domingo, 8 de fevereiro de 2009

Lulismo e tradição

EDITORIAL
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Ambiguidades da retórica presidencial evidenciam linhas de continuidade entre seu governo e antecessores

DO ALTO de impressionantes níveis de popularidade, o presidente da República parece mais do que nunca imbuído daquele estilo que, há tempos, ele próprio denominou jocosamente de "Lulinha paz e amor".

Inaugurando uma hidrelétrica em Tocantins, nesta quinta-feira, Lula tratou de irradiar essa atitude de plenipotenciária bonomia às autoridades que o circundavam no palanque -com destaque para a ministra Dilma Rousseff, cuja eventual candidatura à Presidência vai sendo testada em cerimônias desse tipo.

Desse espírito de conciliação acabam resultando curiosas inflexões no discurso presidencial. De um lado, o presidente Lula guarda resquícios da antiga retórica petista. No evento desta quinta-feira, lembrou-se de acusar, por exemplo, as "oligarquias" brasileiras de terem impedido, "por vários séculos", a realização de uma obra como a transposição das águas do rio São Francisco.

Perguntaram-lhe em seguida se é possível, no Brasil, governar sem apoio de oligarquias. "Não", respondeu Lula, "tanto que eu tenho uma parceria extraordinária com os empresários brasileiros". Terminou afirmando que todo mundo, na vida, "seja o trabalhador ou o oligarca", tem seus momentos de mudar de ideia.

Em meio a tais retorções de vocabulário, pode-se ver com nitidez o estilo "lulista" de fazer política. Apesar das constantes menções a tudo o que teria havido de inédito em sua ascensão ao poder, o presidente Lula segue um roteiro conhecido na história política brasileira.

Desde Getúlio Vargas, passando por JK, e repetindo-se mesmo no caso aparentemente tão diverso de Fernando Henrique Cardoso, a Presidência da República muitas vezes se equilibrou entre o impulso das tendências modernizantes, nos centros mais desenvolvidos, e uma arraigada base oligárquica regional.

A aliança entre PT e PMDB, no atual governo, corresponde em boa medida ao que, no governo Fernando Henrique, unia o PSDB e o então PFL. Diferenças de coloração ideológica contam menos do que a influência da conjuntura econômica internacional no sucesso ou insucesso popular de cada administração.

Os altos índices de aprovação do governo Lula sem dúvida se devem à combinação dos razoáveis índices de crescimento econômico obtidos até agora, e de ganhos efetivos de renda nas camadas mais pobres da população, com a empatia pessoal do presidente. Este último fator, embora não irrelevante, conta menos no cenário político do que o desempenho da economia no futuro próximo -sobre o qual pairam as maiores incertezas.

O indubitável, contudo, é que o papel do governo Lula na história brasileira não foi o de representar uma ruptura. Inscreve-se, no que esta tem de criticável e de positivo, numa tradição conhecida -a de conciliar atraso e desenvolvimento, oligarquia e mudança. O resto é retórica - cujas ambiguidades, no caso do presidente Lula, apenas confirmam o que há de essencial no seu modo de governar.

O pior cego...

Sérgio Fausto
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Um amigo, que agora acompanha de perto a cena política da Itália e faz tempo reflete sobre as relações internacionais, sob a perspectiva das sociedades civis, e não apenas dos governos dos países, escreveu-me esta semana a respeito dos danos que o episódio Battisti vem provocando à imagem do Brasil na sociedade italiana.

Muito se tem falado sobre os efeitos do episódio nas relações governo a governo. O estrago salta aos olhos. Menos visível, mas não menos importante, é a perda de parte da simpatia e do prestígio acumulados ao longo de anos pelo Brasil entre os italianos.

Não é uma perda irreversível, claro, mas levará tempo para sanar os efeitos da decisão desastrada e quase inexplicável do ministro Tarso Genro. Ao conceder refúgio a Cesare Battisti - nunca é demais lembrar, contrariando a decisão do Conselho Nacional dos Refugiados e não obstante sentenças condenatórias em tribunais italianos e uma corte europeia - ele desconsiderou não apenas a reação previsível do governo daquele país, mas principalmente o sentimento existente na sociedade italiana em relação aos chamados "anni di piombo".

Foram mesmo anos de chumbo: entre o atentado a bomba da Piazza Fontana, em 1969, e a explosão da estação de trem de Bolonha, em 1980, grupos de extrema-direita e extrema-esquerda promoveram o terror. Não apenas se trucidaram reciprocamente, mas também vitimaram políticos, agentes do Estado, principalmente policiais e juízes, e muitas pessoas comuns. Foram muitos os mortos - 85 deles apenas no atentado na estação de Bolonha, perpetrado pela extrema-direita. E imenso o trauma deixado.

O sequestro e o posterior assassinato de Aldo Moro, pelo seu significado político, dão a chave para entender a dinâmica daqueles anos terríveis. Moro havia sido primeiro-ministro por duas vezes, era uma das principais lideranças do maior partido do país, a Democracia Cristã (DC), e estava empenhado na construção do que à época ficou conhecido como "o compromisso histórico".

Tratava-se de uma aliança entre a DC e o Partido Comunista Italiano (PCI), que atingira quase 35% nas eleições legislativas de 1976. Pelo lado da DC, Moro era o principal artífice da aliança. Pelo PCI, Enrico Berlinguer, que vinha conduzindo o partido para longe do PC da URSS. Da sua ótica, o "compromisso histórico" serviria para dar estabilidade política à Itália num momento especialmente delicado (além do terrorismo, o país enfrentava os efeitos da crise resultante do primeiro choque do petróleo) e pavimentar o caminho para uma transição pacífica para o socialismo. O Chile, onde a polarização entre os partidos de esquerda e a DC abrira caminho para o golpe de Pinochet, em 1973, oferecia-lhe o contraexemplo.

O "compromisso histórico" tinha muitos inimigos. Na extrema-esquerda, as Brigadas Vermelhas e outros grupúsculos, entre os quais o de Cesare Battisti, que apostavam na polarização política e na destruição do "Estado imperialista das multinacionais" (as Brigadas assim designavam o Estado italiano), pela via armada. Na extrema-direita, os setores terroristas do Movimento Social Italiano, partido fascista, que viam no "compromisso histórico" a antessala da "comunização" do país.

Compartilhavam essa percepção, com maior ou menor nuance, setores do serviço secreto italiano e do establishment conservador norte-americano. Sim, a Itália, pela presença de um partido comunista de massas, foi o foco das preocupações e da atuação dos Estados Unidos na Europa Ocidental durante a guerra fria. Na Bota, a intromissão da CIA na política doméstica não é mito, mas um fato histórico fartamente documentado. Como se não bastasse, o "compromisso histórico" encontrava oposição na ala da Democracia Cristã ligada a Giulio Andreotti, também ele primeiro-ministro da Itália por duas vezes, político mais conservador, cujas ligações com a Máfia viriam a público anos depois.

A despeito de tudo, a aliança entre a DC e o PCI avançou. Moro foi sequestrado quando se dirigia ao Parlamento para uma sessão na qual seria confirmado o primeiro governo da DC com o apoio dos comunistas. Brutalmente assassinado com dez tiros à queima-roupa, desferidos pelo líder brigadista Mario Moretti, teve seu corpo encontrado 55 dias após a sua captura no porta-malas de um carro abandonado na Via Caetani, em Roma, num ponto equidistante entre as sedes do PCI e da DC. O simbolismo não poderia ser mais claro. Ao assassinar Moro, as Brigadas procuravam sepultar o "compromisso histórico".

A aliança entre a DC e o PCI, ao final, não teve vida longa, por razões que vão além do assassinato de Moro. Na esteira de seu fracasso, a política italiana voltou a girar em torno das alianças da DC com outros partidos menores, lubrificadas por práticas pouco ortodoxas na lida com recursos e cargos públicos, que foram desnudadas no âmbito da Operação Mãos Limpas, nos anos 90. Desnudadas, mas não erradicadas, infelizmente.

Num aspecto crucial, porém, houve progresso na política italiana nos mais de 30 anos que nos separam do caso Aldo Moro: o terrorismo, cujas fronteiras com o crime comum se tornaram cada vez mais tênues, foi eliminado pela atuação do Estado e pela repulsa veemente da quase totalidade da sociedade italiana.

Foi esse sentimento de repulsa - guardado, mas ainda vivo - que a decisão do ministro Tarso Genro atraiu contra o Brasil e o governo atual. Fosse apenas contra o governo atual, teríamos, em tese, um problema circunscrito e com prazo determinado. Mas é a imagem do Brasil que se vê atingida, a menos que o STF "corrija" a decisão ministerial. Isso parece improvável. É que a decisão de Tarso Genro, ao que tudo indica, não fere a legalidade. Ela fere o bom juízo político que se espera de um ministro de Estado.

Sérgio Fausto, coordenador de Estudos e Debates do iFHC, é membro do Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP

Quem é o Estado?

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

O Estado somos nós – os três poderes formais, o Ministério Público, a imprensa, seus leitores, a sociedade que se manifesta e vota.

O escandaloso comportamento do novo Severino Cavalcanti, o deputado-corregedor Edmar Moreira (DEM-MG), na inauguração da legislatura, teve o mérito de oferecer uma panorâmica da putrefação do Legislativo. Com apenas algumas frases e um inacreditável currículo exibiu o mau estado do nosso Estado.

No momento em que o mundo celebra o retorno do Estado atuante, rigoroso e responsável nos é oferecida a tomografia de um Estado moralmente arruinado e deficiente. A culpa, evidentemente, não é do governo que apoiou a chapa vitoriosa na Câmara Federal, a oposição também votou nela. A culpa não é do novo presidente da Casa do Povo, jurista Michel Temer (PMDB-SP), que não achou necessário investigar em profundidade a biografia, currículo e folha corrida de um de seus eventuais substitutos (o corregedor é também um dos vice-presidentes da Casa). O castelo medieval de 30 milhões de reais construído por Edmar Moreira sem o conhecimento do fisco e da Justiça Eleitoral não é obra recente. As aberrações que envolvem o deputado federal e seu filho, Leonardo, deputado estadual, estão sendo investigadas desde 2006.

A proposta de acabar com a corregedoria da Câmara e considerar os deputados como anjinhos que sofrem apenas de um vício, o "vício da amizade" não resultou de um escorregão retórico. Edmar Moreira completará em breve seus 70 anos, tem 18 de carreira parlamentar, é um sólido e perfeito exemplo da estupidez, despreparo, cinismo e ganância de um grupo considerável de servidores do Estado brasileiro eleitos para protegê-lo.

Edmar Moreira é mais um caso de geração espontânea. Ninguém é responsável por seu súbito aparecimento na cena pública, cada um tenta inocentar-se alegando que cumpre escrupulosamente as suas tarefas. A culpa é sempre do outro. E o outro são todos os que aceitam, convivem e reforçam o descalabro sem protestar, indignar-se ou, pelo menos, sofrer diante de suas dimensões.

O senador José Sarney (PMDB-AP) certamente não conhece o deputado Edmar Moreira, operam em esferas, níveis e ambientes diferenciados. Mas ao ser reconduzido pela terceira vez em 14 anos à presidência da Câmara Alta, Sarney incorpora-se ao mesmo sistema que na Câmara Baixa produz um deputado que aceita o convívio com o crime e a corrupção. Sarney chefia o Legislativo, esta deformação deveria sensibilizá-lo. Não está obrigado a pronunciar-se diante de cada delito cometido por um parlamentar, mas de alguma forma deveria consolar os milhões de concidadãos que esperam dos legisladores um mínimo de dignidade.

Um Legislativo desacreditado, desacredita o Estado, anula sua legitimidade. Aliena para o Executivo e o Judiciário parte de seus compromissos, desequilibra o edifício institucional. A "judicialização" da vida nacional que tanto incomoda o presidente Lula – e ele está certo em reclamar – decorre apenas da lenta e inexorável desmoralização do Legislativo. Quando os candidatos à presidência da Câmara Federal denunciavam o excesso de Medidas Provisórias encaminhadas pelo governo assumiam plenamente o estado calamitoso de um dos sustentáculos do Estado e que, ao longo dos anos, vem abdicando de suas prerrogativas absorvido apenas pela manutenção de privilégios.

A discussão mundial sobre o papel do Estado não se limita ao campo econômico. A crise não é apenas financeira, seus efeitos políticos logo começarão a aparecer. Conflitos sociais – espontâneos ou orquestrados – não tardarão. São inevitáveis, basta examinar o que aconteceu em todo o mundo nos anos 30 do século passado, na véspera da Segunda Guerra Mundial.

A famosa declaração do Rei Sol, Luis XIV, "O Estado Sou eu", pode não ter acontecido, os historiadores ainda discutem sua autoria. Mas a frase completa seria ainda mais preocupante: "Eu sou a Lei, eu sou o Estado, o Estado sou eu".

» Alberto Dines é jornalista

Pode ser, mas está difícil

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Os novos presidentes da Câmara e do Senado acertaram na escolha do conteúdo, mas claudicaram visivelmente na forma de conversar com o presidente da República sobre a edição de medidas provisórias, no primeiro encontro oficial dos três depois das eleições de Michel Temer e José Sarney.

Do jeito como foi posto o assunto, é difícil que se chegue a uma solução minimamente razoável. Do ponto de vista do Poder Legislativo, porque sob a ótica do Executivo tudo está bem.Não merece muita credibilidade a declaração feita pelo ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, logo após a reunião. "O governo tem consciência de que precisa diminuir a edição das medidas provisórias", disse.

Se tem, adquiriu muito recentemente, pois durante toda a legislatura passada embromou solenemente os então presidentes Arlindo Chinaglia e Garibaldi Alves - que se deixaram docemente embromar, diga-se -, evitando a votação da proposta de mudança no rito das MPs. O assunto é discutido há dois anos e há dois anos não sai do lugar.

O presidente do Senado comunicou ao presidente Lula que considera "inaceitável" a quantidade de edições. Um adjetivo. O presidente da Câmara promete algo mais substantivo. Prega obediência total à Constituição.

A julgar por aquele encontro entre os três presidentes, é difícil sair algo de efetivo. Pelo seguinte: Temer e Sarney já começaram a conversa flexibilizando posições. Praticamente pediram licença a Lula para cumprir o que diz a Constituição e o fizeram quase em tom de escusas.

Não que devessem chegar ao Palácio do Planalto com a Carta em punho informando que dali para frente tudo seria diferente. Não. Mas também não precisavam chegar abrindo a guarda para a solução que for mais conveniente ao Executivo.

E foi esse o ponto de partida, quando o princípio da discussão é outro: o presidente tem a prerrogativa de editar MPs sobre o que julga urgente e relevante e o Congresso tem o direito de analisar se concorda. Se discordar, devolve. Simples e institucional, sem brigas nem atritos.

Conversar previamente com o presidente da República sobre o conteúdo de cada medida, como propõe Temer, é uma distorção de funções. Primeiro, porque o regime é presidencialista, o que confere a decisão ao presidente.

Segundo, porque há uma regra muito clara sobre o passo seguinte: o Congresso admite ou não a tramitação da medida. Em terceiro lugar, porque o presidente da Câmara ou do Senado não pode se substituir ao colegiado e assumir esse papel previamente. Muito menos em feitio de negociação.

Em tese, o senador José Sarney compreende do que se trata quando diz que sua autonomia terá de ser exercida independentemente do apoio político dado ao presidente da República. "Nós separamos o que é relação pessoal e o que é relação institucional", disse.

Não separam. Nem eles nem político nenhum. No Brasil não é a impessoalidade que preside as relações. Nem mesmo entre eleitos e eleitores.

Se fosse, esse cuidado todo, esse pisar em ovos seria dispensável. Não haveria a dicotomia entre o conflito e a harmonia, a devolução de uma medida provisória não renderia crises, não seria fruto de pressões nem sempre bem intencionadas, não geraria retaliações.

A consciência da obediência à Constituição como dever primeiro do cidadão não requer negociações, acertos, reverências, concessões. É autoexplicável e, portanto, autoaplicável.

Plano B

O PT caminha para 2010 com Dilma Roussef, reservando-se, contudo, o direito à descrença sobre as condições objetivas da ministra para se tornar uma candidata presidencial competitiva.

Os petistas não sabem direito quais os planos de Lula, mas estão com ele. Por via das dúvidas, preparam-se para refazer o trajeto à esquerda e retomar o discurso da ética.

Uma sinalização para quem se interessa em pilotar o andar dessa carruagem será a posição do PT em relação ao código de ética do partido, a ser discutido ao longo de 2009.

Se a maioria pedir um código mais ameno, menos "moralista e udenista", significa que há esperança de vitória em 2010. Se prevalecer a defesa aguerrida dos bons costumes, quer dizer que o PT trabalha para voltar à oposição.

Ponto pacífico

Ainda presidente do PMDB, em vias de se licenciar para evitar questionamentos no exercício da presidência da Câmara, Michel Temer põe um ponto final na expectativa de que o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, possa se filiar ao partido.

No ano passado, Temer conversou muito a respeito com Aécio; chegaram a falar sobre o rito de passagem e a necessidade de o governador levar junto um grupo expressivo de políticos mineiros, tucanos ou não.

Agora, na avaliação de Temer, o PMDB entendeu (ou quis entender) que Aécio não sai do PSDB; vai disputar posições dentro do partido. "Isso é fato vencido", diz o presidente da Câmara.

Em marcha forçada

Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Dilma opera com o Orçamento da União, os bancos oficiais, os fundos de pensão e as agências reguladoras, numa espécie de novo “dirigismo estatal”

O Brasil, tecnicamente, entrou em recessão. Ilha de tranquilidade num mar proceloso, o nosso ciclo de desaceleração está em curso desde dezembro passado, no rastro da crise nas 30 nações mais ricas do mundo. Talvez por isso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha resolvido antecipar a disputa sucessória. Numa espécie de marcha forçada, colocou na estrada a candidatura da “mãe do PAC”, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), gerente do “Programa de Aceleração do Crescimento”. Se o Brasil conseguir sair da recessão antes das eleições de 2010, Dilma poderia virar uma espécie de Fernando Henrique Cardoso de saias, isto é, se eleger presidenta da República de forma semelhante ao tucano, que chegou ao Palácio do Planalto, em 1995, graças ao Plano Real.

Recessão

Nesta semana, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) diagnosticou a desaceleração da economia brasileira. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta a recessão de duas maneiras. No plano objetivo, adota medidas fiscais e monetárias para garantir o crédito e a produção, estimula o consumo das famílias e amplia o gasto público. No subjetivo, diz que o novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, está com um “pepinaço” nas mãos e estamos pagando pelos erros dos norte-americanos. Ou seja, se a crise chegar aqui pra valer o fracasso será de Obama.

A estratégia de Lula é eficiente do ponto de vista eleitoral. Dos 35 países avaliados pela OCDE, o Brasil é o único que não está em “forte desaceleração”. Ou seja, a “marolinha” virou “calhau”, mas não deu um “caldo” no governo. Porém, não sabemos ainda se a crise chegou mais branda por aqui ou está vindo atrasada. Os próximos meses é que dirão. Na primeira hipótese, as chances de o governo Lula sair altaneiro da crise em 2010 são reais; na segunda, a sucessão presidencial ocorreria em plena recessão, com o governo desgastado.

Nos países industrializados e emergentes, a desaceleração foi de 8,2 pontos em 12 meses, chegando a 92,9 pontos. Na zona do euro, a queda foi de 8,2 pontos em relação a 2007, com 93,8 pontos. Nos Estados Unidos, o recuo foi de 9,5 em um ano, com total de 91,3 pontos. O Japão caiu para 92,2 em dezembro, uma queda de 7,3 pontos em relação ao ano passado. O Brasil ficou abaixo de cem pontos pela primeira vez em cinco anos. Em dezembro, ficou em 98,8 pontos, uma perda de 5,4 pontos no ano, a melhor situação entre os BRICs: China recuou 14 pontos no ano, total de 87,6 pontos; Índia, 7,5 pontos, soma de 94,4 pontos; e Rússia queda de 17,7, total de 86,7 pontos. Para a OCDE, nota inferior a 100 significa recessão.

Sucessão

O presidente Lula, cuja popularidade cresceu ainda mais com a crise, conseguiu a proeza de transformar a ministra Dilma Rousseff na candidata natural do PT dois anos antes da eleição.

Agora, tece alianças para que seja a monopção das forças que apoiam o seu governo. Essa aglutinação, inicialmente, não se dá por meio dos partidos políticos. É construída a partir das relações do governo Lula com os movimentos sociais e os agentes econômicos. Dilma ocupa a segunda posição no vértice do sistema de poder, abaixo da presidente da República, mas acima de todos os demais ministros. Não há demanda social expressiva ou grande negócio no país que não dependa do aval “técnico” da ministra.

Graças ao marketing político, que dita o gestual, a retórica e o visual de Dilma, a ministra subiu nas pesquisas e acumula forças para conquistar a adesão maciça do PMDB, hoje muito bem plantado na Esplanada dos Ministérios. Há que se considerar, para isso, o papel dela na execução da política “anticíclica” do governo Lula. Dilma opera com o Orçamento da União, os bancos oficiais, os fundos de pensão e as agências reguladoras, numa espécie de novo “dirigismo estatal”, sem precedentes desde o governo Geisel. A crise econômica fortaleceu no governo os setores que veem no “capitalismo de Estado” uma alternativa para o desenvolvimento econômico e as mudanças sociais, ainda que o “ciclo de substituição de importações”, que fomentou essa concepção entre os militares e na esquerda brasileira, tenha sido ultrapassado pela integração do Brasil à economia mundial na década de 1990. Dilma defende e encarna esse projeto no governo.

Lula e Obama: proximidades

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

NOVA YORK. A começar pelo próprio presidente Lula, e referendado por muita gente boa da academia, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, é comum fazer-se um paralelo entre as eleições do ex-operário e do primeiro negro, como se os dois eventos tivessem o mesmo significado dentro do processo político de seus respectivos países. Fora o fato de que cada um deles representou, na época em que foi eleito, um sentimento de mudança latente na sociedade, e de que sejam políticos que, à sua maneira, têm o dom da oratória, são muito diferentes entre si, mas têm pontos de contato que podem ajudar na aproximação.

A elegância da oratória de Obama, em contraste com a espontaneidade da de Lula, não impediu que recentemente os dois se aproximassem no uso de expressões vulgares. Lula soltou um "sifu" em um improviso, e recentemente Obama usou uma expressão ("I screwed up") próxima ao linguajar vulgar para dizer que cometera um erro. A tradução tanto pode ser "fiz uma besteira" como "fiz uma c...".

Mesmo tendo tido trajetórias semelhantes, no sentido de serem de famílias pobres e terem conseguido ser bem-sucedidos na vida através da política, Obama e Lula têm formação cultural totalmente diferente, e seus caminhos políticos foram forjados com instrumentos distintos.

Os pais de Obama eram professores universitários, ele é parte da elite intelectual americana, é um scholar formado por Harvard, que deu aulas em universidades em Nova York (Columbia) e Chicago antes de se dedicar a trabalhos comunitários que o levaram à política. Lula não se cansa de lembrar que é filho de uma analfabeta; como Obama, cresceu sem o pai em casa.

Depois de ter passado muitos anos se vangloriando de ter vencido na vida sem estudar, Lula nos últimos tempos envia sinais de que já entendeu que não deve dar o mau exemplo e desestimular o estudo. Recentemente, disse em uma entrevista que se dar bem na vida sem estudar é como ganhar na Mega-Sena.

Obama tem a autoconfiança de quem se sabe preparado intelectualmente para a tarefa a que se propôs e a audácia de enfrentar o establishment político logo no início da carreira, preferindo desafiar a cúpula democrata na disputa pela indicação de candidato a Presidente com a senadora Hilary Clinton a esperar que sua vez chegasse pela ordem hierárquica natural ditada pelas lideranças mais antigas.

Tem andar elegante e um porte altivo que pode ser confundido com arrogância, o queixo sempre para cima num sinal de disposição para o enfrentamento. Lula é da elite operária brasileira, foi forjado como líder nas lutas sindicais e delas tirou um estilo autoritário de liderança política que se reflete na sua impaciência com as críticas e na maneira impositiva de comandar.

Desde sempre se colocou como candidato a presidente, recusando uma carreira política tradicional. Passou pelo Congresso na Constituinte de 1988 como um deputado federal medíocre, não por incapacidade, mas por total falta de adaptação aos códigos e procedimentos do Congresso, de onde saiu sem vontade de voltar, afirmando que dos 513 deputados, pelo menos 300 eram picaretas.

Mesmo vitorioso, Lula se considera perseguido pela elite brasileira, que não teria nunca o aceitado. Também Obama destacou-se por fazer política longe do establishment de Washington, e é um dos maiores críticos da "pequena política" do Capitólio. Tentou fazer uma política suprapartidária diante do momento de crise econômica internacional, mas encontrou uma resistência inesperada nos republicanos que, embora em esmagadora minoria no Congresso, apostam no fracasso do plano de recuperação econômica para voltarem ao poder em 2010.

Lula, como Obama, começou querendo mudar "tudo isso que está aí", e garantia que bastaria "vontade política" para mudar as coisas. Seis anos depois, montou a maior coligação partidária já vista na política brasileira, um saco de gatos onde grande parte dos 300 picaretas, de esquerda ou de direita, encontram espaço suficiente para exercerem seu fisiologismo.

Identificado com a esquerda, Lula já declarou que um homem de cabeça branca que continua comunista deve ter algum problema sério. Obama, considerado o mais esquerdista dos senadores, é apontado como socialista pelos conservadores mais radicais, mas reuniu em torno dele a fina flor dos economistas considerados "de direita".

A falta de experiência política tradicional foi uma crítica que Lula ouviu durante todas as campanhas presidenciais de que participou, assim como Obama teve que superar essa mesma desconfiança.

Obama é negro para os padrões americanos, mas na verdade é um mestiço, como já se definiu ao se referir ao cachorro de estimação que levaria para a Casa Branca. Filho de mãe branca com pai negro do Quênia, Obama é um mulato e disse a Lula que, se saísse nas ruas de uma cidade do nosso país, ninguém diria que ele não é um mulato brasileiro.

Está melhor que o antecessor, George Bush, que se espantou ao saber que no Brasil havia negros. Lula acha que vai se tornar "logo, logo" camarada de Obama, quem sabe mais camarada ainda do que era de Bush, a quem o ligava uma simpatia recíproca.

Lula acha que, como ele, Obama não pode errar. Nesse raciocínio, um ex-operário como ele, errando, faria com que ficasse mais difícil para uma pessoa humilde chegar à Presidência no Brasil, assim como o primeiro negro, se não for bem na presidência, pode estigmatizar os políticos negros, provocando um retrocesso no amadurecimento democrático dos Estados Unidos.

Os dois se encontrarão em breve e, além das proximidades, o programa de energia alternativa pode aproximá-los ainda mais. O Brasil tem a tecnologia e os meios para a produção de biocombustíveis, entre eles o etanol da cana de açúcar. Obama tem um projeto de fazer uma economia verde para livrar os Estados Unidos da dependência do petróleo estrangeiro. Pode dar liga.

Drama maior

Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO

O maior drama numa crise é o desemprego. Na virada do ano eu perguntei ao professor José Pastore quantos empregos o Brasil perderia em 2009 e ele me assustou com o número: um milhão. Voltei a falar com ele agora, e a previsão aumentou: "Acho que o Brasil deve perder um milhão e meio de empregos e eu não sei se quando houver a recuperação todos eles serão repostos."

Para o sociólogo, um dos maiores especialistas brasileiros no tema, sua previsão não se baseia apenas na crise, mas na maneira como o Brasil reage a ela.

- Há muito entrave na Justiça, no Ministério Público e nos sindicatos a qualquer tentativa de se ter algum ambiente mais flexível para o acerto entre trabalhador e empresa. O Tribunal Superior do Trabalho tem anulado acordos que as partes acertaram, e uma anulação como essa cria um tremendo de um passivo trabalhista - lembra José Pastore.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) de São Paulo divulgou uma recomendação aos sindicatos e federações patronais que estão negociando diminuição da jornada com redução de salário que mais parece uma ameaça. Diz que o acordo tem que ser precedido da "situação financeira precária da empresa" e que seja uma negociação coletiva, da qual participem todos os trabalhadores, mesmo os que não são sindicalizados. Diz ainda que a redução salarial não pode ser superior a três meses, que os direitos trabalhistas são irrenunciáveis e que tudo tem que ter a assinatura do MPT.

Num país em que metade dos trabalhadores não tem qualquer proteção, fica até engraçado tanto alerta e cuidado com os que estão no mercado formal. No Brasil, gasta-se mais tempo e dinheiro protegendo-se os protegidos. Se a empresa estiver em situação precária, ela não estaria negociando reduções temporárias e, sim, demitindo. O movimento é para impedir que ela entre em "situação financeira precária".

O Ministério Público do Trabalho mandou notificações para seis centrais e 16 federações sobre o assunto e instaurou um procedimento preparatório para investigar as negociações. Tudo é para evitar, segundo o MPT, "a disseminação" desses acordos. Segundo a procuradora Laura de Andrade, "essa discussão não pode ser feita de forma generalizada". Vários procuradores já avisaram que vão pedir a anulação. Isso deixa as empresas numa situação de insegurança para procurar qualquer solução que não seja a demissão do funcionário.

Em Minas, semanas atrás, um acordo entre trabalhadores e uma empresa para redução de jornada e salário foi vetado pelo sindicato. O governo faz campanha aberta contra a terceirização. Deveria regulamentar a medida, para ampliar a oferta de emprego neste momento, mas evitar os abusos já ocorridos no passado.

Os Estados Unidos têm uma legislação flexível em que as partes podem acertar uma série de formas diferentes do contrato de trabalho, e a Europa tem legislação rígida. Nos EUA, tradicionalmente, o desemprego é menor do que na Europa, e o mercado de trabalho se recupera mais rapidamente após uma crise. Mesmo subindo para 7,6%, no dado divulgado na última sexta-feira, o desemprego americano foi, durante todo o ano passado, menor do que no Brasil.

O desemprego e a informalidade vão aumentar, segundo Pastore, e o temor que ele tem é que não seja passageiro.

- A dúvida que eu tenho é se, passando a crise, o emprego volta. As empresas estão fazendo remanejamentos e mudanças que podem afetar o nível de emprego de forma permanente. Hoje, elas demitem por falta de confiança, por falta de crédito e por desestímulo para investir. Os novos arranjos produtivos podem acabar sendo permanentes e esses empregos não serão recriados - diz Pastore.

O desemprego bate nos trabalhadores de forma geral, como perda de renda ou como ameaça que gera estresse, adia decisões de compras, que impede atividades de lazer, desestrutura famílias. Mas as estatísticas não deixam dúvidas. Os mais vulneráveis são os negros, as mulheres e os muito jovens. A taxa de desemprego das mulheres no melhor momento do mercado de trabalho é igual à taxa dos homens no pior momento. Em 2003, pior ano recente, a taxa de desemprego dos homens era de 10% e a das mulheres era 15,2%. No ano passado, o melhor ano recente, o desemprego das mulheres era de 10% e o dos homens, 6%. Os dados são do IBGE.

Quando o recorte é pela idade, é a mesma coisa. Em 2003, o desemprego de 18 a 24 anos era de 23,4% e o de 25 a 49 anos era de 9,4%. No ano passado, o dos jovens tinha caído para 16,6% e o dos trabalhadores até 49 anos era de 6,3%. Importante notar que só entra na estatística quem está procurando emprego. Se o jovem está estudando, e não procurando emprego, ele não entra na estatística.

A mesma realidade se vê quando se comparam os dados de brancos e negros (pretos e pardos). Na Pesquisa Mensal de Emprego de dezembro, o desemprego dos brancos era de 5,8%, - a média de desemprego da população estava em 6,8% - mas a dos negros estava em 8%. Ou seja, a taxa de desocupação dos negros se mantém 40% acima da dos brancos.

O desemprego tem mais essa perversidade, ele atinge mais os negros, as mulheres e os jovens. Negros e mulheres pelos velhos preconceitos. Jovens porque, na crise, as portas se fecham para os recém-chegados. O desemprego é um drama social e pessoal. O pior lado de qualquer crise.

O pacotão de Lula, a banca e o BC

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Governo já fez o que podia no crédito, falta só cortar gastos. Mas BC e banca privada ainda estão devendo juros menores

O PACOTE anticrise do governo federal já passou bem dos R$ 200 bilhões, embora seja quase impossível fazer uma conta precisa. Não há como somar oferta de crédito público com isenções fiscais, medidas indiretas de estímulo com subsídios etc. Trata-se de alhos e bugalhos, de dinheiros que não se somam sem mais nem menos. Ainda assim, não está errado dizer que se trata da maior intervenção oficial de estímulo econômico da história.

Neste ano, o BNDES poderá emprestar R$ 76 bilhões a mais do que o fez em 2008, quando financiou R$ 92 bilhões. Para bancar a conta, o governo pode usar reservas do Tesouro, ora ociosas e sobrantes. Ou, um tanto pior, pode emitir dívida nova.

O Banco Central pode emprestar o equivalente a uns R$ 50 bilhões, via bancos, para que empresas paguem suas dívidas externas. Desde setembro de 2008, as reduções do compulsório liberaram cerca de R$ 85 bilhões para o caixa dos bancos, dinheiro para ser emprestado livremente ou que serviria, em tese, para reduzir os juros bancários (compulsório é o jargão para o dinheiro que os bancos têm de deixar parado no BC). O Banco Central ainda tem emprestado uns bilhões a exportadores, para não mencionar outras intervenções no mercado de dólares, as quais acabam por baratear custos cambiais de certas empresas.

O governo adiou o recolhimento de alguns tributos de empresas (um subsídio para capital de giro). Reduziu impostos sobre operações financeiras, carros e certas importações. Vai cortar impostos sobre a construção de casas e elevar o subsídio para a habitação popular. Criou linhas especiais de crédito para montadoras, construtoras e agricultura.

Em 2008, o estoque de crédito "livre" na economia cresceu R$ 211 bilhões (não se trata de novas concessões de crédito, mas da variação do saldo de empréstimos a pagar). No crédito "livre", não estão incluídos os financiamentos com destino definido pelo governo, como os do BNDES ou do crédito direcionado para habitação e agricultura. Em suma, no crédito "livre", contam-se os empréstimos decididos no mercado. Pois bem: a oferta adicional de crédito "oficial" para 2009 deve equivaler a uns 60% de todo o aumento de crédito "privado" no ano passado.

A maior parte do dinheiro do pacote anticrise luliano tem volta, a princípio: trata-se de empréstimos. O risco do crédito oferecido pelo BC a empresas fica com os bancos. No caso do BNDES, eventuais calotes caem na conta do setor público.

Mas a estatização de boa parte do crédito talvez fosse medida incontornável, dada a hecatombe financeira. Ainda assim, faltam ingredientes básicos nessa torta emergencial. O governo precisa cortar gasto corrente. O Banco Central deve cortar a Selic de modo a achatar ainda mais a taxa de juros real, em vez de apenas deixá-la estável nos atuais 6% ao ano, historicamente baixos, mas não o bastante. Os bancos privados precisam comparecer. Até agora estão saindo de fininho, apesar do seu caixa gordinho.

Não se trata de fazer a economia crescer os amalucados 4% da propaganda oficial. Mas deixar o PIB encolher, ora um risco real, pode criar um círculo vicioso econômico. E o risco de mau governo cresce em ambiente de tumulto social e político.

Protecionismo e crise social

Luiz Gonzaga Belluzzo
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


No abismo sem fundo da crise, germina a hostilidade em relação ao "outro": as importações, o imigrante


AO LONGO do tumultuado período encravado entre a Primeira Guerra Mundial e a vitória dos aliados em 1945, a fúria e a desordem dos mercados colocaram em risco as normas de convivência e os valores da ordem liberal capitalista. Já no final do século 19, na esteira da Segunda Revolução Industrial, a ampliação da presença das massas trabalhadoras nas cidades e a conquista do sufrágio universal transformaram em problemas sociais fatos que antes eram considerados resultados da conduta irregular dos indivíduos. A ideia de desemprego como fenômeno social, produzido pela operação imperfeita de mecanismos econômicos, é muito recente. Ainda no crepúsculo do século 19, o desemprego era tomado como vagabundagem, inabilitação ou simples má sorte.

O colapso da ordem liberal foi acompanhado de instabilidades financeiras, monetárias e cambiais devastadoras, transmitidas por meio dos circuitos financeiros e comerciais que articulavam as economias nacionais. Esse intervalo histórico foi marcado por uma reversão brutal das convenções e das concepções que haviam prevalecido no mundo relativamente estável e próspero do liberalismo comercial inglês regulado pelo padrão-ouro, ou seja, pela hegemonia da libra. A defesa do espaço econômico e social das nações ganhou preeminência sobre as propaladas vantagens do livre comércio. O avanço do protecionismo amparado em elevações de tarifas e desvalorizações competitivas tornou-se o esporte predileto dos governos, dos empresários e dos sindicatos. Os países envolvidos tratavam de despejar o desemprego de máquinas e homens no território do vizinho.

Na ausência de uma coordenação global, o nacionalismo econômico desvairado promoveu a contração do comércio internacional. Os países com maior abertura ao intercâmbio externo de serviços e mercadorias sofreram mais com a contração do comércio. As grandes economias tiveram melhor desempenho com a busca da autarquia. Mas o conjunto da obra foi desastroso.

Não por acaso, na esfera política, a degradação da ordem liberal legitimou as aventuras totalitárias à esquerda e à direita. O coletivismo dos anos 30 era isso mesmo: um fenômeno regressivo promovido pela dissolução dos nexos sociais regulados pelos mercados. A crise realizou a proeza de explicitar a violência essencial que espreita a sociedade quando o indivíduo livre é lançado na liberdade desamparada. Nesse abismo sem fundo, germina a hostilidade em relação ao "outro": primeiro as importações, depois o imigrante, o estrangeiro, para culminar na eliminação da diferença sob qualquer forma. Nas profundezas da crise, é necessário eliminar todas as diferenças e mergulhar naquilo que é absolutamente semelhante, a totalidade uterina e intolerante da massa informe e manipulável.

Luiz Gonzaga Belluzzo , 66, é professor titular de Economia da Unicamp e presidente da Sociedade Esportiva Palmeiras. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

Respostas à crise: o uso de Keynes

Pedro S. Malan
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

"Nunca a conjuntura foi tão pouco conjuntural" (André Lara Resende). O que é uma forma de dizer: há que ter senso de perspectiva quando se está em meio a uma crise econômica global do tipo que só ocorre em intervalos que se contam em décadas. Perspectiva não apenas para entender melhor como chegamos à situação atual, ver se há algo para aprender com as experiências de resolução de crises pretéritas; reavaliar como está o resto do mundo. Como também - e tão ou mais relevante - para olhar adiante, sabendo que "o que mais importa agora" é responder adequadamente à crise - o que exige um mínimo de perspectiva.

Relevância e urgência seriam razões suficientes para voltar ao tema de meu artigo anterior neste espaço (Respostas à crise e o crescimento). Há outras, que têm que ver com o uso, a meu juízo, indevido, que se vem fazendo entre nós das ideias do maior economista do século passado (J. M. Keynes) para defender um determinado tipo de resposta do Brasil à grave crise atual, com referência à forma como teria sido superada a crise dos anos 1930 - a mais grave até hoje conhecida e tema de revigorado debate entre os que buscam lições do passado para exigências do presente.

As situações e as respostas de hoje por certo não são nem poderiam ser as mesmas que as de quase 80 anos atrás. Entre 1929 e 1933, por exemplo, o PIB norte-americano declinou, em termos nominais, em mais de 50%, divididos quase meio a meio entre queda real e deflação (queda de preços). O desemprego nos EUA quando Roosevelt iniciou seu governo (março de 1933) chegava a 25% da força de trabalho. E, apesar do New Deal, houve uma recessão intensa nos EUA entre março de 1937 (início do segundo mandato de Roosevelt) e maio de 1938, contribuindo para que o nível do PIB nominal que os EUA haviam alcançado em 1929 só fosse superado em 1940, um ano após o início da 2ª Guerra Mundial.

Keynes tinha convicção sobre a crucial importância da recuperação da economia dos EUA para o resto do mundo. Instado por amigos americanos, escreveu bela carta a Roosevelt em dezembro de 1933. Convidado pela Universidade de Columbia, visitou os EUA em maio de 1934 e por três semanas, em contatos com empresários, financistas, políticos e altos funcionários da administração, inclusive com o próprio Roosevelt. Na sua principal palestra pública nessa viagem abordou o tema da retomada à luz de duas perguntas básicas: que medidas podem ser adotadas para acelerar o retorno à normalização das atividades empresariais? Em que escala, por meio de que expedientes e por quanto tempo são recomendáveis níveis anormais de dispêndio governamental?

Keynes argumentou que a confiança empresarial estava "singularmente escassa" e sugeria que por "pelo menos seis meses e provavelmente um ano" a retomada dependeria fundamentalmente dos estímulos supridos pelas autoridades na forma de gastos emergenciais. E insistiu na necessidade de aumentar a efetividade das políticas de retomada do crescimento em cinco áreas: investimentos em habitação, ferrovias e "utilities"; reabertura do mercado de capitais; redução da taxa de juros de longo prazo e manutenção da política cambial que fixara uma nova relação (desvalorizada em quase 60%) entre o dólar e o ouro, que prevaleceu até 1971.

É importante notar, para propósitos do debate atual, que Keynes falava em "problemas de ignição", em gastos governamentais temporários, emergenciais, contracíclicos, como se diz hoje. E escreveu na carta a Roosevelt: "No segundo capítulo desta história, os dispêndios do governo podem ser reduzidos à medida que o setor privado retome seu papel."

Mas o fato é que muitos, no mundo de então, e de hoje, viram, e veem, a sugestão de Keynes para sair da Depressão como uma "parte permanente do mecanismo de preservação da demanda". Vale citar a explicação de Keynes em correspondência (de 1934) dirigida ao chefe da Divisão de Pesquisa e Planejamento da National Recovery Administration: "A minha teoria (ênfase no original) é a mesma seja o dispêndio realizado pelo governo ou pelo setor privado... apenas no evento de uma transição para o socialismo alguém deveria esperar que o dispêndio governamental desempenhasse o papel predominante de forma mais permanente."

Keynes escreveu novamente a Roosevelt em fevereiro de 1938, com os EUA de novo em recessão. Além de advogar a sua já conhecida prescrição de aumento de obras públicas, especialmente em serviços públicos de infraestrutura (nos quais via as políticas recentes da administração como inibidoras do investimento privado), Keynes também sugeria que a administração Roosevelt adotasse um conjunto diferente de atitudes (mais positivas) para com o investimento privado.

Roosevelt encaminhou a carta a seu secretário do Tesouro, que respondeu a Keynes de forma lacônica. Este replicou em março de 1938 com as seguintes palavras: "... Você precisa ou dar mais encorajamento ao setor empresarial ou assumir mais de suas funções você mesmo... suas políticas recentes parecem presumir que você tem mais poder do que efetivamente dispõe." Sábio conselho, que retém surpreendente atualidade no mundo de hoje.

Estas longas digressões me vêm à mente ao ver com frequência, no nosso debate atual, o nome de Keynes, suas ideias e sua Teoria Geral... utilizados para justificar aumentos de gastos permanentes e recorrentes do governo, como contratação de pessoal, aumento de salários públicos, custeio de toda ordem, como se fossem gastos contracíclicos de inspiração keynesiana, destinados não só a responder à crise atual, como a assegurar, de forma permanente, níveis adequados de demanda efetiva e apropriados estímulos ao investimento. Uma postura que torna mais difícil alcançar o objetivo de redução (crível) da taxa de juros reais de longo prazo, tão necessária - entre outras coisas - ao crescimento sustentado da economia brasileira.

Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1233&portal=

sábado, 7 de fevereiro de 2009

ENTREVISTA: Amartya Sen, Premio Nobel de Economía 1998, economista y filósofo

Por J. P. Velázquez-Gaztelu
DEU EM EL PAÍS (Madrid - 7/2/2009)


"Necesitamos una alianza entre el Estado y el mercado"

Nació en un campus universitario y su vida ha sido un ir y venir de universidad en universidad. Recibió sus primeras lecciones en Visva-Bharati, una escuela y universidad fundada por el filósofo y escritor Rabindranath Tagore en la que su abuelo materno enseñaba historia de India. El propio Tagore ayudó a elegir su nombre de pila, que significa inmortal en sánscrito. Testigo de la hambruna de 1943 en su Estado natal de Bengala Occidental (India) cuando sólo tenía 10 años, Amartya Sen ha dedicado la mayor parte de su vida a comprender, medir y combatir la pobreza. La justicia es la piedra angular de su pensamiento, que combina la economía con la filosofía. Experto también en políticas de desarrollo y globalización, contribuyó a crear el Índice de Desarrollo Humano que publica Naciones Unidas y que mide el bienestar de las naciones no por su producto interior bruto, sino por otras variables económicas y sociales. En 1998 recibió el premio Nobel de Economía por sus investigaciones sobre el bienestar económico.

Este hombre sabio y sencillo ha sido llamado la conciencia de la profesión por el fuerte acento social de su trabajo. Actualmente imparte lecciones en Cambridge y en Harvard, y asesora a Gobiernos e instituciones sobre cómo afrontar las actuales turbulencias económicas. En vísperas de ser investido doctor Honoris causa por la Universidad Complutense de Madrid, habló con EL PAÍS de las causas y los efectos de la crisis.

Pregunta. ¿Qué lecciones podemos aprender de la situación que estamos viviendo?

Respuesta. Podemos aprender muchas lecciones distintas. Una de ellas es que necesitamos una buena alianza entre el Estado y el mercado. No podemos depender exclusivamente de la economía de mercado; el Estado también tiene un papel que desempeñar. El origen de esta crisis está en el desmantelamiento de la regulación en EE UU bajo la presidencia de Bush y, hasta cierto punto, de las presidencias de Clinton y de Reagan. Durante esos años se eliminaron mecanismos de control que hubieran limitado la creación de activos tóxicos como los que han arruinado el sistema bancario. Esos controles hubieran sido muy importantes porque ahora existen muchos mercados secundarios, como el de derivados y otros, que permiten a quienes generan esos activos tóxicos pasarlos a otros y quitarse de encima la responsabilidad. Ha habido una enorme falta de responsabilidad y necesitamos que el Estado establezca la regulación necesaria.

P. ¿Estamos ante un fracaso de la economía de mercado?

R El mercado puede ser un instrumento dinámico de progreso económico, eso hay que reconocerlo. No hay razón para prescindir de él, pero hay que regular su funcionamiento. Hay gente que piensa que la búsqueda del beneficio es la única clave del éxito de la economía de mercado, pero eso nunca ha sido así. La economía de mercado necesita confianza mutua, y cuando ésta se destruye, como estamos viendo ahora, es muy difícil regenerarlo. Porque lo que comenzó como una pequeña crisis ha ido agrandándose debido a la profunda desconfianza de las instituciones financieras hacia el resto de la economía. Por eso, a pesar de la inyección de dinero, el mercado de crédito continúa en su mayor parte congelado. Adam Smith, a quien se cita con frecuencia para defender la economía de mercado y la búsqueda del beneficio, habló con gran detalle de por qué es importante tener otras motivaciones además de lo que él llamaba self-love, del que la búsqueda del beneficio sería sólo una parte. También se necesitan confianza, vocación pública y generosidad. El éxito de la economía de mercado depende de un conjunto de motivaciones distintas.

P. ¿Hasta qué punto ha sido la codicia un factor desencadenante de la crisis?

R. No sirve de nada culpar sólo a la codicia del mal funcionamiento de los mercados. No pongo en duda que el interés propio haya sido un factor importante, pero mi argumento es que hay otras motivaciones. En algunas sociedades -dependiendo de las oportunidades, los incentivos y la cultura-, la gente busca el beneficio propio más que en otras, en las que hay más confianza mutua y más contención. Lo que estamos viviendo no es sólo una muestra de codicia, porque la codicia está en todas partes, sino la desaparición de otras motivaciones de las que habla Adam Smith: compasión, generosidad, vocación pública, compromiso... En la búsqueda de dinero rápido hay gente dispuesta a asumir enormes riesgos. Hablamos de gente que puede hacer daño, y eso es precisamente lo que preocupaba a Adam Smith hace 240 años. Hasta qué punto la contención la genera la cultura es un debate abierto. En algunas culturas existe, pero en la cultura norteamericana de capitalismo financiero ha estado muy poco presente.

P. ¿Es la crisis actual también una crisis moral?

R. Toda crisis humana es una crisis moral. Mi respuesta a su pregunta es sí, pero sólo hasta cierto punto. Ésta es una crisis moral en el sentido de que la gente ha utilizado la codicia de manera imprudente, haciéndose daño a sí misma y a los demás. Muchas instituciones han caído, mucha gente está en la ruina. Se trata de una crisis de prudencia, además de una crisis moral. También es una crisis de control social, ya que podía haberse evitado si hubieran existido controles.

P. La crisis ha estallado justo cuando China, India y muchos países latinoamericanos parecían entrar en una fase de crecimiento estable y de consolidación de sus clases medias. ¿Estamos ante un frenazo en la lucha contra la pobreza?

R. Hasta cierto punto, sí. El crecimiento de China, India y Brasil está ralentizándose, aunque los ritmos de crecimiento son todavía respetables. La gente con rentas bajas, cuyo número ha caído rápidamente en China y en menor medida en India, se está viendo afectada. Pero es más importante el hecho de que van a disminuir los recursos que los Gobiernos destinan a servicios sociales como la sanidad y la educación. Todo ello ralentizará la reducción de la pobreza.

P. ¿Qué efecto va a tener la crisis en la globalización?

R. Depende de lo que entendamos por globalización. ¡Hay tantas acepciones del término! La globalización de los mercados se va a reducir, pero, por otro lado, se habla mucho de pensar globalmente sobre la crisis. Va a aumentar la globalización de las ideas. El FMI, el Banco Mundial y las demás instituciones surgidas de Bretton Woods necesitan una revisión profunda, pues nacieron en la década de los cuarenta del siglo pasado y el mundo ha cambiado. En estos momentos hay intentos muy serios de reformar la arquitectura financiera. Cada vez está más claro que la estabilidad financiera es un bien común y que, por tanto, necesitamos hacer un esfuerzo coordinado para conseguirla. En resumen, al nivel de acciones gubernamentales y de ideas para la acción, habrá más globalización; en términos de comercio y de mercados, habrá menos.

P. ¿Cómo ve el cambio en la presidencia de EE UU? ¿Qué puede el mundo esperar de Obama?

R. Obama está haciendo bien muchas cosas. La economía no es su única prioridad. También tiene que hacerse cargo del problema del terrorismo en el mundo, de Afganistán, y tiene que hacer algo en Oriente Próximo, en particular con las relaciones entre israelíes y palestinos. Obama no es economista. Sé que muchos periodistas como usted piensan que los economistas no saben mucho [ríe], pero el hecho es que sí saben y que Obama es abogado, aunque un abogado muy brillante. Está buscando consejo de los expertos para manejar la crisis. Ya han surgido algunas ideas interesantes y deberán surgir más. Espero que sus asesores, que son gente inteligente, sean capaces de darle buenos consejos. El reto de Obama será, como persona inteligente que es, distinguir entre buenos y malos consejos.


La entrevista a Amartya Sen forma parte del suplemento Negocios que se publica el domingo 08 de febrero de 2009.

Cabe ao Judiciário resolver o conflito

Wálter Fanganiello Maierovitch
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


DEPOIS DE 20 anos de fascismo, os italianos, em 1948, elegeram o modelo republicano. A partir daí, a Itália passou a viver democraticamente, com uma magistratura independente e a observar as normas constitucionais. Veio o boom econômico e deitou raízes o eurocomunismo, fundado no pluralismo político e nos valores da democracia ocidental, em oposição à matriz soviética. A ascensão do Partido Comunista Italiano (PCI) nunca foi suportada pelos terroristas adeptos do modelo soviético e pelos direitistas fascistas.

Por obra de Aldo Moro, assassinado pelas Brigadas Vermelhas, criou-se uma vertente de centro-esquerda na Democracia Cristã, que era o maior partido, e os sindicalistas se dividiram em três organizações diversas. Em 12/12/1969, verificou-se o primeiro ato terrorista. Uma bomba deflagrada em Milão, na praça Fontana, provocou a morte de 17 pessoas. Foi o início da luta armada por organizações terroristas formadas por radicais de esquerda e de direita. A meta era aniquilar o Estado democrático de Direito pelas armas, e não pelo voto.

Parênteses: algo incomparável com o sucedido no Brasil, após 1964. Aqui havia ditadura a promover o terrorismo de Estado, com assassinatos, tortura e desaparecimento de cadáveres. Uma das primeiras vozes a se levantar contra o terrorismo foi a do pensador Norberto Bobbio, que falou em forças terroristas que agiam na clandestinidade e afrontavam o sistema democrático. Como fundamento jurídico único da sua decisão concessiva do refúgio político, o ministro Tarso Genro (Justiça) presumiu não poder a Itália garantir a vida de Battisti, como se fosse uma Darfur (Sudão). Assustou até o Parlamento Europeu, que, na quinta, avisou que todos os Estados-membros respeitam os direitos dos presos. Um dos grupos terroristas direitistas estava instalado no serviço de inteligência da Itália, no Ministério do Interior, cujo titular da pasta era Francesco Cossiga. O direitista Cossiga é o mesmo citado pelo ministro Genro para concluir que os quatro assassinatos perpetrados por Battisti foram crimes políticos.

Nas democracias, delitos de sangue são tipificados como crimes comuns. No Brasil, ninguém pode matar Lula por discordância ideológica e, sendo preso em outro país, alegar crime político para evitar a extradição. Ao tempo de Battisti, a Itália era governada por uma coalizão de centro-esquerda e, nos anos 70, celebrou-se o "compromisso histórico" pela democracia. Essa é a história ignorada por Genro, que classificou aquele governo como ultradireitista. É uma história em aberto e que só terá a página virada quando findar a impunidade dos que tentaram derrubar o Estado democrático. Battisti é um símbolo do terror, como Brilhante Ustra, na ditadura brasileira. Na prisão, Battisti conheceu extremistas da organização denominada Proletariados Armados para o Comunismo (PAC). Suas teses de defesa para anular as condenações foram derrubadas até pela rígida Corte Europeia de Direitos Humanos: como Cacciola, foi julgado à revelia por ter fugido depois de citado para o processo.

Teve a extradição concedida pela Justiça francesa e fugiu. Nos próximos dias, o nosso Supremo Tribunal Federal decidirá a controvérsia estabelecida entre o Estado italiano e o Executivo brasileiro. A lei que disciplina a outorga de status de refugiado estabelece que a concessão do refúgio impede o exame do mérito do pedido de extradição. No entanto, a nossa Constituição está alicerçada no princípio de que todo conflito de interesses é resolvido pelo Judiciário. Isso no seu constitucional papel de substituto da vontade das partes em conflito. Portanto, a alegada competência exclusiva do Executivo quanto à conveniência da concessão do refúgio não impedirá o Judiciário, à luz da Lei Maior e diante do conflito, de entender pelo prevalecimento do pedido de extradição.

Um alerta: concedida a extradição, a palavra final caberá ao presidente Lula, que, pelo jornal britânico "The Economist", foi chamado de anacrônico ao dizer que é da tradição brasileira conceder asilo. Algo de fancaria, a beneficiar ditadores e assassinos em tempos de Tribunal Penal Internacional.

Wálter Fanganiello Maierovitch , 61, desembargador aposentado, é presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Giovanni Falcone. Foi secretário nacional Antidrogas da Presidência da República (1999-2000).

(In) cultura do Brasil

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO


Uma das formas mais perversas e cínicas do conformismo mora na ideia de que no Brasil "há uma cultura" que interdita qualquer possibilidade de mudança de hábitos. Aplica-se à lei de Gerson, às pequenas negociatas do cotidiano e às instituições.

Mais correto e revelador de disposição à evolução seria dizer que no Brasil prevalece uma incultura do povo esperto que, mediante alguma tomada de consciência, esforço e consideração a exemplos melhores, pode perfeitamente ser alterada.

O caso do novo corregedor da Câmara, deputado Edmar Moreira - o primeiro vexame patrocinado pelo Congresso já na abertura dos trabalhos de 2009 -, ilustra bem o enunciado.

Ele defende a retirada de mais uma das prerrogativas do Poder Legislativo, de julgar infrações ao decoro parlamentar, e sua transferência para o Poder Judiciário referindo-se ao "vício da amizade" que prepondera e impede o Parlamento de promover processos isentos.

Com uma única frase o deputado Moreira fez o serviço completo: imprimiu à Câmara a pecha de valhacouto de viciados, apresentou suas credenciais de inaptidão para o posto, deformou o conceito de amizade em ato falho explícito e considerou a situação "absolutamente insanável" e, portanto, deixou patente que o mundo é mesmo assim.

E é, mas quando se quer e se aceita que seja. Como os deputados que, a propósito de solução, propõem um jeitinho: mudar o regimento de forma a que o 2º secretário (cargo de Moreira) não acumule mais a corregedoria. Assim, o deputado pode continuar tranquilamente na Mesa Diretora e ainda é poupado do constrangimento de renunciar.

Fantástico. A Câmara é moralmente aniquilada por um dos seus e corrobora o aniquilamento, protegendo-o. Se tivesse algum pudor às faces (atributo grosseiramente traduzido como vergonha na cara), o deputado tomaria a iniciativa de se retirar de cena. Como não tem, reafirma a disposição de continuar e ainda conta com o beneplácito dos colegas.

De partido, inclusive. O DEM divulgou nota oficial pedindo a renúncia de Moreira e anunciando que mandará seu caso para o conselho de ética. É um ato meramente formal, em face da decisão do Supremo Tribunal Federal de que a Constituição dá a posse dos mandatos aos partidos, às pessoas por eles eleitas.

Se isso serve para a legenda reivindicar a devolução de vagas no Parlamento quando o eleito muda de partido sem uma justa causa, serve também para dar à legenda total responsabilidade sobre a conduta de seus parlamentares.

Entre os deveres do responsável estaria, por exemplo, o cuidado de não indicar para um cargo que acumularia a corregedoria um deputado conhecido por absolver seus pares como princípio, sem cotejo das acusações, conforme demonstram o histórico e as declarações do deputado em questão.

O DEM pode dizer o que quiser, menos que a cigana o enganou. Portanto, cabe-lhe mais do que simplesmente um protesto no papel, até como forma de conferir efetividade àquela sentença do STF, muito mais ampla que a simples autorização para perda de mandato em caso de infidelidade por motivo fútil.

Tal entendimento, entretanto, não tem aceitação, é considerado rigoroso, draconiano, quando não farisaico. Uma interpretação das coisas que só prevalece porque, em larguíssima medida, é respaldada pela sociedade.

Seja por preguiça cívica - travestida de proposital indiferença em relação ao que acontece na "ilha da fantasia" - ou por aquela maneira cínica de expressar o conformismo com a "cultura" arraigada aos meios e modos brasileiros.

As sucessivas renúncias de auxiliares nomeados pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, por sonegação de impostos de variadas naturezas, mostra como um "outro mundo" é perfeitamente possível.

Caíram antes de assumir porque suas condutas são socialmente inaceitáveis. O presidente Obama pediu desculpas por uma das nomeações, porque se considera devedor de satisfações ao povo de seu País. Se isso é fruto do puritanismo norte-americano, antes puritanos mentalmente soberanos que permissivos espiritualmente subalternos.

Aqui, as dívidas para com o Estado sequer seriam motivo de escândalo. Ainda mais se as contas fossem acertadas a posteriori como se dispuseram a fazer os americanos flagrados em delito.

No máximo, seriam vistos como equívocos de segunda linha, insuficientes para impedir uma pessoa de "servir ao País".

Benevolência originária de uma visão distorcida do que seja o agente público. Lá, quem em algum momento da vida achou por bem ignorar o cumprimento de seus deveres não está apto a prestar serviço que preste.

Aqui é o oposto. Quem não presta faz qualquer serviço, não presta contas ao público, é defendido da perseguição insidiosa dos moralistas e ainda exibe com orgulho o dístico de legítimo representante da cultura do Brasil.

A propósito: o deputado Moreira chocou por causa do castelo e nada mais.

Lula desconfia do esquema que armou

Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL


As imagens do presidente Lula transpirando por todos os poros, a camisa amarfanhada e com manchas de suor, cabelos desgrenhados clamando pelo barbeiro e suspirando pelo pente e os exageros da indignação e da eloqüência, na safra de improvisos que assinala a retomada da campanha na hora certa ou precipitada, como a inauguração da primeira obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em Manguinhos, no Rio, passou pela TV a impressão de insegurança, das primeiras dúvidas de quem nunca erra e sabe tudo. Convenhamos que não faltam motivos para justificar as suas apreensões.

Lula aposta as suas fichas no otimismo, embalado pela sua surpreendente biografia e com o arremate dos êxitos setoriais dos seus dois mandatos. E se as coisas deslizavam nos trilhos oficiais, na velocidade registrada pelas pesquisas, que acabam de bater o recorde de aprovação com o fantástico índice de 84%, o fantasma da crise econômica que varre o mundo arranha a nossa porta. Para o presidente é como um insulto pessoal. E é como quem aceita o desafio e provoca o adversário no centro do ringue, o tom da sua eloqüência. Insiste sempre na ciranda do velho realejo: para derrubar a crise é preciso enfrentá-la e não fugir dela.

Na seqüência, Lula repete a fórmula mágica da reinvenção do moto-contínuo: ricos, classe média e mesmo pobres não devem ter medo de dívidas, desde que não façam bobagens. Mas, se as lojas estão oferecendo preços remarcados, com reduções consideráveis nas vendas a prazo, com juros sedutores, a população deve comprar o que precisa ou apenas sonha. Pois é assim que gira a roda: o povo compra, o comércio precisa renovar o estoque e compra nas fábricas e a crise foge, com o rabo entre as pernas. O presidente não descarta, mas estimula a compra do carro novo, com prestações que passam de uma geração a outra, como herança duvidosa. Na troca, por pior que seja o calhambeque, sempre vale alguma coisa.

E prestações em até 90 meses, desde que caiba no salário, acaba não doendo no bolso. Mas, se a crise econômica encosta o governo contra a parede, exigindo cortes de verbas, controle da gastança, não é esta a imagem do governo vista do alto da arquibancada. E ou o governo está escondendo dinheiro debaixo do colchão ou a farra de desperdício nos três poderes sugere um descontrole que vai além do tolerável. Ao assumir pela terceira vez a presidência da Câmara, o elegante deputado Michel Temer, flor do PMDB-SP, anunciou como a sua prioritária preocupação provar como os deputados trabalham em suas bases. Ora, a TV-Câmara transmite todas as sessões da Câmara, não perdendo um aparte.

E mais comissões, CPIs e tudo que tenha um mínimo de suposto interesse para o público. Não basta para o exigente presidente da Casa. É preciso levá-la para todo o país, usando a rede pública de televisão, ou as das assembléias legislativas espalhadas por todos os estados. Tudo em defesa da operosidade dos deputados, que se esbofam nas folgas da semana de três dias úteis, atendendo às demandas dos seus eleitores, das prefeituras e dos estados. Ora, é difícil imaginar que flagrante de deputados pode ter o mínimo interesse para os milhões de telespectadores de todo o país. Festinhas em casas de família? Cochichos com eleitores pedintes, candidatos a uma assessoria na Câmara? Debates com vereadores, inaugurações de obras municipais? Francamente, o Congresso perdeu a noção do ridículo.

Entre outras coisas. Mas é velho o truque de desviar a atenção do que interessa, puxando conversa sobre trivialidades. O Congresso desconversa para não enfrentar a crise verdadeira que corrói a sua autoridade e esvazia as suas desculpas. A decadência do Congresso começou com a mudança para Brasília, em 21 de abril de 1960, uma cidade em obras, sem as mínimas condições de hospedar um governo. Para vencer a resistência de ministros, magistrados, senadores e deputados, além de especialistas, o presidente Juscelino Kubitschek apelou para a simpatia e para o irresistível argumento das mordomias, vantagens, benefícios. Aberta a tranqueira, nunca mais foi possível fechá-la ou simplesmente reduzir a voracidade dos pretendentes empistolados. Não se pode exigir do presidente da Câmara, deputado Michel Temer, que queime o seu cacife eleitoral fechando a porta de acesso ao cofre da Viúva.

A realidade pressiona

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. A batalha congressual para aprovar o plano de recuperação econômica acabou matando o projeto político do presidente Barack Obama de governar com o apoio suprapartidário, que considerava necessário para superar a crise que se aprofunda. Os republicanos, apesar de amplamente minoritários no Congresso, não aceitaram o chamado de Obama e passaram a colocar todos os obstáculos à aprovação do plano, o que atrasou a entrada em ação de planejamento de mais longo prazo que dará, esse sim, a nova cara do governo que chegou ao poder para mudar. Desde a posse, no entanto, a nova administração viu-se às voltas de um lado com a pequena política de Washington e por outro teve que apagar pequenos incêndios que deveriam ter sido evitados com um processo de seleção mais refinado.

Ter perdido vários secretários por problemas com pagamento de impostos e questões correlatas, e ter que gastar energia e prestígio político para defender a nomeação do secretário do Tesouro, Tim Geithner, acusado das mesmas faltas com o imposto de renda, e a do novo chefe da CIA por relacionamentos com empresas, certamente não estava nos planos de Obama.

Os republicanos, aproveitando-se dessas vulnerabilidades, trataram de endurecer o jogo no Capitólio, buscando um lugar ao sol num jogo político amplamente dominado pelos democratas.

A mudança de comportamento pessoal de Obama durante as negociações do pacote no Senado, abrindo mão da tentativa de cooptar os republicanos e passando a acusá-los pelos problemas atuais na economia, marcou, antes do que a maioria imaginava, o fim da lua-de-mel com a oposição, embora nada indique que a relação com a opinião pública esteja em perigo.

O presidente Obama foi subindo de tom à medida que o tempo passava e não havia uma definição sobre o plano econômico. Utilizou todos os meios de que dispõe para se comunicar com os eleitores e, dessa maneira, pressionar os congressistas: deu entrevistas às redes de televisão, escreveu um longo e candente artigo para o jornal mais prestigiado da capital, o "Washington Post", mandou recados pelo You Tube.

É especialmente definidora desse novo momento a irritação de Obama com as críticas dos republicanos a seu projeto de trocar os carros que servem ao governo por outros, que usem energia alternativa, como se fosse uma decisão supérflua e um gasto desnecessário.

Um interessante artigo de Juan Antonio Sacaluga para o boletim eletrônico do Safe Democracy, uma ONG dedicada a fortalecer o sistema democrático no mundo, ressalta que a política econômica de Obama, mais do que no pacote de recuperação, está baseada em três pilares no longo prazo:

- A renovação da estrutura física e eletrônica da infraestrutura, que será atingida não apenas pela modernização das autoestradas e das instalações dos serviços públicos básicos, como também equipando o país com o mais avançado sistema de telecomunicação possível.

- O lançamento de uma indústria limpa e verde, construída no conceito de eficiência e baseada no desenvolvimento de energia renovável, e não no consumo excessivo de fontes convencionais de energia.

- Uma substancial melhora nos sistemas de saúde e seguridade social, especialmente necessária neste momento em que o desemprego está aumentando sem controle.

A previsão é de que a perda de empregos continue alta nos próximos meses, concretizando a previsão mais pessimista de que a taxa de desemprego pode sair de 7,5% para chegar à casa dos 10%. Embora nada parecido com a crise de 1929, que colocou 25% da força de trabalho no olho da rua, um índice de desemprego de dois dígitos é um número assustadoramente alto.

Apesar das dificuldades, inclusive políticas, com relação à mudança de paradigma na política energética, o projeto irá adiante sem grandes rejeições, mas o gasto com a ampliação do seguro saúde pode acrescentar um déficit maior ainda às contas do governo, que neste momento prepara-se para gastar perto de U$1 trilhão para tentar recolocar a economia americana nos trilhos novamente.

Nesse setor tão importante, ter perdido a colaboração do ex-senador Tom Daschle, que seria seu braço direito no programa de reformulação do sistema social de saúde, foi certamente um baque para a estratégia de Obama.

As dificuldades cada vez maiores da economia fazem com que a nova administração mova-se com redobrado cuidado, e por isso já está sendo acusada por alguns setores como conservadora em excesso.

A questão é que a energia política que está sendo gasta na negociação com o Congresso para colocar em prática o plano de recuperação econômica está impedindo que o governo mostre-se inovador em outras áreas.

O que Barack Obama tem feito para justificar o espírito renovador, lema de sua campanha vitoriosa à Presidência, é apresentar algumas medidas simbólicas, como a equalização dos salários dos homens e mulheres, ou a limitação dos salários dos executivos financeiros de instituições que recebam ajuda do governo federal.

Esses gestos servem para aplacar a sede de mudança da sociedade americana, enquanto a crise econômica mostra-se mais devastadora a cada dia. A partir da aprovação do pacote, a nova administração poderá se dedicar a mudanças de fundo, tanto nos setores estratégicos quanto na própria regulamentação do sistema financeiro, cujo esboço já está pronto para ser discutido.

Leitura de sinais

Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO

Um grande exportador brasileiro para a China me disse que "a China parou de piorar". Alguns projetos de infraestrutura estão começando a sair do papel e isso levará o país a importar commodities que tinha parado de comprar. Mas só a China, porque na visão desse exportador "o Japão está derretendo, a Coreia está ainda caindo e a queda da Europa será funda e longa".

No Brasil, uma das respostas à crise tem sido o Banco Central usar as reservas para o financiamento ao comércio exterior. Agora, vai usar mais US$36 bilhões de reservas para socorrer as empresas que têm dívida externa. Por lei, o BC só pode agir através de instituições financeiras. Detalhe: o empresário Luiz Fernando Furlan me disse que aumentaram o spread nestas operações feitas com linhas do BC, de 1% para 5%. O risco é fazerem a mesma coisa com os US$36 bi para o pagamento da dívida externa das empresas.

No resto do mundo, os países estão tentando, cada um a seu modo, responder a essa crise. Da qualidade da resposta dependerá o futuro após a normalização. O Reino Unido baixou de novo os juros que já estavam no nível mais baixo da história, mas ontem também colheu o menor número de produção industrial desde 1974.

A China continua sendo, talvez por miragem, a economia da última esperança. Só porque se acredita que ela terá de 5% a 6% de crescimento no mar vermelho das previsões sobre os outros países. Mas ela está caindo 13% em 2007 e 10% em 2008. O crescimento está se reduzindo à metade e a previsão é de que o país acumule 20 milhões de desempregados. Isso na parte visível da China, que impõe pela ditadura a proibição de os trabalhadores irem para as cidades. Nos confins da China quem sabe o que se passa? O governo está tentando rever o clima com fortes estímulos fiscais.

A indústria brasileira, depois do tombo de dezembro, ainda está com estoque alto e as vendas de matérias-primas, em alguns casos, chegam a ser de apenas 30%. Janeiro também foi de paralisia nos negócios. Nas conversas com os setores, quando há sinais de melhora, são pequenos. O setor siderúrgico afirma que as encomendas externas começam a aparecer, segundo Marco Polo de Melo Lopes, do IBS. No setor de equipamentos eletrônicos simplesmente não houve encomendas em janeiro, diz o presidente da Abinee, Humberto Barbato. Ele acha que a atividade vai ficar baixa durante todo o primeiro trimestre. Celulares, bens de informática e material elétrico para a construção civil são os que mais sentiram no setor, que em dezembro caiu 40%. Estes seis meses entre setembro e março são o pior momento para nós. E ocorre quando o mundo continua piorando.

Nos Estados Unidos, a tentativa do governo Barack Obama de dar uma resposta rápida já fracassou. Tem estado na defensiva pelos problemas fiscais dos seus nomeados. As emendas protecionistas acabaram com a unanimidade que o pacote pretendia ser. Com o plano aprovado, o dinheiro começará a jorrar para a economia através de redução de impostos e projetos de investimento, mas ele perdeu duas semanas cruciais.

Além da retração de produção para o mercado interno, e da redução das exportações, as empresas brasileiras enfrentam a queda dos preços internacionais que, em alguns casos, é forte. A China chegou a pedir à Vale uma redução de 80% no preço, agora reduziu o desconto para 40%. O níquel, que já foi comercializado a US$55 mil a tonelada, caiu para US$11 mil. Para se ter uma ideia da drástica mudança de preços, o frete pago por uma tonelada de minério de ferro para a China no ano passado era US$110. Agora, está em US$10.

A economia internacional continua vivendo essa drástica alteração dos patamares de preços, de produtos e moedas. Por isso, a recuperação das economias fica mais imprevisível. Siderúrgicas que fecharam altos-fornos, como as de Tubarão, terão que esperar a demanda melhorar lá fora e ainda o grupo no qual estão - no caso a Arcelor Mittal - recuperar-se do baque que enfrentou. A interligação entre economia brasileira e internacional, que funcionou nos bons momentos, agora também funciona, mas para tornar mais difícil a recuperação.

Ontem, a OCDE piorou as perspectivas para o Brasil, a China, a Índia e a Rússia. Os países do Leste Europeu estão vivendo um desastre. A Turquia livrou-se do pior, que foi o colapso financeiro, através de um acordo com o FMI de US$25 bilhões. O governo russo queimou US$100 bilhões de reservas tentando evitar a alta do dólar. Depois desistiu. Agora, está tentando salvar o setor privado, mas as dívidas das empresas superam as reservas de US$386 bilhões. Apesar das altas reservas, o país foi rebaixado esta semana. A queda do preço do petróleo mudou a conjuntura. Após 10 anos, a Rússia terá déficits fiscal e externo. O fiscal pode chegar a 10% do PIB. A Ucrânia terá uma recessão de 6% este ano. Nossa vizinha Argentina entra em 2009 em estagnação, por culpa dos erros de sua política econômica.

Há pouca esperança lá fora. Por isso, o sentimento do nosso exportador de que a China "parou de piorar" - com o qual abro esta coluna - é uma rara esperança. Se for confirmada.

De imóveis e patins

Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Alguma coisa não fecha na história da crise. No mesmo dia em que se anuncia que a Mercedes Benz está dando férias coletivas para todos os trabalhadores das linhas de produção de caminhões e ônibus em São Bernardo do Campo, medida que afeta 7.000 funcionários, a cada vez mais imperdível coluna de Guilherme Barros, a "Mercado Aberto", informa o seguinte: "A Caixa Econômica Federal bateu um novo recorde de financiamento habitacional no mês de janeiro. O banco firmou 45.975 contratos de crédito imobiliário no período, que somaram R$ 1,91 bilhão -crescimento de 155% em relação ao mesmo período do ano passado (...) e o melhor janeiro da história da Caixa Econômica".

Quer dizer que não há demanda para caminhões e ônibus mas há demanda -e violenta, inédita- para imóveis que custam bem mais que veículos? Quem explica? Que houvesse demanda por liquidificador, ferro elétrico, até automóvel (voltaram as filas, lembra-se?), ainda vá lá. Mas imóvel é algo de que a turma só vai atrás quando tem confiança em que: 1) vai continuar empregado; 2) sua renda não vai sofrer uma erosão violenta, o que significa que acredita que conseguirá pagar o financiamento. A menos, claro, que o Brasil esteja inaugurando o seu próprio esquema "subprime", aqueles financiamentos no escuro que acabaram sendo o estopim da crise global.

Outro dia escrevi que não havia espaço para relatar esquisitices também na Europa. É hora de contar uma delas: como fez um frio do cão na Europa em janeiro, lagos e canais holandeses congelaram, abrindo inesperadas "pistas de patinação". O que fizeram os holandeses? Gastaram 80 milhões para comprar patins novos. De novo, liquidificador, eu entendo, mas patim novo no meio de uma crise inédita, que me expliquem por favor.

"Não há luz no fim do túnel" para a crise, diz economista

Entrevista: Flavio Bartmann
Sérgio Dávila
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Para consultor brasileiro em Nova York, conjuntura atual é pior que a de 1929, desemprego pode bater em 10% nos EUA e levar a empobrecimento da população

FLAVIO BARTMANN , renomado economista que mora em Nova York há três décadas, diz que os norte-americanos sairão mais pobres da crise atual. Afirma ainda que culpar os derivativos pelo derretimento do mercado financeiro é coisa de "teóricos da conspiração" e que o desemprego deve chegar a 10% nos Estados Unidos antes de as coisas começarem a virar.O brasileiro é um dos raros espécimes que reúnem conhecimento teórico e prático. Lecionou nas universidades de Campinas e Columbia, em Nova York, onde vive atualmente.

Por duas décadas, Bartmann trabalhou nos bancos de investimento JPMorgan e Merrill Lynch em Frankfurt, Nova York e Londres. Hoje, é conselheiro de CEOs em reestruturação de corporações e gerenciamento de crises -ou seja, nunca trabalhou tanto. "A verdade é muito mais simples: os preços às vezes caem. Se você está muito alavancado, é grande a possibilidade de você perder todo o seu capital", disse à Folha, em troca de e-mails e telefonemas:

FOLHA - Como e quando a atual crise vai acabar?

FLAVIO BARTMANN - Vai depender das políticas fiscais dos EUA e das principais economias da Europa e da Ásia. Também, embora menos, da política monetária desses países. Mais importante, vai depender do comportamento do consumidor. As vendas desabaram nos últimos meses. As pessoas simplesmente deixaram de comprar qualquer coisa de que não precisam para viver e estão pagando suas dívidas rapidamente. Se essa tendência continuar, viveremos uma recessão prolongada. O melhor cenário é uma recuperação modesta na segunda metade do ano. Mas é fácil fazer previsões mais graves, com uma queda significativa durando pelo menos até o final de 2010 e taxas baixas de crescimento econômico permanecendo por vários anos.

FOLHA - Que tipo de capitalismo vai sobreviver a ela?

BARTMANN - Essa crise é grande, mas a estrutura básica do capitalismo contemporâneo não será afetada. Simplesmente porque não há alternativas viáveis. Algumas reformas significativas serão implantadas com o tempo. O sistema financeiro vai ser reestruturado. A alavancagem vai ser limitada a níveis mais razoáveis. Os riscos serão tomados de uma maneira mais transparente. Programas sociais nos EUA devem ser limitados. Os norte-americanos se tornarão mais pobres.

FOLHA - Acha que esse approach keynesiano -estimular a economia com gastos públicos e criação de emprego- funciona numa economia como a do século 21?

BARTMANN - Ainda é cedo para dizer. Estamos em território desconhecido. Os governos têm duas grandes ferramentas para lidar com a economia: política monetária e política fiscal. Não há muito mais o que possa ser feito no front monetário. Então não há outra escolha senão recorrer ao bom e velho gasto do governo. Há dois anos, o senso comum dizia que nós estávamos imunes a uma crise como a da Depressão. Essa visão estava errada. Muitos economistas, a maioria conservadores, pensaram que o papel que o governo central tinha de ter havia sido grandemente reduzido e que os grandes programas bancados pelo governo para estimular a economia e criar emprego eram uma coisa do passado. Eles estavam errados.

FOLHA - Muito se falou sobre os derivativos (operações financeiras cujas perdas e ganhos derivam da variação futura de um produto, um índice ou um ativo financeiro) e, na opinião de muita gente boa, como eles são os grandes culpados pelo derretimento do sistema financeiro. Warren Buffett chamou o recurso de "armas financeiras de destruição em massa". O sr. acha ingenuidade culpá-los. Por quê?

BARTMANN - Os derivativos não são diretamente responsáveis pelo derretimento do sistema financeiro. Eles não criam ou destroem valor. O ganho de uma das partes é contrabalançado pela perda da outra. No entanto, facilitaram grandemente as grandes estratégias do mercado usadas recentemente. A causa principal do colapso do sistema financeiro global reside na queda abrupta dos valores dos bens. O efeito da queda nos preços dos ativos é multiplicado pela alavancagem que existia nos balanços dos grandes bancos. Em muitos casos, o valor total dos ativos era 25 ou 30 vezes maior do que o capital. Uma perda média de 3% nos ativos, num banco alavancado 30 vezes, resulta na perda de 90% do capital. Essa alavancagem excessiva resultou em grandes perdas, que, por sua vez, levaram à insolvência de muitas das maiores instituições financeiras em várias economias.

FOLHA - Por que acha que os derivativos acabaram sendo os "bodes expiatórios", então?

BARTMANN - Há vários fatores envolvidos. É mais fácil para as pessoas que tiveram perdas colossais responsabilizarem outros fatores que não suas más escolhas. Como o público não entende derivativos, eles se tornam desculpas convenientes. Muitas pessoas também se deixam levar por teorias conspiratórias. Histórias sobre um punhado de nerds e banqueiros reunidos para criar instrumentos novos e perigosos que vão gerar lucros enormes e eventualmente destruir o sistema financeiro podem vender muito jornal, mas têm pouco a ver com a realidade.
A verdade é muito mais simples: os preços às vezes caem. Se você está muito alavancado, é grande a possibilidade de perder tudo.

FOLHA - O sr. diz que o problema é estrutural. Por que não se percebeu esse problema estrutural antes? Falta de regulação? Ganho fácil?

BARTMANN - No nível mais básico, havia uma grande relutância de mudar o modelo de negócio que tinha sido bem-sucedido por muitos anos. Em time que ganha não se mexe. A falta de uma estrutura regulatória eficiente certamente piorou as coisas. A exigência muito limitada de transparência permitiu que bancos e outras instituições acumulassem grandes riscos não revelados. A estrutura de governança de Wall Street também encorajou a tomada de risco excessivo por parte de muitos corretores: se você acerta, faz fortuna; se não, perde seu bônus. Isso alimentou comportamentos inconsequentes. Por fim, tem havido, na última década, uma atitude muito relaxada sobre riscos.

FOLHA - O sr. diz que arrumar o sistema financeiro será "extremamente doloroso".

BARTMANN - A atual crise financeira é pior que a de 1929. Nós vimos as maiores instituições de crédito do mundo, Fannie Mae e Freddie Mac, falirem. O maior banco comercial, Citigroup, se tornou de fato insolvente por duas vezes nos últimos seis meses. Três dos maiores bancos de investimento de Wall Street acabaram. O processo de desalavancagem em curso resultou em centenas de bilhões de perdas nos bancos nos EUA e na Europa.

De maneira embaraçosa, os EUA e muitos governos europeus tiveram de implantar pacotes enormes para salvar o sistema bancário. Nos EUA, o Congresso passou o Tarp. Embora não seja politicamente correto se referir ao plano como tal, é uma nacionalização parcial do sistema financeiro nos EUA. Apenas a última, mas talvez a maior embaraçosa de uma lista longa da gestão Bush.

Arrumar o sistema financeiro e curar o paciente vai ser custoso. As vagas estão sendo fechadas num ritmo muito rápido. É possível que o desemprego atinja 10%, com mais 5 milhões de pessoas perdendo empregos. As perdas nos fundos de aposentadoria estão em trilhões de dólares, e os americanos viram o valor de suas casas desabar 30% nesse período. E não há luz no fim do túnel.