Não
suportando mais, o senador pediu habeas corpus ao Supremo e sumiu. Como o André
do Rap
Ainda
hoje, a história da gastroenterologia debate o caso que assombrou
especialistas. Porque ele passou a fazer parte dos anais científicos. Jamais se
viu coisa igual. Curioso, anômalo, singular. Tudo começou em calma madrugada,
durante a pandemia de coronavírus. Um senador terrivelmente medíocre, mas unha
e carne com o presidente da nação, sentiu cólicas intestinais tenebrosas. Foi
ao banheiro, nada. As dores aumentaram. Chamaram o Sistema Popular de Medicina,
do qual aliás o senador tinha desviado Himalaias de verbas, uma vez que tinha
se formado nas melhores universidades do ramo, as cariocas, e o político foi
levado ao hospital para uma lavagem ou enema ou clister.
Quando
veio a reação, os médicos se entreolharam, fascinados. Mais que isso, às
gargalhadas. Ajustaram fortemente as máscaras por causa do cheiro e chamaram
colegas, laboratoristas, enfermeiros, auxiliares. Nunca ninguém tinha visto
aquilo, ficaram maravilhados. Em lugar da habitual massa que costuma sair de
condutos próprios, atravessando pequeno orifício circular existente há milhões
de anos nos seres humanos, o que estava sendo expelido aos borbotões? O quê?
“Não é possível”, disse o diretor. “Só não grito milagre porque sou
terrivelmente ateu.”
Dinheiro.
Dinheiro vivo jorrava. Cédulas e cédulas do mais alto valor que a nação hoje
fabrica. As lindas notas de 200 reais com o lobo-guará. Foi a primeira vez que
aquele corpo científico viu uma nota de 200. Estavam em circulação, porém
ninguém as tinha recebido. Havia filas quilométricas nos bancos e caixas
eletrônicos tentando pegar alguma. Mas eram mais inacessíveis que o pagamento
emergencial para a covid. A coisa parecia reviver a galinha dos ovos de ouro.
Ou tinha-se a sensação que o rei Midas da Frigia, levado pelo gênio da garrafa,
Wassef, escondia-se na barriga do senador.
Trouxeram
baldes com detergentes e desinfetantes e todos – com alguma repugnância, parece
que o senador tinha comido lixo – começaram a apanhar as notas, colocando-as de
molho a fim de eliminar resquícios, chamados vulgarmente de bosta. Mesmo nome
daquele candidato político de Bauru, ou o Merda, de Dobrada, ambos do interior
paulista. Isso é que é lavagem de dinheiro, comentavam, receosos que a Polícia
Federal chegasse. Ninguém levantou a possibilidade de ficar com aquele mundo de
notas que fluía gastricamente.
Decidiram
que, antes que o ministro da Economia soubesse e criasse novo imposto, que não
ia cheirar bem, correram e depositaram tudo em nome de uma organização social.
A imprensa repercutiu. O nome do senador – político do clero subterrâneo –
viralizou, ele foi celebrado pelos seus pares e eleito presidente do Senado.
Motivo: fenômeno da ciência, estudado por revistas como a Lancet, o Journal of
Organic Chemistry, Annual Reviews, Nature Science, New England Journal of
Medicine.
Prêmios
Nobel de Medicina e Ciência foram chamados. Vieram, avaliaram e disseram que
era assunto para escritores como Gabriel García Márquez e Luis Fernando
Verissimo, Antonio Prata, Sergio Abranches, Antonio Torres, Alberto Mussa e
Loyola Brandão, ou historiadores como Lira Neto e Heloisa Starling. Márquez já
morreu, os outros não deram retorno. Todos senadores, parlamentares, ministros,
políticos, o Centrão inteiro, o trio O1, O2, O3 procuraram o senador a fim de
que ele revelasse a fórmula do que comia e se tornava dinheiro vivo. Modesto,
ele confessou: “nada mais do que o frugal, o mesmo que o Supremo come, lagosta,
caviar, faisão, escargô, patê da campagne, foie gras chaud, presunto Pata
Negra, javalis da Pomerânia”.
A
vida do senador passou a ser um agito. Fêrvo, como se diz em Araraquara. Todos
se postaram à porta do seu banheiro, para ver o que tinha sido produzido. A
família não aguentava mais a pressão, não havia sossego. Pastores de mil
religiões exigiam sua presença a fim de relatar o que consideravam milagre de
Deus. Passou a receber boletos exigindo pagamento do dízimo. A Receita Federal
revisou suas declarações, viu que ele jamais declarou o que evacuava, foi
processado, multado. Não suportando mais, o senador pediu habeas corpus ao
Supremo e sumiu. Como o traficante André do Rap. Igual ao Queiroz, protegido
por Wassef, o bom samaritano.
Este
episódio entrou para os Anais da Medicina. Filólogos, etimologistas e
gramáticos admitem que a palavra Anais nunca foi tão apropriada.
*É jornalista e escritor, autor 'Zero' e 'Não verás país nenhum'
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