- Revista Época
Esse Brasil que Paulo Guedes carrega na cabeça e tenta concretizar por atos e palavras está sendo rejeitado por todos aqueles que, da quarentena da indignação, batem panelas e gritam de suas janelas
Nesta quarentena da indignação não há um dia sequer em que não soframos alguma afronta do governo Bolsonaro, de seus ministros e de suas respectivas equipes. Mais uma vez, meteu os pés pelas mãos recentemente o ministro Paulo Guedes, cujos feitos dessa natureza são realmente espantosos. Perguntado sobre a prorrogação do auxílio emergencial, aquele cujo objetivo era impedir que as pessoas vulneráveis tivessem de escolher entre passar fome ou se contaminar, Guedes disse que pensa em reduzir o valor do benefício de R$ 600 mensais para R$ 200 mensais, o valor inicialmente defendido pelo governo federal. Antes dele, o secretário do Tesouro havia dito que não há dinheiro para pagar a renda básica, qualquer renda básica de natureza permanente. Quais contas ele apresentou? Em que dados fundamentou sua fala? Ora, em nenhum, evidentemente.
Neste exato momento, há pesquisadores pelo país trabalhando em diferentes propostas de renda mínima: fazem contas, buscam os fatos. Em artigo publicado no jornal britânico Financial Times, apresentei alguns cálculos para o Brasil e mostrei que daria, sim, para adotar um programa de renda básica permanente. Há vários projetos de lei para a criação da renda básica tramitando no Congresso. Destaco dois: o de autoria do senador Randolfe Rodrigues, que ajudei a elaborar, e o de autoria do senador José Serra. Em meio a todo esse trabalho, o secretário do Tesouro de Guedes teve o desplante de vir a público, mão na frente outra atrás, para dizer que não é possível fazer o que é preciso fazer sem apresentar qualquer sustentação para seu argumento. Será difícil esquecer essa fala.
Ao mesmo tempo, seu chefe tenta voltar à ladainha dos R$ 200, sumariamente atropelada em abril pela sociedade civil e pelo Congresso Nacional, que enxergaram as necessidades da população brasileira. Para piorar, Guedes tenta retomar a discussão de seu infame “coronavoucher” enquanto acena para as empresas aéreas. Sim, as empresas aéreas estão sofrendo nessa pandemia. Sim, vários países fizeram pacotes de socorro para empresas do setor, e alguns tentam fazer até mais do que já fizeram. Mas reparem: socorrer as empresas aéreas significa destinar recursos públicos para elas, uma espécie de estatização parcial. Quem está defendendo a estatização parcial é ninguém menos do que o ministro Estado Mínimo, aquele que na semana passada queria privatizar tudo. Como é isso então? Estatizamos parcialmente empresas aéreas gastando dezenas de bilhões de reais em recursos públicos, mas nada fazemos pela população que precisa do auxílio emergencial? Se o cobertor é curto, como vem nos dizendo o secretário do Tesouro, qual é a escolha moral? Essa não é uma pergunta retórica. Trata-se de uma crise humanitária.
“As escolhas de política pública, ou seja, a decisão sobre como gastar em um cenário que envolve recursos escassos e consequências mortais é uma escolha moral”
A depender de como forem feitas as opções e de quais forem os parâmetros que as determinarem, os responsáveis no mínimo terão de responder moralmente junto à sociedade. Afinal de contas, trata-se de escolher entre salvar vidas diretamente ou de preferir ignorar o único dilema que importa.
Em artigo para o jornal O Estado de S. Paulo desta semana, escrevi sobre nossa falência moral como sociedade, nossa decadência. Ela está aí, para ser vista a olhos nus. Nossos companheiros de números espantosos da epidemia são Donald Trump, Vladimir Putin e Boris Johnson — a tríade que forma a quadra nacionalista-populista-negacionista com Jair Bolsonaro. Jair Bolsonaro, aquele cuja popularidade cai a cada dia de desgraça. Mas, sim, divago.
Volto ao ministro e a sua equipe. A quem diz respeito o Estado Mínimo de Paulo Guedes? Aos pobres? Aos vulneráveis? Àqueles que nada podem fazer para penalizar a infinita incompetência desvelada a cada dia? Esse Brasil do Estado Mínimo para os pobres é velho, tosco, injusto, desgraçado. Esse Brasil que o ministro carrega na cabeça e tenta concretizar por atos e palavras está sendo rejeitado por todos aqueles que, da quarentena da indignação, batem panelas e gritam de suas janelas. Paulo Guedes entrou no governo como superministro, posto Ipiranga. Se tiver sorte, sairá do governo — porque um dia tudo passa, sobretudo ministros — tão microscópico quanto seu abjeto Estado Mínimo.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
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