetta alertou que a crise seria longa. Em 16 de março, afirmou que a curva de novos casos da covid-19 atingiria o platô apenas em julho. O declínio efetivo se daria em setembro, assumindo 50% da população imunizada (ou já infectada).

Em pesquisa recente, Fernando Reinach apontou na mesma direção. A taxa de imunização na cidade de São Paulo – provavelmente superior à média do País – está em 5,2% e chegaria a 65% em 2 meses. Uma taxa de imunização inferior a 60% seria suficiente para estabilizar a curva de infectados.

Na economia, alguns analistas – como esta colunista – alertaram que a volta da economia seria lenta, diferentemente da crise de 2008, por conta da natureza da crise e da fragilidade econômica do País.

Esse cenário se cristaliza cada vez mais, ainda que com boa dose de incerteza. Não se sabe quando o período de calamidade pública será superado.

Bruno Boghossian – Salve-se quem puder

- Folha de S. Paulo

Sem aptidão para o cargo, presidente já mostrou que não tem interesse em governar

Se um ator de "Malhação" se oferecesse para assumir seu lugar, Jair Bolsonaro seria capaz de aceitar a proposta. O presidente jamais mostrou aptidão para o cargo. Cada vez mais, ele também deixa claro que não tem interesse em governar.

Depois de obrigar o Ministério da Saúde a recomendar um medicamento sem eficácia comprovada contra o coronavírus, Bolsonaro tentou novamente fugir de suas responsabilidades. "O que é a democracia? Você não quer? Você não faz. Você não é obrigado a tomar cloroquina", disse, na última terça (19).

O presidente não estimulou o desenvolvimento de nenhum protocolo sério para o tratamento da doença nem se esforçou em organizar o sistema de saúde para enfrentar momento críticos. Investiu na instabilidade e preferiu fazer piada na data em que o país registrou mais de mil mortos em 24 horas.

Bolsonaro poderia trocar o slogan do governo para "salve-se quem puder". Além de transferir para cidadãos leigos a escolha do tratamento de uma doença ainda desconhecida, ele já declarou que "o brasileiro tem que entender que quem vai salvar a vida dele é ele, pô!".

Mariliz Pereira Jorge - Risco Brasil

- Folha de S. Paulo

Além do coronavírus, temos que lidar com o comportamento kamikaze do brasileiro

Gado indo para o abate. Foi essa a sensação que tive ao embarcar numa ponte aérea nesta semana. Primeira vez fora do circuito casa-supermercado-farmácia, em dois meses, tive que recorrer ao ansiolítico no caminho até o aeroporto.

Muita gente não aguenta mais ficar trancada em casa, mas desconfio que o processo de descompressão daqui a uns três meses vá ser traumático, dependendo dos estragos em nossa saúde mental. Talvez nem todos consigam retomar a vida lá fora como já foi um dia. E ainda tem o "risco Brasil".

Além do coronavírus, temos que lidar com o comportamento kamikaze do brasileiro. Desde que coloquei os pés no Santos Dumont, nenhuma das recomendações de segurança foram seguidas pela maioria dos passageiros e pelos funcionários da companhia pela qual viajei. As marcações no chão para a fila de embarque foram ignoradas, todos amontoados, muitos com máscaras que só serviam de enfeite.

Fernando Schüler* - O fim de modo voluntarista de governar

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro percebeu que precisa de suporte político e algum nível de pactuação

Boa parte de nossa crônica política passou ano e meio reclamando que Bolsonaro não formava sua base no Congresso, que vinha com essa conversa mole de “nova política”, que era impossível governar daquela maneira. Mostrei dias atrás que o experimento do governo sem coalizão produziu alguma funcionalidade, no primeiro ano do governo, mas depois desandou. A pandemia foi sua pá de cal.

Bolsonaro parte então para um novo arranjo, de maneira surpreendentemente agressiva, com foco em uma articulação com os partidos do centrão. O professor Carlos Pereira escreveu um bom artigo descrevendo a nova estratégia como um “modo de sobrevivência”. Observei a ele que há algo um pouco além disso no arranjo: a disputa pela sucessão de Rodrigo Maia.

Controlar a presidência da Câmara significa dar o ritmo da agenda política, no Congresso, o que inclui admitir ou não pedidos de impeachment. Sérgio Abranches observou, acertadamente, que a nova coalizão não terá nada de programático.

Maria Hermínia Tavares* - Escolhas trágicas

- Folha de S. Paulo

Jair Bolsonaro se compraz em apostar no caos

Há momentos nos quais Bolsonaro revela por inteiro sua, digamos, visão do que seja democracia. Nenhum é melhor do que aqueles minutos usados para ofender os jornalistas, ao lhes dar o ar de sua graça; ou quando, nas manifestações domingueiras, sua presença estimula e avaliza os insultos ao Congresso e ao Judiciário.

Segundo essa percepção, típica do populismo, a democracia é tão somente uma forma de escolha periódica do chefe do Executivo, cuja ação não deve ser travada pelos demais Poderes do Estado, pela imprensa ou por outros órgãos da sociedade. Eis porque ele os confronta e provoca dia sim, outro também.

Mas o presidente não está só em seu desdém pelas instituições que constituem a essência da democracia pluralista. Na quinta-feira da semana passada, por exemplo, o seu vice, general Hamilton Mourão, publicou extenso artigo no jornal O Estado de S. Paulo. Nele, mostra que compartilha com o titular muito mais do que a louvação do regime autoritário implantado em 1964, a admiração pelo coronel torturador Brilhante Ustra, ou o desprezo pela cultura e os direitos dos povos indígenas.

Alessandro Molon* - Por um novo normal

- Folha de S. Paulo

Não cabe mais um Brasil da desigualdade, perpetuador da involução

Em nossas casas, isolados; nos hospitais, na linha de frente; nos comércios, adaptando-se para sobreviver; nos cemitérios, chorando a dor dos que enterram seus mortos sozinhos. Onde quer que estejamos, todos queremos que esse vírus invisível —e, ao mesmo tempo, impossível de ser ignorado— seja vencido. Que se descubra uma vacina ou um tratamento que nos permita voltar ao normal.

Há algumas semanas, no entanto, uma frase grafitada numa parede de metrô em Hong Kong viralizou: “Não podemos voltar ao normal, porque o normal que tínhamos era justamente o problema”.

Há tempos temos insistido na direção errada, ignorando avisos, fingindo não haver outra saída. Seguimos estimulando economias pesadas, com altas emissões de carbono, e que alimentam o crescimento de sociedades desiguais e doentes. Aqui no Brasil, devemos acrescentar ainda o alto desemprego, a fome, a reprimarização da nossa economia e a devastação das nossas florestas.

O sinal de alerta, desta vez, veio em forma de uma perigosa pandemia que nos obriga a parar e pensar. Queremos retornar aonde estávamos? Ou será que, diante do abalo às estruturas desta casa em que vivemos por tanto tempo, devemos construir uma morada mais sólida, mais resistente, mais acolhedora?

Não há mais espaço para um mundo em que os 22 homens mais ricos da Terra têm mais riqueza do que todas as 325 milhões de mulheres da África somadas. Um mundo em que 7 milhões de pessoas morrem todo ano por conta da poluição do ar, e em que 1 em cada 4 habitantes do planeta vive sem saneamento básico.

Maria Cristina Fernandes - Cassação da chapa é o labirinto mais curto

- Valor Econômico

Se cabo, soldado e Centrão deixarem, bastam quatro votos no TSE

Das saídas constitucionais para o fim do governo Jair Bolsonaro, a da cassação da chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral é aquela que parece mais simples. Não carece de convencer o capitão a renunciar, nem de alargar o funil dos 343 votos necessários à chancela parlamentar para um processo de impeachment. Bastam quatro votos. O caminho para esta maioria pró-cassação, porém, é de um sinuoso labirinto.

São seis os processos que correm no TSE. Tem de tudo lá, mas nenhuma das acusações agrega maior apelo hoje do que o disparo de mensagens falsas. Andam com o vagar próprio dos processos da Justiça Eleitoral, mas podem ser pressionados por duas investigações em curso.

A primeira é aquela que apura a manipulação da investigação do desvio de verbas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro na campanha de 2018. Não tem repercussão processual para o TSE mas joga água no moinho da percepção de que um gol de mão contribuiu para o resultado eleitoral. Foi esta, aliás, a tese que prevaleceu no processo de impeachment de Richard Nixon, abreviado por sua renúncia.

A segunda investigação é aquela conduzida, no Supremo Tribunal Federal, sobre a máquina de notícias falsas. Este inquérito pode vir a compartilhar provas com a Justiça Eleitoral, a exemplo do que aconteceu no processo que julgou a chapa Dilma Rousseff/Michel Temer.