sábado, 24 de outubro de 2020

Marco Aurélio Nogueira* - Ainda o futuro

- O Estado de S.Paulo

Difícil voltar ao que havia antes. Mas não sabemos bem o que virá nem o que queremos

A notícia de que uma segunda onda de disseminação do coronavírus atingiu diversos países europeus dramatizou a questão que nos perturba desde o início do ano: que futuro teremos? Em que medida ele será afetado pelas medidas que acompanharam a marcha da covid-19 pelo mundo? Quando virão as vacinas e que efeitos terão?

No Brasil, em particular, tudo ganha maior proporção, dado o caráter atrabiliário e anticientífico do presidente da República. Seus esgares ideológicos sugerem uma preferência explícita pela morte e pelo descaso, menosprezam vacinas e põem planos eleitorais à frente de providências médicas e sanitárias. Colidem com o bom senso e a responsabilidade. Embaçam ainda mais o futuro.

Não restam dúvidas de que a vida já sofre mudanças importantes. Estamos sendo obrigados a alterar hábitos e comportamentos às pressas, sem o devido processamento mental, prático e organizacional. Em dez meses vivemos como se houvessem transcorrido vários anos. Pulamos do mundo físico, material, analógico para o mundo digital. A casa passou a ser refúgio valorizado e os filhos, acompanhados mais de perto. O delivery aumentou e novas atividades produtivas brotaram. A mal chamada “uberização” invadiu setores bem estruturados.

Ingressamos com vigor no teletrabalho. A flexibilidade de horários articula-se com maiores doses de informalidade. Novos padrões infiltraram-se inapelavelmente na vida cotidiana, com vantagens e desvantagens: menos movimentação e deslocamentos, mas mais percepção de que se trabalha 24 horas por dia, de que ficamos mais dependentes de celulares e computadores, mais estressados e angustiados. A torrente de informações que desaba sobre nós provoca pasmo e confusão. A informalização crescente desprotege, causa insegurança e medo.

Merval Pereira - Militares x civis

- O Globo

Assim como as contas públicas estão a perigo, também a perigo está a (des)organização do governo, dependente dos impulsos de um presidente imprevisível que impõe suas idiossincrasias aos assessores e exige obediência servil, humilhando publicamente mesmo seus mais próximos amigos. A série foi iniciada com o afastamento do ministro chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, e do General Santos Cruz, amigo de longa data e ministro influente, ambos derrubados por conspiração palaciana levada a efeito pelo vereador Carlos Bolsonaro.

A disputa entre grupos civis e militares que assessoram o presidente no Palácio do Planalto está escancarada, com os políticos do Centrão abrindo espaço a cotoveladas. A briga do ministro do meio-ambiente Ricardo Salles com o chefe da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos, pelo Twitter, revela a instabilidade existente na equipe.

Não me surpreenderei se os militares, aí incluído o vice-presidente Hamilton Mourão, que tem atuação importante no Conselho da Amazônia, manobrarem para tirar Salles do meio-ambiente, num gesto político de aproximação com os governos europeus e uma preparação para a nova fase do relacionamento com os Estados Unidos com a provável vitória do democrata Joe Biden.  

O problema maior é que o presidente Bolsonaro governa com as mídias sociais, e é nelas que os apoiadores mais radicais já estão atuando para defender Salles, com o reforço até mesmo do filho 02, deputado federal Eduardo Bolsonaro. Foi também devido às redes sociais que o presidente Bolsonaro desmoralizou publicamente seu ministro da Saúde, desautorizando uma fala sua na véspera, quando autorizara a compra de 46 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac.

Não satisfeito com o vexame a que submeteu seu ministro, o vídeo que Bolsonaro o obrigou a gravar, onde admitiu a velha máxima dos quartéis “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, é das coisas mais aviltantes já vistas. Retira totalmente a condição de continuar ministro da Saúde do General Eduardo Pazzuelo, mesmo que, como tudo indica, não se demita. A vantagem que tinha se desfez com o episódio, pois nenhum interlocutor saberá a partir de agora até onde vai a capacidade de decisão do ministro.

Ascânio Seleme - Bolsonaro é o grande perdedor das eleições municipais

- O Globo

Dedo de ouro das eleições de 2018 aparentemente virou um dedo podre, pelo menos até aqui

Você pode dizer que ainda é cedo para se fazer projeções, e eu devo concordar. Mas não dá para espiar o desenvolvimento das campanhas municipais sem se constatar o óbvio. Até aqui, o grande derrotado é Jair Bolsonaro. Seu dedo de ouro das eleições de 2018 aparentemente virou um dedo podre. Para onde ele aponta, é dali mesmo que não sai nada. As pesquisas não deixam margem para dúvida. Segundo o Datafolha de quinta passada, Bolsonaro perde em São Paulo, com Russomanno, no Rio, com Crivella, e em Belo Horizonte, com Engler. Os três mereceram o apoio explícito do capitão.

Em BH, o candidato bolsonarista tem apenas 3% das intenções de voto. Está certo que lá o prefeito deve ser reeleito no primeiro turno, mas mesmo assim, onde anda a pujança do presidente? O nome apoiado por ele rasteja por migalhas eleitorais. No Rio, o malfadado bispo Crivella corre sério risco de não ir para o segundo turno. Se os cariocas respiram aliviados com a boa nova, os três zeros do presidente tentam entender por que a coisa vai tão mal na cidade que deveria lhes pertencer. E em São Paulo, Russomanno derrete sob a luz do sol. Se continuar nesse ritmo, também perde a vaga no segundo turno.

Curioso é que os candidatos apoiados por Bolsonaro podem ser passados para trás por adversários de partidos de esquerda, ou de centro-esquerda. No Rio, a delegada Martha Rocha, do PDT, já empatou com Crivella, com uma curva de intenções de votos em ascendência contra a descendente do bispo. Em São Paulo, o quadro não é menos dramático. Em um mês, Guilherme Boulos, do PSOL, subiu de 9% para 14%, enquanto o candidato do capitão despencou de 29% para 20%. E faltam ainda três semanas para o primeiro turno. Bruno Covas (PSDB) lidera com 23%.

Míriam Leitão - O racismo persistente

- O Globo

Quando o assunto é racismo, o Brasil sempre volta à quadra um. É preciso recomeçar de conceitos que já deveriam estar absorvidos. No debate das cotas, parecia ter havido avanço no entendimento desse problema complexo e fundador do país. Se o Brasil não vencer a discriminação que pesa sobre pretos e pardos, se não houver política de inclusão, se as empresas não abrirem suas portas, é o país que fracassará. Jamais foi um problema de um grupo de brasileiros, é de toda a nação brasileira.

O debate do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 sobre a inclusão de estudantes pretos e pobres foi intenso e terminou com a confirmação pelo STF de que cotas raciais nas universidades federais eram constitucionais. Eu, neste espaço, defendi a adoção das cotas. Houve uma avalanche de argumentos contrários. Seria a derrota da meritocracia, seria melhor investir na educação básica, iria “criar” o racismo reverso, geraria conflitos entre os estudantes, iria nivelar por baixo a qualidade acadêmica. Nada disso.

Hélio Schwartsman - E quando a ordem é absurda?

- Folha de S. Paulo

Civis ou militares, estamos todos obrigados a avaliar a moralidade de nossas ações

Em junho, o presidente Jair Bolsonaro proclamou que as Forças Armadas não cumprem ordens absurdas. Penso que ele tem razão. O direito internacional também. Pelo menos desde os Julgamentos de Nuremberg, ficou estabelecido que a obediência a ordens de superiores não isenta o agente de responsabilidade penal por suas ações.

Assim, se o tenente manda e o soldado atira na nuca do suspeito rendido, ambos cometem homicídio qualificado. Se o presidente manda e o ministro some com a papelada incriminadora, os dois infringem a lei. Estar abaixo na hierarquia pode no máximo ser considerado circunstância atenuante.

Cristina Serra - Bolsonaro é a epidemia

- Folha de S. Paulo

O Capitão Cloroquina fez o que pôde para ajudar o vírus

O ano está quase no fim e me pergunto: como resumiria este 2020, que mudou nossas vidas para sempre? As covas coletivas abertas por escavadeiras encerram numa única imagem a nossa desventura. Mais de 155 mil mortos.

Não precisava ser assim. Mas o capitão cloroquina fez o que pôde para ajudar o vírus. Sabotou a quarentena, promoveu aglomerações, boicotou as máscaras e distribuiu perdigotos. Demitiu ministros, não testou o suficiente, menosprezou a ciência. Como continua fazendo, ao questionar a qualidade de uma vacina e estimular um surreal movimento contrário à imunização.

Mais de um século nos separam do episódio que ficou conhecido como a Revolta da Vacina. Em novembro de 1904, um motim popular explodiu no Rio de Janeiro em rejeição à obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. Houve mortos, feridos e prisões. O contexto era de protestos contra uma reforma urbana e sanitária imposta a ferro e fogo.

Alvaro Costa e Silva - Os bons brasileiros

- Folha de S. Paulo

Nos quase dois anos de Bolsonaro em Brasília, o Rio teve plenos poderes para cumprir seu ideal: transformar-se no paraíso da milícia

Bolsonaro é um produto carioca. Como o sacolé da favela ou o biscoito Globo, tem gente que adora e gente que detesta. Mas sua origem —origem política— é indiscutível. Como também sua projeção nacional a partir do Rio: vereador em 1989; 30 anos como deputado federal defendendo a caserna; presidente. Em todo esse tempo ele foi se acariocando, até virar um legítimo morador da Barra. Registre-se, contudo, que não perdeu de todo o sotaque interiorano de São Paulo, onde nasceu.

Nos quase dois anos de Bolsonaro em Brasília, o Rio teve plenos poderes para cumprir seu ideal: tornar-se terra de miliciano. Sede do poder no Brasil Colônia, Vice-Reino, Império e República, a cidade hoje tem dois milhões de moradores e mais da metade de seu território sob o domínio de grupos paramilitares.

Um assunto com o qual o presidente tem intimidade é milícia. Muito mais do que com vacina. Em entrevistas, ele já sugeriu sua legalização. Na Câmara, elogiou seus integrantes, entre os quais o PM Adriano da Nóbrega, que comandava o Escritório do Crime em Rio das Pedras e foi morto na Bahia --seus 13 celulares até agora continuam mudos. Flávio, o filho 01, condecorou policiais que tinham ligação com o terror armado.

Demétrio Magnoli* - Conspiração

- Folha de S. Paulo

Estrutura gramatical do QAnon recupera e atualiza a narrativa dos Protocolos dos Sábios do Sião

Na sua reta final, a campanha de Donald Trump à reeleição entrelaça-se ao culto online QAnon. O fenômeno inscreve-se numa longa história e descortina as tendências evolutivas do discurso da extrema direta, nos EUA e mundo afora.

O QAnon nasceu como narrativa conspiratória singular. Segundo ela, o Partido Democrata americano é o núcleo de um complô de líderes pedófilos que organiza o sequestro de crianças para escravizá-las a redes de exploração sexual. Sob o comando de figuras como Joe BidenHillary Clinton e Barack Obama, operam Angela Merkel, Emmanuel Macron, Xi Jinping e outros “globalistas” engajados no negócio diabólico da pedofilia. Nessa moldura, Trump ocuparia o papel de salvador providencial das famílias, o derradeiro escudo protetor da cristandade ameaçada.

O mito da conspiração mundial sempre andou junto com a extrema direita. A estrutura gramatical do QAnon recupera e atualiza a narrativa dos Protocolos dos Sábios do Sião, fabricada pela polícia secreta da Rússia czarista para impulsionar o antissemitismo. Os Protocolos contam a história de um complô multissecular dos judeus destinado a assumir o controle dos bancos, das escolas e dos veículos de comunicação, o que propiciaria a conquista dos poderes estatais. A lenda, inventada em 1903, fez seu caminho até o movimento nazista e, mais tarde, foi adotada pelos negacionistas do Holocausto.

Oscar Vilhena Vieira* - Encontro marcado

- Folha de S. Paulo

Constituição reconheceu 'direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam'

A escalada de violência, grilagem, queimadas, garimpo e negligência estatal em relação aos povos indígenas impõem ao Supremo Tribunal Federal se pronunciar urgentemente sobre ao menos duas questões.

A primeira se refere ao marco temporal. Tal como proposto pelo parecer da Advocacia Geral da União, o marco temporal revogará o direito originário dos povos indígenas às suas terras. O Supremo também precisa fulminar o pleito da governadora de Roraima, Suely Campos (PP), de afastar a obrigação de consultar previamente aos povos indígenas para que seja possível a realização de obras e outras intervenções em seus territórios.

A Constituição reconheceu, por intermédio de seu artigo 231, que os povos indígenas têm "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam", sendo "nulos e extintos" quaisquer atos que tenham por finalidade permitir ou legitimar a ocupação dessas terras por aqueles que não são os seus titulares originais.

Com essa formulação a Constituição buscou impedir que o abuso, as invasões ou mesmo a emanação de atos do poder público (como registros, outorgas ou destinação pública) pudessem privar os povos indígenas do direito às suas terras tradicionalmente ocupadas.

Para a Constituição não importa se as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, que são "imprescindíveis à preservação" do bem-estar, dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural dos povos indígenas, tenham sido turbadas, ocupadas ou invadidas. É obrigação da União demarcá-las, uma vez demonstrada a sua ocupação tradicional e não civil.

João Gabriel de Lima - Seu candidato prometeu um viaduto? Não vote nele

- O Estado de S.Paulo

Um postulante a prefeito tem a obrigação de conhecer e enfrentar temas espinhosos

Paulo Maluf começou sua carreira na ditadura. Veio a democracia, e ele se aclimatou rapidamente ao novo ecossistema com eleições, postulando cargos a cada pleito. Recebeu de seus adversários o apelido de “candidato competente”, pois competia, competia, competia – e raramente ganhava. Em suas frequentes campanhas eleitorais, ficaram famosas as propagandas de TV com imagens de túneis, pontes e viadutos, sempre com o carimbo “obra de Maluf”. A mais famosa de todas é o elevado João Goulart, conhecido como Minhocão, aquela aberração urbana da qual São Paulo não consegue se livrar.

Vai longe o tempo em que prometer obras viárias dava votos. “Viadutos apenas mudam o lugar dos engarrafamentos. Hoje se sabe que a única solução para o caos urbano é melhorar o transporte público”, diz Sérgio Avelleda, professor do Insper e diretor do Ross Center, organização internacional destinada a melhorar a vida nas cidades.

No dia 15 de novembro os brasileiros escolherão seus prefeitos. Como identificar um bom candidato no emaranhado de promessas amontoadas em lives e sabatinas? Um bom começo é descobrir os consensos inescapáveis em cada área e saber o que o candidato pensa a respeito. Na área de mobilidade urbana, o exemplo acima, há um consenso em torno do transporte público. A divergência se dá no que priorizar – ônibus? Metrô? Ciclovia? – e na melhor maneira de viabilizar o investimento. 

Sérgio Augusto* - Tempos ásperos


- O Estado de S.Paulo

Vargas Llosa candidata-se a ser, com todas as honras, o Balzac das ditaduras cucarachas

Saudei aqui, em 2006, a eleição de Evo Morales, a grande esperança chola de um país que, até então, sofrera cerca de 200 golpes de Estado em 175 anos de história. Cholos são os índios aculturados da Bolívia. Morales não os decepcionou: a desigualdade social diminuiu bastante, o PIB subiu de forma surpreendente. Muitos criollos (brancos descendentes de colonos europeus), donos seculares daquelas terras e riquezas, desdobraram-se na manutenção de seus privilégios e do recorde golpista boliviano, fazendo Morales pagar bem caro pela teimosia de um mandato a mais – o quarto. 

Se antigamente os gringos cobiçavam a prata e, depois, o gás dos bolivianos, agora em jogo também figuram as maiores reservas de lítio do mundo. Combustível básico das baterias de celulares e dos carros elétricos, o lítio virou o pré-sal da Bolívia. 

Poucos meses atrás, quando começou a balançar o coreto da direita (Áñez, Camacho e Mesa) que tomou conta do poder após derrubar Morales, o fundador da fábrica de carros elétricos Tesla Motors, Elon Musk, temeroso de perder a mamata do lítio, ameaçou, ele próprio, uma nova virada de (sem trocadilho) mesa. “Vamos dar um golpe em quem quisermos!”, fanfarronou o empresário. Ridículo. Musk foi um dos mais gozados pela lídima vitória eleitoral do candidato de Morales, Luis Arce, no último fim de semana. 

Minha recolhida celebração da segunda “vitória chola” coincidiu com a leitura do novo romance de Mario Vargas Llosa, Tempos Ásperos, traduzido pela Alfaguara. A rigor, só mudei de país: da Bolívia para a Guatemala, ambos com majoritária população indígena e passado, presente e vilões similares. Vilões adventícios e autóctones, de ternos e fardados, com e sem armas de fogo. Nas repúblicas bananeiras da América Latina, férteis em bananas e outras riquezas vegetais e minerais, as palavras golpe e militar são como irmãos siameses, inseparáveis. 

José Márcio Camargo* - A pandemia e o mercado de trabalho

- O Estado de S.Paulo

Medidas direcionadas a gerar empregos no setor de serviços são fundamentais neste momento

O efeito da pandemia sobre o mercado de trabalho brasileiro foi devastador. Ainda que o País não tenha adotado lockdowns tão restritivos quanto em outras regiões, como FrançaItáliaEspanha e alguns Estados americanos, entre outros, os efeitos sobre a atividade, a ocupação e a renda da população foram extremamente negativos. O Produto Interno Bruto (PIB) da economia brasileira caiu 11,4% no segundo trimestre de 2020, em relação ao mesmo período de 2019, e o nível de ocupação mostrou queda de mais de 10% entre março e abril (12 milhões de trabalhadores ficaram desocupados).

Os trabalhadores menos educados, os mais jovens e os informais foram os que tiveram maior perda. Dos 12 milhões de novos desocupados, 8 milhões (70%) eram informais e 4 milhões (40%), formais. Entre os mais jovens (14 a 17 anos) a redução no número de ocupados no segundo trimestre de 2020 em relação ao segundo trimestre de 2019 foi de 35,2%, enquanto para os trabalhadores com idade acima de 40 anos a queda foi de 5,5%. Trabalhadores com ensino superior completo ou incompleto tiveram aumento de 2% na ocupação no segundo trimestre de 2020, em comparação com o mesmo trimestre de 2019, enquanto a queda da ocupação dos trabalhadores sem instrução ou com fundamental incompleto atingiu 21,7%.

Adriana Fernandes - Coragem para cortar

- O Estado de S.Paulo

Há quatro anos, o corte de renúncias fiscais vai e volta do debate econômico, absolutamente sem sucesso

O corte linear das renúncias fiscais concedidas pelo governo voltou à mesa na discussão das medidas de ajuste fiscal para 2021. Com o pouco tempo até o final do ano para decisões difíceis e impopulares, não se fala mais em mexer em apenas um ou outro grupo de isenções e benefícios tributários, mas passar a tesoura em todas elas ao mesmo tempo e na mesma proporção: algo em torno de 12% a 15%.

O alvo passou a ser todas as renúncias para engordar os cofres da União e abrir espaço para novas despesas sem piorar o déficit público. Essa medida se somaria também à discussão de corte das emendas parlamentares e outras ações do lado das despesas para o financiamento do novo programa de transferência de renda aos mais pobres e de investimentos. Frentes de dificílima execução.

O diagnóstico político é que dessa forma é mais fácil vencer as resistências daqueles setores, empresas e pessoas físicas que vão perder com a retirada dos benefícios e incentivos. Um movimento mais rápido e palatável para angariar apoio no Congresso.

Ainda que esteja no topo da agenda econômica do momento, é complicado colocar na conta como uma medida que tem chances reais de avançar em tão pouco tempo. Será preciso um esforço concentrado de convencimento das lideranças. Com a crise da pandemia, ninguém quer ver ser a sua carga tributária aumentar.

Marcus Pestana* - Mais foco e menos confusão

O grande apresentador da TV brasileira, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, em seu estilo único e inconfundível anarco-pré-tropicalista, cunhou duas frases lapidares que nos servem neste grave momento de angústia e dúvidas: “Quem não se comunica, se trumbica” e “Eu não vim para explicar, mas para confundir”. Afinal, já são mais de 155 mil vidas brasileiras roubadas pela COVID-19 e a guerra ainda não acabou. No entanto, quando olhamos para o horizonte não vemos comunicação e rumo claros. Não só a sociedade, mas também o governo e as lideranças políticas e sociais produzem desinformação. E como orientava Chacrinha, isto é fatal.

Confesso que mesmo com toda a minha experiência de 38 anos, como político e gestor público, fico estupefato com a leitura dos jornais. Por vezes sinto que estou vivenciando um misto de teatro do absurdo, filme de terror e seriado dos três patetas. É inacreditável que diante de uma crise sanitária, econômica e social gravíssima, tenhamos tal descolamento da realidade.

Contraí a COVID. Foram quatorze dias de convivência com o vírus, terminados ontem. Este vírus é traiçoeiro. Não há um padrão. Cada pessoa manifesta os sintomas e sofre as consequências de um jeito único. Baixei na UTI. Lá fiquei três dias e li o livro do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, “Um paciente chamado Brasil” (Objetiva). E enxerguei ali a dificuldade de alguém de bem, com as melhores intenções, apoiador de Bolsonaro desde o primeiro turno, querendo apenas acertar na política de combate à pandemia, para impor o mínimo de compromisso com as evidências, a ciência, a realidade, a experiência internacional e as limitações operacionais. Como às vezes a má política e a miopia ideológica podem ser nocivas ao interesse real das pessoas e do país?

O que a mídia pensa – Opiniões/ Editoriais

Entre a reeleição e a dívida – Opinião | O Estado de S. Paulo

O presidente parece pouco interessado nos efeitos de uma dívida pública muito mais pesada que as de outros emergentes.

Ganhar confiança de credores e investidores é hoje um dos principais desafios para o governo, forçado a administrar uma dívida crescente numa fase de enormes dificuldades. Antes da pandemia o Brasil já era o campeão do endividamento público entre os emergentes. Forçado a buscar mais empréstimos neste ano, o Tesouro aceitou prazos menores para evitar juros mais altos. Com grandes vencimentos no início de 2021, o Executivo terá de correr atrás de dinheiro e ao mesmo tempo tentar alongar os prazos e conter os custos. A resposta do mercado vai depender de um claro compromisso com a arrumação das finanças oficiais, com um programa de ajuste bem definido.

Há muito ruído atrapalhando, admitiu o secretário do Tesouro, Bruno Funchal, em evento organizado pelo Estado/Broadcast em parceria com a agência Austin Rating. Emitir papéis longos fica difícil quando há dúvidas sobre a manutenção do teto de gastos e outros aspectos da administração fiscal. Uma clara agenda de reformas, com destaque para a tributária, é essencial para a redução da insegurança, acrescentou.

Mas a principal fonte de ruído é o próprio Executivo. Seria estranho se um funcionário de alto escalão, como o secretário do Tesouro, falasse publicamente sobre isso. Os fatos, no entanto, são claros e perceptíveis no dia a dia.

O mercado reage rotineiramente às desavenças entre facções ministeriais. Ninguém desconhece os conflitos entre a equipe econômica e a chamada ala política. Enquanto o pessoal do Ministério da Economia insiste em defender o teto de gastos e padrões de austeridade, outro grupo defende ações expansionistas, confundidas, impropriamente, com desenvolvimentismo.

Música - Adriana Calcanhotto e Rubel - Mentiras

 

Poesia | João Cabral de Melo Neto – O Rio

 

[fragmento]
“Até este dia, usinas
eu não havia encontrado.
Petribu, Muçurepe,
para trás tinham ficado,
porém o meu caminho
passa por ali muito apressado.
De usina eu conhecia
o que os rios tinham contado.
Assim, quando da Usina
eu me estava aproximando,
tomei caminho outro
do que vi o trem tomar:
tomei o da direita,
que a cambiteira vi tomar,
pois eu queria a Usina
mais de perto examinar.

Vira usinas comer
as terras que iam encontrando;
com grandes canaviais
todas as várzeas ocupando.
O canavial é a boca
com que primeiro vão devorando
matas e capoeiras,
pastos e cercados;
com que devoram a terra
onde um homem plantou seu roçado;
depois os poucos metros
onde ele plantou sua casa;
depois o pouco espaço
de que precisa um homem sentado;
depois os sete palmos
onde ele vai ser enterrado.

Muitos engenhos mortos
haviam passado no meu caminho.
De porteira fechada,
quase todos foram engolidos.
Muitos com suas serras,
todos eles com seus rios,
rios de nome igual
como crias de casa, ou filhos.
Antes foram engenhos,
poucos agora são usinas.
Antes foram engenhos,
agora são imensos partidos.
Antes foram engenhos
com suas caldeiras vivas;
agora são informes
partidos que nada identifica.

Mas nas Usina é que vi
aquela boca maior
que existe por detrás
das bocas que ela plantou;
que come o canavial
que contra as terras soltou;
que come o canavial
e tudo o que ele devorou;
que come o canavial
e as casas que ele assaltou;
que come o canavial
e as caldeiras que sufocou.
Só na Usina é que vi
aquela boca maior,
a boca que devora
bocas que devorar mandou.

Na vila da Usina
é que fui descobrir a gente
que as canas expulsaram
das ribanceiras e vazantes;
e que essa gente mesma
na boca da Usina são os dentes
que mastigam a cana
que a mastigou enquanto gente;
que mastigam a cana
que mastigou anteriormente
as moendas dos engenhos
que mastigavam antes outra gente;
que nessa gente mesma,
nos dentes fracos que ela arrenda,
as moendas estrangeiras
sua força melhor assentam.

Por esta grande usina
olhando com cuidado vou,
que esta foi a usina
que toda esta mata dominou.
Numa usina se aprende
como a carne mastiga o osso,
se aprende como mãos
amassam a pedra, o caroço;
numa usina se assiste
à vitória, de dor maior,
de brando sobre o duro,
do grão amassando a mó;
numa usina se assiste
à vitória maior e pior,
que é a da pedra curta
furada de suor.

Para trás vai ficando
a triste povoação daquela usina
onde vivem os dentes
com que a fábrica mastiga.
Dentes frágeis, de carne,
que não duram mais de um dia;
dentes são que se comem
ao mastigar para a Companhia;
de gente que, cada ano,
o tempo da safra é que vive,
que, na braça da vida,
tem marcado curto o limite.
Vi homens de bagaço
enquanto por ali discorria;
vi homens de bagaço
que morte úmida embebia.

E vi todas as mortes
em que esta gente vivia:
vi a morte por crime,
pingando a hora da vigia;
a morte por desastre,
com seus gumes tão precisos,
como um braço se corta,
cortar bem rente muita vida;
via morte por febre,
precedida de seu assovio,
consumir toda a carne
com um fogo que por dentro é frio.
Ali não é a morte
de planta que seca, ou de rio:
é morte que apodrece,
ali natural, que visto.

Agora vou deixando
a povoação daquela usina.
Outra vez vou baixando
entre infindáveis partidos;
entre os mares de verde
que sabe pintar Cícero Dias,
pensando noutro engenho
devorado por outra usina;
entre colinas mansas
de uma terra sempre em cio,
que o vento, com carinho,
penteia, como se sua filha.
Que nem ondas de mar,
multiplicadas, elas se estendiam;
como ondas do mar de mar
que vou conhecer um dia.”

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Merval Pereira - Ser pária

- O Globo

O resultado da eleição presidencial dos Estados Unidos pode ser fundamental para o resto do mundo, mas especialmente para países como o nosso, governado por extremistas de direita que sentem-se protegidos pela “relação carnal” com a administração Trump.

O presidente Bolsonaro ainda tem em mente a ideia de uma China comunista que quer dominar o mundo. Realmente, ela quer, como todo potência, mas com armas capitalistas, investimentos e produção, o que faz parte do jogo do capitalismo internacional. O Brasil tem que se aproveitar da sua importância geopolítica para tirar vantagens dos EUA, da China e da Europa, e não ficar entregue aos EUA, fazendo a política de Trump, que até agora não nos deu nada em vantagem. 

Se Joe Biden vencer a eleição americana, vai ficar difícil dar continuidade à política externa brasileira, porque o governo democrata vai exigir contrapartidas importantes do Brasil, especialmente na política ambiental. Com essa briga com a China, corremos o risco de virarmos párias mundiais, sem aliados, se EUA e Europa se unirem e voltarem a nos pressionar na questão do meio ambiente, o que é provável com a vitória de Joe Biden.

O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, um dos pilares da visão extemporânea de mundo que rege esse governo, anunciou ontem aos formandos do Instituto Rio Branco que o Brasil está disposto a ser um ‘pária internacional’ se for pela defesa da ‘liberdade’. 

Bernardo Mello Franco - Sabujismo orgulhoso

- O Globo

No governo Bolsonaro, não basta ser servil. É preciso ostentar a subserviência como prova de lealdade. Ontem dois ministros se humilharam em público para agradar ao chefe. Encolheram as próprias biografias e avacalharam as pastas que deveriam comandar.

Eduardo Pazuello, dublê de paraquedista e ministro da Saúde, recebeu Bolsonaro após ser desautorizado sobre a compra de vacinas. Sem corar, ele reconheceu a falta de autonomia no cargo. “Senhores, é simples assim: um manda e o outro obedece”, explicou.

Seguiu-se um diálogo constrangedor entre o general da ativa e o capitão reformado. “A gente tem um carinho”, disse Pazuello. “Opa, tá pintando um clima”, animou-se Bolsonaro. O ministro está com Covid, mas rompeu o isolamento para gravar com o presidente. Sem máscaras, os dois voltaram a fazer propaganda da cloroquina.

Míriam Leitão - Congresso subserviente

- O Globo

Assunto constitucional não é interna corporis, é assunto constitucional. Pode-se alterar a Constituição, mas não descumpri-la. Esse é o ponto que está em questão no esforço dos presidentes do Senado e da Câmara de permanecer no cargo. Eles torcem para que o ministro Gilmar Mendes decida que a reeleição seja uma questão interna. O problema é que se a liminar do ministro disser apenas isso há o risco de se criar o seguinte e perigoso precedente: mudar o regimento interno para alterar-se a Constituição.

O STF será usado para a realização de ambições pessoais, mais explícitas no caso do senador Davi Alcolumbre, de permanecer onde está. Alcolumbre tem feito tudo, até calar-se diante do abjeto escândalo das cuecas e preparar o forno de pizza para assim ficar bem com todo mundo.

A análise de parlamentares e de um ministro do Supremo ouvidos pela coluna é a de que o relator pode dizer que é interna corporis e isso será interpretado como licença para apenas alterar o regimento interno das Casas.

— Questão constitucional nunca será um problema interna corporis — alerta um ministro do STF.

— A Constituição é claríssima, não cabe interpretação, não é possível a reeleição. Vão pegar o termo em latim que provavelmente estará na liminar para de forma apressada fazer o rito de alteração do regimento interno. Mas se o ato interno é regido pela Constituição esse não pode ser o caminho. Se o constituinte achou por bem normatizar, só por emenda pode ser alterada — explicou um parlamentar.

Eliane Cantanhêde - O rei sou eu

- O Estado de S.Paulo

Depois de Coaf, Receita e PF, Bolsonaro vai meter a mão na Anvisa por capricho?

Luiz Henrique Mandetta foi demitido por propor o isolamento social, Nelson Teich se demitiu por não engolir a cloroquina, Eduardo Pazuello é humilhado por tentar viabilizar uma vacina em massa para o País. Estão todos errados e só o presidente Jair Bolsonaro está certo? Ou, entre a vida dos brasileiros e suas conveniências políticas, ele fica com a reeleição?

Já que os dois médicos se recusaram a fazer o jogo sujo, ele convocou o general da ativa para bater continência a tudo o que lhe vier na cachola e avisa: “Quem manda sou eu, não vou abrir mão da minha autoridade”. Pazuello concorda, pateticamente: “É simples. Um manda, o outro obedece”.

O general diz, o capitão desdiz. E o que o general faz? Abaixa a cabeça e diz que foi “mal interpretado” ao anunciar a compra de 46 milhões de doses da vacina Coronavac assim que obtivesse o registro da Anvisa. Como alguém desmente o que escreveu em ofício e disse em vídeo para mais de 20 governadores? Vergonha alheia. Forças Armadas, Exército e oficiais, o que acham dessa vassalagem inominável?

Ignácio de Loyola Brandão* - O dinheiro que veio de estranho lugar

- O Estado de S.Paulo

Não suportando mais, o senador pediu habeas corpus ao Supremo e sumiu. Como o André do Rap

Ainda hoje, a história da gastroenterologia debate o caso que assombrou especialistas. Porque ele passou a fazer parte dos anais científicos. Jamais se viu coisa igual. Curioso, anômalo, singular. Tudo começou em calma madrugada, durante a pandemia de coronavírus. Um senador terrivelmente medíocre, mas unha e carne com o presidente da nação, sentiu cólicas intestinais tenebrosas. Foi ao banheiro, nada. As dores aumentaram. Chamaram o Sistema Popular de Medicina, do qual aliás o senador tinha desviado Himalaias de verbas, uma vez que tinha se formado nas melhores universidades do ramo, as cariocas, e o político foi levado ao hospital para uma lavagem ou enema ou clister.

Quando veio a reação, os médicos se entreolharam, fascinados. Mais que isso, às gargalhadas. Ajustaram fortemente as máscaras por causa do cheiro e chamaram colegas, laboratoristas, enfermeiros, auxiliares. Nunca ninguém tinha visto aquilo, ficaram maravilhados. Em lugar da habitual massa que costuma sair de condutos próprios, atravessando pequeno orifício circular existente há milhões de anos nos seres humanos, o que estava sendo expelido aos borbotões? O quê? “Não é possível”, disse o diretor. “Só não grito milagre porque sou terrivelmente ateu.”

Dora Kramer - Esconderijos

- Revista Veja

Flagrante da cueca revela mazelas para além do dinheiro oculto

O episódio tragicômico do senador ora afastado oculta — e ao mesmo tempo revela — muito mais que dinheiro em camadas subjacentes às bermudas. De imediato nos relembra casos que por isso já viraram hábito, de esconder cédulas de origem imprecisa em locais inusitados: cuecas, calcinhas, meias, apartamentos usados como cofres e até contabilidade de lojas de chocolate.

Em seguida entraram em cena outras mazelas incrustadas nas piores práticas da política, feito mariscos nas pedras. Deve haver mais, mas cito três: o gosto parlamentar por acertos meia bomba à meia-luz, o menosprezo ao discernimento alheio e o método de ocupação da suplência dos senadores.

Escolho me ater ao último item, até por ter ficado em segundo plano nas análises que acertadamente deram destaque às espertezas do presidente do Senado. Empenhado em não desagradar a ninguém a fim de obter uma reeleição ilegal, Davi Alcolumbre costurou o acerto que permitiu ao colega Chico Rodrigues se licenciar por 121 dias.

Assim, livrou a Casa de tomar uma decisão, no aguardo de que daqui a quatro meses o caso tenha sido relegado à categoria de “notícia velha”, e ainda postergou a volta do Conselho de Ética, onde há, entre mais de vinte processos em aberto, um envolvendo o senador Flávio Bolsonaro.

Ricardo Noblat - General Pazuello, pede pra sair!

- Blog do Noblat | Veja

Farda manchada

Como acreditar no que o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, disser ou fizer doravante? Se tivesse o mínimo de preocupação com a sua e a imagem dos colegas de caserna, pediria demissão depois de desautorizado pelo presidente Jair Bolsonaro no caso da compra da vacina chinesa contra a Covid-19.

Mas, não. Infectado pelo vírus, recolhido ao hotel do Exército em Brasília, onde mora, Pazuello foi acordado, ontem à tarde, para receber a visita de Bolsonaro. E foi constrangido a gravar uma parte de sua conversa com ele onde afirmou: “É simples assim, um manda e outro obedece. Mas a gente tem carinho”.

Vexame, vexame, vexame! Onde já se viu um general render-se a um capitão? Ou melhor: a um ex-capitão? Tudo bem, o ex-capitão é hoje o presidente da República, e o general ainda na ativa, seu vassalo. De toda forma, pegou muito mal para ele entre seus colegas de farda. Primeiro foi desautorizado. Depois, humilhou-se.

No último fim de semana, Pazuello havia combinado com Bolsonaro no Palácio da Alvorada o que diria quando se reunisse com os governadores para discutir a compra de vacinas. E cumpriu o combinado ao anunciar:

“A vacina do Butantan será a vacina brasileira. Já fizemos carta em resposta ao ofício do Butantan, e essa carta é o compromisso da aquisição das vacinas que serão fabricadas até o início de janeiro, em torno de 46 milhões de doses, e essas vacinas servirão para nós iniciarmos a vacinação ainda em janeiro. Essa é a nossa grande novidade e isso reequilibra o processo”.

Aí, o governador João Doria (PSDB), de São Paulo, o padrinho da vacina chinesa no Brasil, celebrou o anúncio nas redes sociais e por toda parte. Aí, no dia seguinte, os bolsonaristas de raiz foram para cima de Bolsonaro nas redes. Aí, furioso e a conselho dos três filhos zeros, Bolsonaro deixou Pazuello pendurado na brocha.

Militares próximos ao presidente, e militares da reserva ficaram indignados com o episódio. Inicialmente, com o que Bolsonaro fez. Ontem, com o que fez também Pazuello. Até porque a vacina chinesa, ainda em fase de teste como as demais, se aprovada acabará sendo comprada. Doria continua rindo à toa.

Essa parada foi ganha por ele, que mais e mais se oferece como o candidato capaz de derrotar Bolsonaro em 2022. Cerca de 70% dos brasileiros se dizem dispostos a se vacinar, segundo pesquisa Datafolha. E parte deles começa a ver Bolsonaro como inimigo de tudo o que possa salvar vidas.

Em tempo: Pazuello revelou que está sendo tratado com cloroquina. Bolsonaro ficou muito satisfeito com o que ouviu.

 Delegadas em alta, candidatos a prefeito favoritos, preocupados

Russomano derrete e rejeição a Crivella aumenta

O sonho de qualquer candidato é poder escolher o seu adversário. O adversário dos sonhos do prefeito Bruno Covas (PSDB), de São Paulo, por exemplo, é o deputado Celso Russomano (Republicanos), apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Luiz Carlos Azedo - A teoria do dano e a vacina

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Bolsonaro não leva em conta que uma pessoa infectada, por se recusar a tomar a vacina, pode contaminar as outras, com consequências trágicas e irreparáveis

A ideia de que um presidente eleito por maioria pode tudo é profundamente autoritária e colide com os fundamentos do liberalismo moderno, apesar de agora ter virado moda em algumas democracias do Ocidente, inclusive a nossa. O filósofo e economista John Stuart Mill, um liberal utilitarista britânico que se inspirou nas ideias dos iluministas franceses, em meados do século XIX já classificava essa visão como uma “tirania da maioria”, expressão que causa certo espanto, porque muitos acham que maioria e democracia são exatamente a mesma coisa. Não são.

Sobre a Liberdade (Saraiva), um clássico da ciência política, é um libelo de Mill em defesa da liberdade de expressão e da autonomia dos cidadãos. Nascido em Londres, em 1806, destacou-se também pela defesa do civismo público e dos direitos das mulheres. Era um liberal progressista. Acabou preso por defender o direito ao aborto, a reforma agrária e a democratização da propriedade por meio de cooperativas, ideias social-liberais. Tentou definir um modelo para regular as ações entre os cidadãos, a sociedade e o Estado, que deveria ser capaz de preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a “tirania da maioria”, a partir de um conceito simples: tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros.

Bruno Boghossian – Ernesto cumpriu sua missão

- Folha de S. Paulo

Ernesto Araújo cumpriu sua missão com discurso vazio e agenda ultraconservadora

O ministro Ernesto Araújo finalmente reconheceu que a chancelaria bolsonarista não tem muitas credenciais para exibir pelo mundo. Ele disse que o Brasil é visto como um pária internacional por sustentar uma defesa da liberdade. “Então, que sejamos esse pária”, afirmou.

Após pavimentar uma via para o isolamento e de infiltrar o fundamentalismo na diplomacia brasileira, Ernesto posa de vítima de suas supostas virtudes. Numa formatura de diplomatas, nesta quinta (22), o chanceler comemorou sua retórica vazia e escondeu os prejuízos dessa gestão para os interesses nacionais.

O ministro se gabou do fato de que Jair Bolsonaro e Donald Trump “foram praticamente os únicos a falar em liberdade” na última Assembleia Geral da ONU. Se esse é um critério relevante para a diplomacia, o Brasil está em má companhia. O chanceler da Coreia do Norte também pediu um mundo “livre de dominações” e defendeu a soberania dos países.

Hélio Schwartsman - Quando a leviandade mata

- Folha de S. Paulo

Chilique presidencial é cálculo político míope e mesquinho

Jair Bolsonaro é o presidente. Foi eleito democraticamente. Mas não tem condição moral nem intelectual de exercer o cargo, do que dá prova a leviandade com que trata a questão da vacina.

Não sei se a Coronavac, a "vacina chinesa do Doria", no linguajar presidencial, vai funcionar bem. Ninguém sabe. Mas, na atual conjuntura, é um dos fármacos mais promissores em fase final de testes. Engajar-se num programa de compra e produção antecipadas é uma opção de risco, mas, se o imunizante tiver sucesso, fazê-lo nos dará um ou dois meses de dianteira no processo de vacinação, o que pode salvar muitas vidas e reduzir o estrago econômico da pandemia.

Vale observar que o governo fez exatamente a mesma aposta no caso da vacina da Universidade de Oxford, o que desmonta por inteiro a afirmação de Bolsonaro de que não se pode avançar na compra de vacinas até que elas tenham sido licenciadas pelos órgãos competentes.

Ao que tudo indica, o chilique presidencial não tem motivação técnica, mas é fruto de um cálculo político míope e mesquinho, que procura agradar à base mais amalucada do bolsonarismo, que tem alergia a coisas feitas por "chineses comunistas", ao mesmo tempo em que se recusa a fazer qualquer gesto que possa beneficiar um rival, no caso, Doria.

Reinaldo Azevedo – Temos, sim, vacina contra o caos

- Folha de S. Paulo

 A única saída é tentar resgatar o país dos escombros da legalidade

A entropia do sistema político elegeu Jair Bolsonaro. Ainda que um reacionarismo nada subterrâneo se manifestasse transversalmente na sociedade brasileira, este se mantinha mais ou menos à margem como força (des)organizadora do sistema. Os agentes da desordem eram neutralizados pelos da ordem.

No dia em que se estudar o sistema político a sério, o Brasil descobrirá razões para, por exemplo, lamentar o esfacelamento do núcleo duro do MDB. O partido atraía e digeria o monstro, hoje autônomo. O surto de moralismo barato, que investia e ainda investe na destruição de garantias legais, liberou as forças do caos. E, como já refletiu a filósofa, “depois que a pasta de dente sai do dentifrício, ela dificilmente volta para dentro do dentifrício”.

Bolsonaro virou o beneficiário e o monopolista desse caos. Pode não agir em nome de uma teoria do poder, mas se expande na ausência de uma força organizada que lhe faça oposição. Seria incapaz de redigir uma redação do Enem explicando o seu pensamento, mas intui que sua primeira tarefa é esmagar os adversários que estão em seu próprio campo ideológico.