terça-feira, 11 de novembro de 2008

O valor das palavras


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Há palavras, e até mesmo frases inteiras, que nunca foram ditas, mas entram para a História, podendo até mudar os seus rumos. Outras, ditas no calor do debate político, podem criar problemas sérios. Quando se trata de tradução, então, o perigo na política é multiplicado, e por isso o presidente Lula carrega consigo, desde os tempos em que viajava pelo mundo como dirigente do PT, Sérgio Ferreira, seu tradutor pessoal, de sua estrita confiança. Há um antigo ditado na Itália que define o tradutor como um traidor (Traduttore, Traditore). Acho que só mesmo Paulo Coelho tem a coragem de dizer que não se incomoda com alterações que os tradutores fazem de suas obras para adaptá-las aos usos e costumes do país em que seu livro está sendo publicado.

Vem da Guerra da Lagosta a famosa frase "o Brasil não é um país sério", atribuída ao general De Gaulle e que até hoje é um sucesso no Brasil, mas que na verdade foi dita pelo embaixador brasileiro Alves de Sousa em Paris.

Talvez a mais famosa frase não dita da política brasileira seja a atribuída ao brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da UDN na campanha presidencial de 1945, a de que não precisava "do voto dos marmiteiros", o que o fez ficar marcado como candidato da elite.

Favorito, o brigadeiro foi atingido por um boato espalhado pelo empresário getulista Hugo Borghi, que apoiava a candidatura do general Eurico Gaspar Dutra, do PSD. Na verdade, ele dissera que não queria o voto da "malta de desocupados" que apoiava Getulio Vargas. O termo "malta" significa "bando", mas também "um grupo de operários que percorrem as linhas férreas levando suas marmitas".

A mais recente polêmica sobre tradução na política gira em torno do cachorro que o presidente eleito Barack Obama está escolhendo para ir com a família para a Casa Branca. Quando ele disse que queria um cachorro "mutt" como ele, não chamou a atenção dos americanos, mas traduzido por "vira-lata", a comparação causou espanto no Brasil.

Embora tecnicamente correta, a tradução de "mutt" por "vira-lata" não exprime o conceito de mestiçagem de raças que está contido na frase de Obama. Essa eleição, por sinal, trouxe para o debate político vários conceitos totalmente distorcidos de seu sentido original, de acordo com a ideologia de quem os usava.

Quando o republicano John McCain disse que a política de impostos de Obama era "socialista", estava misturando alhos com bugalhos. "Espalhar a riqueza", como diz querer o presidente eleito, nada tem a ver com "expropriar a riqueza", que foi o tom dado pelos republicanos radicais.

Houve eleitor de origem cubana que declarou já ter visto aquilo acontecer depois da ditadura comunista implantada em Cuba, como se na ilha de Fidel alguma riqueza houvesse sido espalhada. Nós, brasileiros, por exemplo, sabemos muito bem o que significa "distribuição de rendas", em oposição a "concentração de rendas", e o equívoco de considerar uma política de distribuição de rendas como uma prática "socialista" só existe para quem estiver de má-fé política.

Pode-se discutir como realizar essa distribuição de rendas, e discordar da política oficial de usar mecanismos meramente assistencialistas para tal, mas é difícil discordar de que é preciso reduzir a diferença entre ricos e pobres na nossa sociedade.

Conceitos como "populismo", por exemplo, são completamente diferentes na política norte-americana e na latino-americana. Na nossa América Latina, populista é aquele governante que atinge e exerce o poder por meio de uma relação direta com a massa: Hugo Chávez, Perón, Getulio Vargas, Brizola, e Lula, cada vez mais distanciado do "petismo" e alimentando o "lulismo".

Nos Estados Unidos, há uma intermediação partidária que impede esse comportamento individualizado. O populismo nos EUA está ligado a questões econômicas, com uma prodigalidade fiscal dos democratas, que é o contrário do "Estado pequeno" defendido pelos republicanos.

Já se associou na América Latina populismo a irresponsabilidade fiscal, a gastar mais do que se arrecada, mas esse debate está superado desde que prevaleceu a tese da necessidade do equilíbrio fiscal. O governo Lula continua mantendo o equilíbrio, embora gaste mais do que poderia com a contratação de pessoal, graças à arrecadação de impostos, o que é um "gatilho" que pode dar errado com a crise econômica que bate às portas do mundo.

Como se viu nas promessas de campanha, tanto de Obama quanto de McCain, a disputa se travou entre a proposta dos republicanos, de cortar imposto dos mais ricos, contra a posição dos democratas de oferecer isenções de impostos para a grande classe média americana.

Tendo a questão econômica aparecido como tema prioritário na campanha para a Câmara e o Senado desde 2006, fato que se acentuou nessa eleição, cada democrata que tirou o lugar de um republicano trabalhou o desconforto econômico sentido pela classe média americana.

Os democratas teriam buscado o voto como verdadeiros "populistas econômicos", o que provocou uma crítica considerando que o populismo superou a ideologia.

Só para confundir mais ainda, o liberalismo no linguajar político norte-americano está mais ligado a uma visão de esquerda, e também não é nada parecido com o que o liberalismo significa no vocabulário político latino-americano e europeu.

Tanto que os Democratas, antigo partido da frente liberal, faz parte de uma associação internacional de centro que congrega, entre outros, o Partido Republicano dos Estados Unidos.

Caso de tolerância


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Os dados da pesquisa encomendada meses atrás pela Comissão de Ética Pública da Presidência da República à Universidade de Brasília para medir o apego do brasileiro aos bons costumes de natureza pública começam a ser divulgados sem revelar grandes surpresas.

A maioria se considera ética, mas admite que já deixou de cumprir a lei; metade contrataria parentes se pudesse ter acesso a uma "boquinha" e boa parte usaria dinheiro público para despesas pessoais se tivesse um cartão corporativo.

O fato de não serem surpreendentes, porém, não torna esses dados menos deploráveis.

"Se pudesse resumir a pesquisa em uma frase, eu diria que a sociedade brasileira não sabe separar o público do privado", afirma Ricardo Caldas, da Faculdade de Ciência Política da UnB e coordenador do estudo que ouviu 1.027 servidores públicos e 1.767 profissionais da chamada sociedade civil sobre os mais diversos tipos de comportamento: do nepotismo ao ato de furar uma fila, passando pelo hábito de pagar ou receber propinas.

Genericamente, o quadro captado pela pesquisa foi o da tolerância em relação a condutas desviantes, principalmente quando desvio em questão rende benefício ao interessado. Reflexo, segundo Caldas, do em tese condenado, mas, na prática ultra arraigado "jeitinho" mediante o qual as pessoas adaptam suas demandas à ineficácia do poder público e daí, transportam essa mentalidade para tudo o mais.

Havendo vantagem objetiva, vale tudo. Na essência, justamente o sentimento que presidiu as relações entre governo e sociedade depois de o PT ter se envolvido em escândalos de corrupção, mas o presidente Luiz Inácio da Silva ter saído incólume em virtude da satisfação geral com a economia.

Não há na pesquisa nada de novo exatamente porque o desapreço à ética na escala de prioridades do cidadão já ter sido recentemente submetido a teste semelhante.

Por isso mesmo resta em aberto a destinação que a Comissão de Ética Pública da Presidência pretende dar à pesquisa. O estudo foi pedido para avaliar o padrão ético do brasileiro e, com base nas informações, propor ao presidente Lula o aperfeiçoamento do Código de Conduta da Alta Administração Federal.

Código este constantemente ignorado por ministros que, sob o aval do presidente, se insurgem contra as exigências da comissão. Se hoje são ignoradas, por que haveriam de ser respeitadas, uma vez aprimoradas?

A menos que a idéia seja adequar o código ao baixo padrão de exigência, pois estatísticas se prestam a qualquer uso, dependendo do interesse do freguês.

Polícia política

Em algum momento indefinido da história os políticos passaram a freqüentar casos de polícia com assiduidade, a ponto de hoje não causar espécie a presença de excelências nos inquéritos.

Já a transformação da polícia (federal) num caso explícito de política tem um marco preciso, ou melhor, dois: o primeiro e o segundo governos Luiz Inácio da Silva.

De 2003 ao início de 2007, sob o comando de Márcio Thomaz Bastos no Ministério da Justiça, a PF usou a vestimenta "republicana" com a qual foi usada como exemplo da firme disposição do presidente Lula em combater a corrupção.

As antigas brigas de grupos existiam, mas naquele período ficaram restritas ao âmbito interno por conta da habilidade do criminalista Thomaz Bastos em dar ao terreno já minado uma aparência de corporação unida em torno de um objetivo altivo de governo.

Com a saída do advogado e a entrada do militante partidário Tarso Genro no Ministério da Justiça, as desavenças foram deixadas ao sabor das vaidades alimentadas pela notoriedade da primeira fase e o ambiente se deteriorou completamente.

É quase unânime a tendência de atribuir a confusão ao descontrole do governo sobre a estrutura da PF. De fato, as coisas andam obviamente descontroladas no aparato de segurança oficial.

Mas o perfil do descontrole depende do ponto de vista do orador. A tendência da maioria é atribuir a confusão vigente à incapacidade do governo de impor sua autoridade hierárquica ao funcionamento da PF frente à independência dos diversos grupos, nesta versão largados à própria sorte.

Há, no entanto, uma outra hipótese: a de que a deformada autonomia seja conseqüência não da carência, mas do excesso de presença do governo no controle político sobre as ações da PF que, por equívocos estratégicos cometidos nessa fase de corte nitidamente ideológico do Ministério da Justiça, tiveram as vestes desprovidas da etiqueta "republicana".

Mal comparando

A Polícia Federal vai ficando muita parecida com a imagem do Ministério Público anos atrás. Protógenes inclusive é um sério candidato a sucessor de Luiz Francisco.

Quem não brinca em serviço


Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - Parte da Polícia Federal e da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) investiga banqueiros e ricos em geral, à revelia de seus comandos diretos. Outra parte se rebela e... passa a investigar quem investiga. No final, todo mundo grampeia todo mundo.

Mais ou menos como na ditadura militar em Goiás, quando só havia três categorias de políticos: os que cassaram, os que foram cassados e os que cassaram e foram cassados.Depois de 40 anos, o mesmo ocorre com o delegado Protógenes, que perseguiu e agora está sendo perseguido; invadiu casas num dia e teve a sua casa invadida no outro.Ele grampeava uns jornalistas, seus inimigos na PF grampeiam outros -aliás, sem autorização judicial.

Se a PF está em pé de guerra, a Polícia Civil de São Paulo é capaz de tentar sitiar o Palácio dos Bandeirantes, e as várias polícias do Rio, de Pernambuco, de Rondônia... parecem tão fora de controle quanto a própria violência urbana.

Enquanto isso, o governo federal infla os gastos com o funcionalismo (a segunda maior despesa da União, só atrás da Previdência Social, conforme a Folha), e os órgãos de elite fazem concursos para multiplicar suas vagas (no Senado, no Ipea, no TCU...). Mas as polícias nem recebem aumento nem têm juízo, confrontam-se umas com as outras e aprendem a fazer greves sem deixar as armas em casa.

Os bandidos fazem a festa. Exemplo: uma quadrilha assaltou a delegacia de entorpecentes em Botucatu (SP), arrombou o cofre, levou armas e drogas apreendidas e botou fogo na papelada sobre criminosos.

Para completar o serviço com chave de ouro, explodiu a sede da delegacia, que voou pelos ares, levando o que resta de orgulho e de amor-próprio nas nossas polícias. Coisa de mestre, uma operação para bandido nenhum botar defeito, e confirma aquela nossa velha sensação: alguém está ganhando essa guerra. E não é o Estado.

Os bancos e o boi no pasto


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Fabio Barbosa, presidente do Grupo Santander no Brasil e presidente também da Federação Brasileira de Bancos, é um dos raros líderes (empresariais ou políticos) que se sente compelido a prestar contas quando cobrado.

Foi cobrado pelo presidente Lula na semana passada (de brincadeira, segundo Barbosa), cobrança que reproduzi neste espaço. Prestou contas, que repasso ao leitor, como é devido, em resumo: "Os governantes, analistas, banqueiros, industriais e jornalistas ainda estão tentando entender o que se passa nessa inédita crise.

Não espere que eu, ou alguém isoladamente, tenha a resposta". "A realidade é que o crédito não circula no mercado internacional e, portanto, as empresas e os bancos brasileiros não têm mais acesso a vários mecanismos que vinham sendo utilizados. (...) Com a impossibilidade de se financiarem no mercado internacional, as empresas buscaram financiamento em reais, e -claro- não há como atender a essa nova demanda, além da já existente. Algumas empresas não encontram o crédito que desejam, e daí vem a sensação de paralisação.A notar, que muitos bancos também se financiavam no mercado internacional e, portanto, não podem fazer seus repasses aqui".

"Vale notar que o crédito para pessoa física, com a exceção de financiamento de automóveis, continua normal. Baseado em levantamento (informal) feito junto a grandes bancos, entendo que a carteira de crédito total de outubro fechará acima dos volumes recordes de setembro, o que é muito diferente do que acontece mundo afora".

"Como indiquei acima, o processo que estamos vivendo é ímpar. De nada adianta simplificarmos o problema, sugerindo que se trata de má vontade deste ou daquele setor.

Não caiamos na armadilha de voltarmos à época da busca do "boi no pasto", que, a propósito, não demonstrou maior efetividade."

O passado interditado


Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO

É provável que a Advocacia Geral da União (AGU) recue em parte do parecer que emitiu sobre a extensão da lei da anistia, no qual considera perdoados os agentes do Estado acusados de torturar e matar, nos anos de chumbo do regime militar. O que falta estabelecer é ate onde recuar, a ponto de não deixar mal o advogado-geral José Antonio Dias Toffoli. Uma hipótese é a elaboração de um novo parecer decompondo a questão em seus aspectos penal e cível.

É uma situação difícil para Toffoli, no entendimento de seus superiores, que, no entanto, consideram ainda mais difícil um governo integrado por pessoas que foram torturadas aceitar um juízo nos termos formulados no parecer da AGU. E não se trata apenas da opinião do ministro Tarso Genro (Justiça) ou do secretário de Direitos Humanos Paulo Vannuchi. Mas no governo há uma banda que pensa de maneira oposta e está levando a melhor.

É majoritário no Palácio do Planalto o entendimento de que Toffoli errou duplamente.

Errou, em primeiro lugar, ao assinar um parecer que avança no mérito daquilo que ainda não está em questão - se o crime de tortura está ou não coberto pela lei ou leis de anistia aprovadas desde 1979, ainda sob o tacão da ditadura militar.

Em segundo lugar, errou porque não deveria assumir essa tese, de acordo com o entendimento da maioria palaciana, sem antes consultar a coordenação de governo, ampliada com a presença do ministro Nelson Jobim (Defesa), que tomou o partido da área militar na discussão.

A ação judicial movida pelo Ministério Público Federal tenta que a Justiça condene o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante da repressão militar em São Paulo, a indenizar a União pelas reparações feitas aos familiares dos mortos e aos que foram perseguidos ou torturados pelo regime de 1964.

É uma ação cível. Evidentemente que ela tem a intenção de tentar responsabilizar Ustra criminalmente, mais adiante, caso o Judiciário conceda o pedido de indenização. Mas a AGU poderia ter se limitado a tratar da questão em seu aspecto cível, deixando para tratar mais tarde, se fosse o caso, do aspecto penal - se a tortura está ou não coberta pela lei de anistia. Leia-se ganhar tempo.

O fato é que a AGU lavrou o parecer e dividiu em dois o governo. De um lado, aqueles que consideram a tortura um crime imprescritível. Do outro aqueles que, como o ex-presidente do Supremo Nelson Jobim, empenham o prestígio jurídico adquirido na tese segundo a qual os agentes do Estado foram anistiados na lei aprovada em 1979.

A queda das ditaduras na América Latina teve processos diferentes. No Chile, a troca de bastão dos militares para os civis esteve sob o controle dos generais até que um juiz espanhol expediu um mandado de prisão contra o general Augusto Pinochet, responsável por uma das ditaduras mais sanguinárias da região.

Na Argentina os militares saíram pela porta dos fundos. Já desgastada, a ditadura meteu-se numa guerra com a Inglaterra e foi humilhada no campo de batalha. Os generais rosnaram só até a esquadra inglesa bloquear as ilhas Malvinas. Na saída do regime, os movimentos de direitos humanos argentinos não aceitaram discutir primeiro a reparação pecuniária, antes exigiram a reparação moral.

No Brasil, a anistia votada em 1979 no Congresso foi aprovada no regime militar, nos limites da correlação das forças políticas à época, quando o partido do governo era majoritário e ainda governaria por cerca de mais seis anos, até 1985. A rigor, anistiava só os agentes do Estado. Punidos por "crimes" de consciência como Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes e Antônio Cândido só mediante mandado de segurança retomaram o direito a suas cátedras na universidade.

A própria Justiça Militar se encarregou de ampliar os limites da anistia de 1979 e firmar jurisprudência ao estendê-la também aos insurgentes que aderiram à luta armada. Em 1985 a lei foi abrandada. Em 1988 a constituinte declarou a tortura crime "insuscetível de graça ou anistia", mas misturou o que era golpe de 64 com o que era o fim do Estado Novo, ao estender os benefícios da anistia até 1946, então a última Constituição democrática.

Com o pedido de reconsideração do parecer feito por Vannuchi à AGU, é provável que Toffoli apresente novo texto, mas improvável uma virada radical de opinião. A decisão será do Judiciário.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

Considerações sobre Bretton Woods II


Luiz Gonzaga Belluzzo
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Desde o século XVIII os teóricos e praticantes da moderna economia política debatem os conflitos e contradições entre a moeda universal (e seu caráter mercantil) e o exercício da soberania monetária pelos Estados nacionais.

No final do século XIX, a metástase da Revolução Industrial para os Estados Unidos e para a Europa Continental foi acompanhada pela constituição de um sistema monetário global, amparado na hegemonia da Inglaterra. Essa construção política e econômica do capitalismo suscitou, no imaginário social e na prática dos negócios, a "ilusão necessária" acerca da naturalidade e impessoalidade do padrão-ouro e de suas virtudes na promoção do ajustamento suave e automático dos balanços de pagamentos.

Ao promover a ampliação do comércio internacional, o padrão-ouro impôs a reiteração e a habitualidade da mensuração da riqueza e da produção de mercadorias por uma unidade de conta abstrata. Assim, para escândalo de muitos, a confiança na moeda universal em sua roupagem dourada promoveu a expansão da moeda bancária, suscitando a progressiva absorção das determinações funcionais do dinheiro - unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor - por uma representação, um signo desmaterializado garantido pelas finanças do Estado.

Nos anos 20 do século passado, o declínio da Inglaterra coabitou com incapacidade política do poderio econômico americano em afirmar sua hegemonia. Isso tornou problemática, após o hiato de moedas inconversíveis da Primeira Guerra, a restauração do padrão-ouro, mesmo sob a forma atenuada do Gold Exchange Standard que permitia a acumulação de reservas em dólares e libras. Em sua ressurreição, o padrão-ouro foi incapaz de reanimar as convenções e de reproduzir os processos de ajustamento e as formas de coordenação responsáveis pelo sucesso anterior. Os déficits e os superávits tendiam a se tornarem crônicos. Os países superavitários - sobretudo França e EUA - se empenharam em "esterilizar" o aumento das reservas em ouro para impedir os efeitos indesejáveis sobre os preços domésticos.

Nos trabalhos elaborados para as reuniões que precederam as reformas de Bretton Woods, Keynes formulou uma proposta mais avançada e internacionalista de gestão da moeda fiduciária. Ela previa a "administração" centralizada, pública e supranacional do sistema mundial de pagamentos e de provimento de liquidez. O Plano Keynes visava, sobretudo, eliminar o papel perturbador exercido pelo ouro - ou por qualquer moeda-chave - enquanto último ativo de reserva do sistema. Tratava-se não só de contornar o inconveniente de submeter o dinheiro universal às políticas econômicas do país emissor, mas também de evitar que assumisse a função de um perigoso agente da "fuga para a liquidez".

Na verdade, os países trocariam mercadoria por mercadoria e o dinheiro internacional, o Bancor, seria reduzido à função de moeda de conta. Os déficits e superávits seriam registrados em uma espécie de conta corrente que os países manteriam junto à Clearing Union, a câmara de compensação encarregada de vigiar o sistema de taxas fixas, mas ajustáveis e de promover os ajustamentos entre deficitários e superavitários. No novo arranjo institucional não haveria lugar para a livre movimentação de capitais em busca de arbitragem ou de ganhos especulativos.

Em 1944, nos salões do hotel Mount Washington, na acanhada Bretton Woods, a utopia monetária de Keynes capitulou diante da afirmação da hegemonia americana que impôs o dólar - ancorado no ouro - como moeda universal. Talvez por isso, o segundo pós-guerra conte a história conflituosa da reafirmação do dólar como moeda-reserva e narre as desditas da reprodução dos desequilíbrios globais e da sucessão de ajustamentos traumáticos dos balanços de pagamentos na periferia.

Essas características do arranjo monetário realmente adotado em Bretton Woods sobreviveram ao gesto de 1971 - a desvinculação do dólar ao ouro - e à posterior flutuação das moedas em 1973. Na esteira da desvalorização continuada dos anos 70, a elevação brutal do juro básico americano em 1979 derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lançou os europeus na "desinflação competitiva" e culminou na crise japonesa dos anos 90. Na posteridade dos episódios críticos, o dólar se fortaleceu, agora obedecendo ao papel dos Estados Unidos como "demandante e devedor de última instância".

A crise dos empréstimos hipotecários e seus derivativos, que hoje nos aflige, nasceu e se desenvolveu nos mercados financeiros dos Estados Unidos. Na contramão do senso comum, os investidores globais empreendem uma fuga desesperada para os títulos do governo americano. Assim como nas crises cambiais dos anos 90, protagonizadas pela periferia (México, Ásia, Rússia, Brasil e Argentina), os papéis do governo dos Estados Unidos oferecem repouso para os capitais cansados das aventuras em praças exóticas e reservam os tormentos da volatilidade cambial para os incautos que acreditaram nas promessas de recompensa pelo bom comportamento.

Bretton Woods II, ou coisa assemelhada, não vai enfrentar conturbações geradas pela decadência americana. Vai sim acertar contas com os desafios engendrados pelo dinamismo da globalização impulsionada pela grande empresa e ancorada na generosidade da finança privada dos Estados Unidos. O processo de integração produtiva e financeira das últimas duas décadas deixou como legado o endividamento sem precedentes das famílias "consumistas" americanas, causa e efeito da migração da indústria manufatureira para a Ásia "produtivista" e da acumulação de mais de US$ 5 trilhões de reservas nos cofres dos emergentes.

Na posteridade da crise asiática, os governos e o Fundo Monetário Internacional ensaiaram a convocação de reuniões destinadas a imaginar remédios para "as assimetrias e riscos implícitos" no atual regime monetário internacional e nas práticas da finança globalizada. Clamavam por uma reforma da arquitetura financeira internacional. A reação do governo Clinton - aconselhado pelos conselheiros de Barack Obama, Robert Rubin e Lawrence Summers - foi negativa. Os reformistas enfiaram a viola no saco. Mesmo depois da queda do subprime, não vai ser fácil convencer os americanos a partilhar os benefícios implícitos na gestão da moeda reserva.

Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1144&portal=

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Jürgen Habermas: Ainda Potência


Entrevista
Thomas Assheuer
DEU NA FOLHA DE S. PAULO/ MAIS!

PARA O FILÓSOFO ALEMÃO JÜRGEN HABERMAS, FUTURO POLÍTICO DO PLANETA DEPENDERÁ DA POSIÇÃO QUE OS EUA ADOTAREM NOS PRÓXIMOS ANOS


O novo presidente precisa se impor contra as elites dependentes de Wall Street e se afastar dos reflexos de um novo protecionismo

Um dos mais importantes filósofos vivos, o alemão Jürgen Habermas fala nesta entrevista sobre os efeitos da atual crise financeira sobre o futuro dos Estados nacionais. Para ele, as mudanças que o sistema político mundial sofrerá nos próximos anos irá depender necessariamente das posições que os EUA -e seu novo presidente- irão adotar. Habermas defende que os EUA, mesmo enfraquecidos, ainda permanecerão como a superpotência liberal.

PERGUNTA - O sr. deve estar decepcionado com os EUA, que, em sua opinião, foram o cavalo de tração da nova ordem mundial.

JÜRGEN HABERMAS - O que nos resta a não ser apostar nesse cavalo de tração? Os Estados Unidos sairão enfraquecidos da dupla crise atual. Mas permanecerão por enquanto a superpotência liberal. A exportação mundial da própria forma de vida correspondeu ao universalismo falso, centralizado, dos velhos ricos. Em contraposição, a modernidade se alimenta do universalismo descentralizado do respeito igual por cada um. É do próprio interesse dos EUA não somente deixar de lado seu posicionamento contraproducente em relação à ONU, mas também colocar-se no topo do movimento reformista. Do ponto de vista histórico, a combinação de quatro fatores oferece uma constelação extraordinária: superpotência, mais antiga democracia na terra, a posse de um presidente liberal e visionário e uma cultura política na qual orientações normativas encontram um notável solo de ressonância. Os EUA sentem-se hoje profundamente inseguros devido ao fracasso da aventura unilateral, à autodestruição do neoliberalismo e também ao mau uso de uma consciência de excepcionalidade. Por que essa nação não poderia, como fez com tanta freqüência, recompor-se de novo e tentar integrar a tempo as grandes potências concorrentes de hoje -e potências mundiais de amanhã- em uma ordem internacional que prescinda de uma superpotência? Por que um presidente -que, saído de uma eleição decisiva, irá encontrar somente um espaço mínimo de ação- não desejaria, pelo menos na política externa, agarrar essa oportunidade razoável, essa oportunidade da razão?

PERGUNTA - Falando assim, o sr. não arrancaria mais do que um riso cansado dos chamados "realistas"...

HABERMAS - O novo presidente americano precisa se impor contra as elites dependentes de Wall Street no próprio partido; ele também deveria ser afastado dos reflexos evidentes de um novo protecionismo. E os EUA precisariam, para uma meia-volta tão radical, do impulso amigável de um aliado leal, mas autoconsciente. Só pode existir um Ocidente "bipolar", no sentido criativo, se a União Européia aprender a falar para fora com uma só voz. Em épocas de crise, talvez seja necessária uma perspectiva que tenha um alcance mais longo do que o conselho do "mainstream" embonecado do sucesso a qualquer custo.

PERGUNTA - O sistema financeiro internacional entrou em colapso, e há a ameaça de uma crise econômica mundial. O que mais o inquieta?

HABERMAS - O que mais me inquieta é a injustiça social, que consiste no fato de que os custos socializados oriundos da pane do sistema atingem da forma mais dura os grupos sociais mais vulneráveis. Assim, solicita-se da massa composta por aqueles que, de qualquer modo, não pertencem aos que lucram com a globalização que ela de novo pague pelas conseqüências, em termos da economia real, de uma falha funcional previsível do sistema financeiro. Também em escala mundial, esse destino punitivo efetua-se nos países mais fracos economicamente. Esse é o escândalo político. Mas apontar agora bodes expiatórios, isso, sem dúvida, considero hipocrisia. Também os especuladores comportaram-se de forma conseqüente, nos limites da lei, de acordo com a lógica, aceita socialmente, da maximização dos ganhos. A política se torna ridícula quando moraliza, em vez de se apoiar no direito coativo do legislador democrático. Ela, e não o capitalismo, é responsável pela orientação voltada ao bem comum.

PERGUNTA - Para os neoliberais, o Estado é somente um parceiro no campo econômico e precisa se apequenar. Agora esse pensamento não tem mais crédito?

HABERMAS - Isso dependerá do desenrolar da crise, da capacidade de percepção, por parte dos partidos políticos, dos temas públicos.

PERGUNTA - Por que o bem-estar é hoje distribuído de forma tão desigual? O fim da ameaça comunista desinibiu o capitalismo ocidental?

HABERMAS - O capitalismo contido no âmbito dos Estados nacionais, cercado por políticas econômicas keynesianas, marcado por um bem-estar incomparável -do ponto de vista histórico-, já havia acabado logo após o abandono do câmbio fixo e do choque do petróleo. De fato, a ruína da União Soviética desencadeou um triunfalismo fatal no Ocidente. A sensação de ter razão, em termos da história mundial, tem um efeito sedutor. Neste caso, inchou uma doutrina político-econômica e a tornou uma visão de mundo que penetra em todas as esferas da vida.

PERGUNTA - De que o mundo sentiu falta depois de 1989? O capital simplesmente se tornou poderoso demais diante da política?

HABERMAS - Ficou claro para mim, ao longo dos anos 1990, que as capacidades políticas de ação precisavam crescer atrás dos mercados, no plano supranacional. À globalização econômica deveria ter seguido uma coordenação política mundial e a legitimação adicional das relações internacionais. Mas as primeiras peças adicionais já ficaram atoladas no governo de Bill Clinton. Desde o início da modernidade, o mercado e a política sempre precisaram se contrabalançar de forma que a rede de relações solidárias entre os membros de uma comunidade política não se rompesse. Uma tensão entre capitalismo e democracia sempre existe porque mercado e política repousam sobre princípios opostos.

PERGUNTA - Mas o sr. insiste no cosmopolitismo de Kant e acolhe a idéia de uma política interna mundial, introduzida por Carl Friedrich von Weizsäcker. Isso soa bastante ilusório -basta que se observe o estado atual das Nações Unidas.

HABERMAS - Mesmo uma reforma basilar das instituições centrais das Nações Unidas não seria suficiente. De fato, o Conselho de Segurança, o Secretariado, as cortes de Justiça precisariam urgentemente entrar em forma para uma imposição global dos direitos humanos e da proibição da violência -em si já uma tarefa imensa. Nesse plano transnacional, há problemas de distribuição que não podem ser decididos do mesmo modo que infrações contra os direitos humanos ou violações de segurança internacional, mas precisam ser negociados de forma política.

PERGUNTA - Mas para isso já existe uma organização experimentada, que é o G-8.

HABERMAS - Isso é um clube exclusivo, no qual algumas dessas questões são discutidas de forma descomprometida. Entre as expectativas exageradas que se ligam a essas encenações e o resultado medíocre do espetáculo midiático sem conseqüências, existe uma desproporção traiçoeira.

PERGUNTA - O discurso sobre a "política interna mundial" soa antes como os sonhos de um vidente.

HABERMAS - Ainda ontem a maioria consideraria não realista aquilo que ocorre hoje: os governos europeus e asiáticos superam-se mutuamente em sugestões de regulamentações em vista da institucionalização insuficiente dos mercados financeiros.

PERGUNTA - Mesmo que novas competências fossem atribuídas ao Fundo Monetário Internacional, isso ainda não seria uma política interna mundial.

HABERMAS - Não quero fazer previsões; em vista dos problemas atuais, o que podemos fazer, na melhor das hipóteses, são considerações construtivas. Os Estados nacionais deveriam, de forma crescente e, com efeito, em seu próprio interesse, se perceber membros da comunidade internacional. Quando hoje falamos de "política", estamos amiúde falando da ação de governos que herdaram uma autoconcepção como atores coletivos, que decidem de forma soberana. Mas essa autoconcepção de um Leviatã, que, desde o século 17, se desenvolveu junto com o sistema de Estados europeu, hoje já não é mais vigorosa. O que chamávamos ontem de "política" muda diariamente seu estado.

PERGUNTA - Mas como isso se coaduna com o darwinismo social, que, como o sr. diz, se expande novamente na política internacional desde o 11 de Setembro?

HABERMAS - Talvez se devesse dar um passo atrás e observar uma conjuntura maior. Desde o final do século 18, o direito e a lei permearam o poder do governo, constituído politicamente, e lhe negaram, na circulação interior, o caráter substancial de um simples "poder". Mas ele guardou para si uma quantidade suficiente dessa substância, apesar da rede de organizações internacionais e da força de coesão crescente do direito internacional. Ainda assim, o conceito de "político", cunhado no âmbito do Estado nacional, está se liquefazendo. Na União Européia, por exemplo, os Estados-membros, no passado e no presente, guardam o monopólio da força e também transpõem, mais ou menos sem reclamações, o direito que é determinado na esfera supranacional. Essa mudança de forma do direito e da política também se relaciona a uma dinâmica capitalista que pode ser descrita como interação entre abertura forçada funcionalmente e fechamento sociointegrativo em níveis cada vez mais elevados.

PERGUNTA - O mercado arromba a sociedade, e o Estado social a fecha novamente?

HABERMAS - O Estado social é uma proeza tardia e frágil. Os mercados e as redes de comunicação sempre em expansão já tiveram uma força de arrombamento, que, para o cidadão individual, é, ao mesmo tempo, individualizante e libertadora. A isso, porém, sempre seguiu uma reorganização das velhas relações de solidariedade numa moldura institucional expandida. Esse processo iniciou-se no início da modernidade, quando os estamentos dirigentes da Alta Idade Média se tornaram, passo a passo, parlamentares -como na Inglaterra- ou foram subjugados por reis absolutistas -como na França. Essa domesticação jurídica do Leviatã e do antagonismo entre as classes não foi simples. Mas, pelas mesmas razões, a bem-sucedida constitucionalização do Estado e da sociedade aponta hoje, após um surto de globalização econômica, para uma constitucionalização do direito internacional e da esfacelada sociedade mundial.


A íntegra desta entrevista saiu no "Die Zeit". Tradução de Erika Werner.

Democracia é assim (ou não é)


Wilson Figueiredo
Jornalista
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Sempre foram ambivalentes as relações do presidente Lula com os jornais. Tanto podem ser entendidas de um jeito como de outro. Há algum tempo Lula repete que, sem a imprensa, não teria chegado à Presidência. A despeito dela, foi reeleito e rejeitou o terceiro mandato. Desde o começo, a imprensa foi importante para a atividade política de Lula. As restrições da censura deram peso político ao líder sindical. Não foi uma revolução, longe disso, mas várias eleições perdidas levaram o presidente e o PT ao poder. Democracia é assim ou não é democracia.

O presidente Lula e a liberdade de imprensa se tornaram dependentes e inseparáveis, embora as relações entre ele e ela passem por crises periódicas. Foi o próprio Lula que se declarou o grande beneficiário da liberdade de informação e opinião sobre a qual se assenta a democracia que vamos edificando às caneladas. Trata-se, porém, de moldura para censurar a prioridade óbvia do jornalismo pelo ângulo crítico. Lula não se conforma com o privilégio das crises no noticiário, a precedência para o irreparável, a prioridade para o erro, o destaque para o crime, a soberania do negativo.

Ainda agora, pela enésima vez, o presidente aproveitou a oportunidade de uma esticada à usina de Tucuruí para se queixar de episódio ocorrido há quatro anos, quando da primeira visita às obras. A ênfase do noticiário em 2002 foi o gesto presidencial de comer com satisfação infantil um bombom e se atrapalhar com o papel que o envolvia. Como se livrar do papelucho? Lula optou por atirá-lo discretamente ao chão, e os fotógrafos não perderam a oportunidade. Queixa-se o presidente de que o bombom ofuscou a porção JK do seu governo. Com severidade, mas sem perder a delicadeza rude, Lula mostrou que desenvolvimentismo e bombons não são incompatíveis.

Antes e depois do ciclo militar, Brasil a dentro e Brasil a fora, Lula se beneficiou da liberdade de imprensa mais que qualquer outro. Dela se serviu e a ela serviu por serem, uma e outra, inseparáveis. Há quem entenda que Lula é assim para aplacar o ressentimento que o mensalão exacerbou no petismo. Que não se engane o presidente, como ocorre aos seus mais assíduos adversários, se pensar que os jornais o favoreceram por outra razão que não fosse o teor de interesse público, no sindicalismo com pompa e peleguismo, ou na presidência do PT. A Presidência apresenta Lula no perfil suavizado pelo mercado que o acolheu de braços abertos, depois daquela carta comovente que explicará no futuro o que tiver escapado ao presente.

Com o tempo, Lula passou de apedrejador a vitrina. O reconhecimento público da importância da imprensa é interesseiro e utilizado como atenuante para reclamar do jornalismo a preferência pelo ângulo desfavorável dos fatos. Ou o menos convencional. E nada pode ser mais convencional do que visita de governante a obras que, ainda na prancheta, lhe pareçam garantir sobrevida de pirâmides do Egito.

Que pode haver de novo numa visita a obras em andamento? Só mesmo o bombom que, uma vez saboreado, deixou o papel nas mãos presidenciais. No dia seguinte, lá estava na primeira página dos jornais o gesto inesquecível. O presidente há de convir que o cidadão tem o direito de estranhar que o mais alto posto na hierarquia republicana dê preferência ao chão quando tem no bolso do paletó espaço suficiente para abrigar o papelucho já sem o bombom. Presidente da república pilhado em flagrante é preciosidade imperdível para um repórter fotográfico a serviço do acaso.

Ensina a lição preliminar de jornalismo que a notícia não é o cachorro que morde o dono, mas o dono que tenha mordido o cachorro. Não há ditadura que faça valer o contrário. O jornalismo teria morrido prematuramente se fosse obrigado a se contentar com o óbvio. O presidente Costa e Silva e a condessa Pereira Carneiro, em almoço no Laranjeiras quando tais coisas ainda eram possíveis, conversavam sobre a contribuição da imprensa para afastar os fantasmas que assombravam a república. Dona Maurina testemunhou ao marechal as dificuldades do jornalismo em situações políticas desconfortáveis. E discorreu sobre o espírito crítico, mas construtivo, com que o JB lidava com governos. O presidente não economizou simpatia. Terminado o almoço, a condessa agradeceu a Costa e Silva a oportunidade de expor a teoria da crítica construtiva e o marechal não deixou por menos: "Dona Maurina, a crítica construtiva do JB é valiosa, mas eu gosto mesmo é de elogio".

O presidente Lula é também dado a franquezas, e não perde oportunidade de passar a impressão de acreditar mais na luta de classes do que na encíclica Rerum novarum. Até prova em contrário.

A face da nova geração


José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS


A significativa vitória do Partido Democrata, apoiada no desempenho eleitoral de Barack Obama, repõe no cenário político americano e no cenário político internacional a mística das grandes mudanças inspiradas no novo e difuso humanismo desta era pós-Guerra Fria, pós-socialista, a era das dissoluções de velhas linhas demarcatórias herdadas do mal resolvido século 20. Ainda não sabemos se a popularidade eleitoral de Obama se traduzirá em carisma que o tornará o que os historiadores de outro tempo definiam como epônimos, homens que dão nome a uma época. Sua circunstância o leva nessa direção.

Essa vitória repõe a questão das funções históricas da revolução cíclica das gerações, porque não resultou de mera peleja entre democratas e republicanos. Hillary Clinton representava a alternativa pendular. Na pessoa de Obama, as novas gerações, os recém-chegados à cena da história, os que estão cansados de esperar, encontraram sua identidade e a alternativa. A cada tanto tempo, uma geração já não compreende a língua, a mentalidade, os propósitos e os desacertos da geração anterior. Ousa, tenta mudanças, abre caminhos, inventa saídas, dá cor ao mundo cinzento do repetitivo.

Desde o fim da 2ª Guerra Mundial, a América e o mundo vêm tentando escapar das armadilhas políticas criadas no século 19, na difícil realização dos valores e direitos proclamados pela Revolução Francesa, ainda mal resolvidos nas primeiras décadas do século 20. Armadilhas condensadas na polarização perversa que se expressou na Guerra Fria. Prisioneiro dessa polarização, o mundo ocidental vem dando passos para libertar-se desse passado, criando um mundo novo em que os ideais de justiça social, democracia e liberdade se tornem realidades. Senhores e patrões de conflito esquizofrênico, Estados Unidos e União Soviética patinaram ao longo das décadas, negando nos conflitos que promoviam a visão de mundo que proclamavam. Barack Obama, na América, está sendo chamado a personificar a esperança da superação histórica, a esperança de uma nova era, em que o mundo se torne o que poderia ser e tem condições de ser e não tem sido.

Barack Obama representa uma outra América, a América que em silêncio, na corajosa obstinação da não-violência e dos movimentos sociais, teceu o belo rendilhado da esperança dos banidos do poder e dos privados dos direitos civis. A América que acompanhou com paciência o envelhecimento de uma concepção arrogante do homem, da vida e do mundo e que construiu uma alternativa moral para a injusta prepotência própria do demasiado e indevido poder.

Obama e sua esposa Michelle vêm da experiência social e política da militância no trabalho voluntário com os pobres e injustiçados. Foram socializados na cultura dos movimentos sociais, pela qual as novas gerações nos Estados Unidos, na Europa e em outras regiões e países educaram-se nos valores da generosidade, da partilha e da paz. Nesse sistema de valores puderam compreender o imenso abismo que nos separa das promessas das grandes revoluções que criaram o mundo moderno. Novas gerações que compreenderam a fraude política das dominações que anularam o século 20.

O século 19 demorou-se na maquiagem das conflitividades que herdou. Envelheceu sem transformar, diluiu-se em conflitos pendentes, não raro gerados pela própria expansão capitalista, como o conflito racial e o conflito religioso. As doutrinas sociais e políticas revelaram-se pobres em face de uma realidade social pluralista, regida por outras dinâmicas, resistente a binarismos simplistas como o do capitalismo contra o feudalismo, das colônias contra as metrópoles, do proletariado contra a burguesia. Em cada uma dessas polarizações havia e há muito mais do que os rótulos podem dizer.

É nesse grande cenário de mudanças que se pode compreender o que vem ocorrendo na América desde a libertação dos escravos e desde a Guerra Civil. A abertura do oeste americano à livre ocupação de colonos, com o Homestead Act, de 1862, a reforma agrária americana, com Lincoln no poder e a Secessão já em andamento, não produziu todos os seus efeitos modernizadores e emancipadores devido à resistência do escravismo sulista. A derrota do sul desencadeou mecanismos cruéis de recriação de desigualdades sociais com fundamento na raça, no limite a violência dos linchamentos, que se disseminaram e alcançaram não só negros, mas também judeus e imigrantes, sobretudo italianos. Foram as mulheres brancas das igrejas protestantes do sul que nos anos 1920 desencadearam o movimento social anti-racista, combatendo dentro de casa e denunciando publicamente o pretexto do estupro de mulheres brancas por homens negros para pendurar em árvores a estranha fruta de corpos negros balançando na brisa, da canção anti-racista escrita e musicada, em 1937, por Abel Meeropol, um professor judeu. "Strange fruit" foi consagrada pela cantora negra Billie Holyday e se tornou um hino martelando a consciência dos americanos.

A cultura em que foram educados Barack e Michelle Obama nasceu e se difundiu nas igrejas protestantes da América. Durante a campanha eleitoral, na visita altamente simbólica que Barack Obama fez à Igreja Batista Ebenezer, de Atlanta, em que Martin Luther King Jr. foi pastor, fez ele um discurso pautado pela mística da esperança, a dos humilhados e ofendidos. A fala de Obama tem sido e o foi novamente no discurso da vitória na madrugada do dia 5 de novembro, um extraordinário e competente retorno da política ao filtro da oratória protestante, de fundo bíblico. Nas manifestações de regozijo por sua vitória, aliás, foi possível ver inúmeras manifestações mais religiosas do que partidárias.

De certo modo, a revolta das gerações já havia eleito Kennedy que, porém, foi capturado pela poderosa máquina de um Estado governado mais pelo mercado do que pelo povo, mais pela guerra do que pela paz. Resta saber se Obama, no poder, terá como personificar as esperanças que reavivou e o sonho que sonhou.

*José de Souza Martins, Sociólogo, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, é autor de Retratos do Silêncio, Coleção "Artistas da USP", Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008; Sociologia da Fotografia e da Imagem (Editora Contexto, 2008); A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008); A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008.

A Casa Branca e o DA da Católica


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

No dia seguinte ao da queda de Saigon, ao chegar para o trabalho na UFMG, me dizia uma aluna, bem-humorada militante estudantil de esquerda, referindo-se à disputa eleitoral pelo controle do Diretório Acadêmico da então chamada Universidade Católica de Minas Gerais, ocorrida também na véspera: "Viu só? Tomamos Ho Chi Minh e o DA da Católica!" Juntava num grande "nós" de abrangência planetária o espetacular desfecho da guerra do Vietnã, que marcara longamente o panorama internacional, ao episódio de um cotidiano local de luta política estudantil.

O mundo girou, o Vietnã faz capitalismo, como a Rússia e a China, a esquerda há muito anda confusa - para não falar dos liberais de tempos mais recentes. Mas Barack Obama conquistou a Presidência dos Estados Unidos no dia 4, e o "nós" de minha ex-aluna empolga o mundo todo de modo raro, talvez inédito: emoção e choro, muito choro (com o ícone do rosto banhado de lágrimas de Jesse Jackson na televisão, ouvindo Obama no discurso da vitória em Chicago) por parte da população negra estadunidense, que vê no evento o auge simbólico da luta árdua pela restauração da dignidade e a promessa de superação definitiva do racismo; festa e emoção multi-racial pelo país afora; emoção e festa na África, na Europa, no Brasil...

Mas ressalte-se que a emoção compartilhada mundialmente tem substrato decisivo no fato da união que a liderança singular de Obama soube criar em torno de si em seu país, numa campanha em que o tom elevado da mensagem se combinou com grande eficácia e habilidade "instrumental" - e cujo produto mais imediato, aliás, o êxito da busca de apoio financeiro pela internet, possivelmente altera de vez os termos da discussão sobre financiamento de campanhas. Como mostram os dados, Obama conseguiu o feito raro entre candidatos Democratas de obter mais de 51% do voto popular. E, se venceu de maneira quase unânime entre os negros, obteve mais de dois terços do voto dos jovens de 18 a 29 anos, dois terços do voto dos eleitores latinos, ganhou o voto católico, o dos trabalhadores "blue-collar" (onde, em particular, se apontavam dificuldades quanto a sua "elegibilidade"), conquistou estados supostamente hostis e avançou mesmo no voto dos eleitores brancos em comparação com os dados a John Kerry em 2004. Não obstante a resistência da face mais negativa dos Estados Unidos e da política fascistizante em torno de "God, guns and gays" do Partido Republicano, é evidente o sentido, que todos têm ressaltado, em que Obama, além de sua peculiar história pessoal, se ajusta à transformação demográfica do país, na qual o mundo passa a poder melhor reconhecer-se.

Por mera coincidência, participei na manhã do dia 5, com a confirmação da vitória de Obama ainda fresca no noticiário matinal, de um debate na UFMG sobre "Democracia, raça e pobreza", em companhia do economista Ricardo Henriques e do rapper MV Bill. A presença forte de MV Bill (em quem se pode pretender ver semelhanças importantes com Obama, apesar de backgrounds e trajetórias muito distintas) ajudou a dar vivacidade ao debate, com as denúncias, que seus raps reiteram, da violência social e racial experimentada pessoalmente.

Mas pude ver e apontar equívocos que me parecem importantes (e que não se acomodam bem com a atividade social em que o próprio Bill se tem empenhado) quanto à questão geral de como situar-se, na perspectiva de construção de uma sociedade democrática, diante do muito que há de negativo nas relações de raças no Brasil. Em particular, o empenho, de ânimo beligerante (e compartilhado com o chamado Movimento Negro, embora Bill se dissocie explicitamente dele), de estabelecer linhas nítidas entre brancos e negros no interesse de favorecer um enfrentamento supostamente mais propício ao avanço dos negros: "por que, na imprensa brasileira, Obama é negro e Camila Pitanga é morena?"

Naturalmente, o que queremos é que raça (a condição de "negro", "moreno", "branco") seja simplesmente irrelevante do ponto de vista social - algo que Bill mesmo ilustrou no debate, de modo meio inconsistente, com o reconhecimento de que agora se tornou "incolor". Quanto a Obama, o importante é que nos Estados Unidos ele é inequivocamente um negro, justamente pela prevalência do critério implícito na proposta em que nosso Movimento Negro mimetiza o que nos acostumamos a ver de pior nos EUA: uma gota de sangue negro e se está contaminado pela feia doença da negritude. Como tenho escrito, a idéia de que uma gota de sangue negro faz de alguém um negro vale tanto quanto a de que uma gota de sangue branco faz de alguém um branco. Daí que não só seja "tecnicamente" difícil, nas condições da miscigenação brasileira, dizer quem é negro e quem não é, mas também que se torne especialmente odioso pretender separar negros de brancos, nos estratos pobres onde populações racialmente diversificadas mais convivem e se mesclam, para decidir quem deve receber bolsas, cotas ou promoção social em geral. Se vamos ter ação afirmativa, o que me parece indispensável como parte da atuação de um Estado orientado pela preocupação de compensar e talvez neutralizar a desigualdade, o critério não pode ser senão social - a promoção racial, como no exemplo exitoso de Cuba, virá como consequência da própria correlação entre raça e classe que advém do nosso pesado legado escravista. E cabe notar, já que o assunto é Obama, que essa é a posição manifestada por ele, na campanha, sobre o tema da ação afirmativa.

Voltando ao "nós" hiperbólico do começo, menos mal que no caso de agora seu alcance difira, em mais de um sentido, do de minha ex-aluna. Mas vale: ganhamos a Casa Branca. Pelo mundo afora, a conquista de seja o que for que equivalha aos DAs da Católica do dia-a-dia deve ficar mais fácil.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1143&portal=

domingo, 9 de novembro de 2008

Filósofo lança livro de memória em que reafirma sua condição de comunista


ENTREVISTA: LEANDRO KONDER
Idéias & Livros
Rodrigo de Almeida, JB Online

A crise do capitalismo é providencial

RIO - O filósofo Leandro Konder se diz um sobrevivente: comunista do século 20, tenta, neste início de século 21, reinterpretar os juízos e propostas formulados por Karl Marx no século 19.
O professor já se deu essa missão há alguns anos. Agora, lança um livro no qual não só revisa o comunismo como a própria condição de comunista. Chama-se Memórias de um intelectual comunista (Civilização Brasileira, 264 páginas, R$ 39) a obra que chega agora às livrarias.


Nela, Konder – um dos mais respeitados intelectuais do país – repassa histórias de sua vida: das lembranças de um garoto “programado para progredir” ao presente de saúde frágil (o Mal de Parkinson o obrigou a abandonar atividades políticas e acadêmicas).

A leveza de estilo e a franqueza da autocrítica estão lá – e se espelham na entrevista a seguir.

Jornal do Brasil: Estamos numa crise grave. O que comunistas têm a dizer?

Leandro Konder: Vejo de fora, pois quase não tenho atividade política por razões de saúde. Está faltando um embasamento teórico mais desenvolvido das forças da esquerda. Essa crise do capitalismo foi providencial, porque veio lembrar que o capitalismo também tem seus colapsos. Marx dizia: cada crise é diferente da anterior. Têm em comum o fato de serem crises. Temos de estar preparados para aproveitar essas crises. O que vamos fazer para superá-la, não sei. Cada crise tem seu ineditismo. Não estamos preparados para responder a ela. Nós, comunistas, nos espantamos tanto quanto a burguesia.

Jornal do Brasil: A começar do título, a questão do intelectual permeia todo o livro. O senhor escreve: “Posso reconhecer minha condição de intelectual sem cometer a tolice de me envaidecer com ela”. Por que a preocupação?

Leandro Konder: A crítica só se aprofunda mesmo quando acompanhada da autocrítica. E a autocrítica não é aquela encenação dos partidos comunistas. Os comunistas faziam a autocrítica em nome de vantagens imediatas, e acho que a autocrítica é algo mais sério.Envolve tanto uma crítica das circunstâncias presentes como o exame crítico daquilo que você vem fazendo. E o que você vem fazendo não é plenamente satisfatório. Nunca é plenamente satisfatório.

Jornal do Brasil: Por quê?

Leandro Konder: Porque a realidade é sempre mais rica do que a representação que fazemos dela. Falamos em autocrítica, mas não fazemos. Portanto, estou tentando contribuir para uma tomada de consciência e o fortalecimento da nossa coragem de fazer autocrítica. Vale para comunistas, para não-comunistas e para mim.

Jornal do Brasil: Qual a autocrítica necessária?

Leandro Konder: Nós, marxistas, temos sido insuficientemente críticos e ousados na visão de como transformar os nossos conceitos. A realidade mudou muito. Temos de olhar para a frente, criarmos novos conceitos, definirmos novas propostas de percepção e de análise da realidade. Estamos muito atrasados nessa autocrítica.

Jornal do Brasil: Em que Marx ainda faz sentido neste início de século?

Leandro Konder: A luta de classes ainda é convincente. Está vigente. As formas da luta de classes mudaram muito, hoje são muito sofisticadas. No tempo de Marx não existiam partidos de massa nem o sufrágio universal. São duas conquistas que mudaram o mundo. Marx morreu antes, não poderia levar em conta isso. Mas o Marx que mais me interessa é o filósofo. Sua concepção do homem e da História é bastante original e está viva. Agora, a visão que ele tinha da realidade política não corresponde à realidade de hoje. É uma realidade diferente. É preciso ir adiante.

Jornal do Brasil: O que significa “ir adiante”?

Leandro Konder: Trabalhar com categorias e conceitos que nos permitam revitalizar a esquerda, que está muito confusa, dilacerada, fragmentada. Uma boa teoria ajudaria a superar isso.

Jornal do Brasil: Essa fragmentação é resultado de uma teoria falha do presente, ou a teoria ficou falha em função dessa fragmentação?

Leandro Konder: Eu não diria que é resultado de uma teoria falha. É resultado de uma política falha. A teoria ajudaria a superar isso, se ela fosse revitalizada, aprofundada, como Marx fez com a teoria no tempo dele. Era preciso radicalizar a teoria de Marx. Radicalizar no bom sentido. Ir até a raiz. E a raiz do homem é o próprio homem, como diz Marx.

Jornal do Brasil: Passa pelos atores políticos?

Leandro Konder: Quem faz política passa por dois momentos inevitáveis: o conflito e a negociação. Na parte da negociação entra o capítulo das alianças. Há de fazer alianças, mas alianças aceitáveis. Mas quando se fazem alianças amplas demais o povo desconfia. Você sacrifica sua própria identidade aos olhos da população. Não se pode ampliar sem limites.

Jornal do Brasil: O senhor se refere ao governo do presidente Lula?

Leandro Konder: Acho o Lula um fenômeno que precisa ser estudado. Não me animaria a fazer a análise do fenômeno agora. Não sou cientista político.

Jornal do Brasil: O senhor descreve a sua decepção com o PT.

Leandro Konder: Gostei da idéia de um partido de esquerda radical, com identidade própria e ao mesmo tempo pós-leninista. Mas, com algumas alianças que fez, o PT virou um pouco o partido pós-tudo. Aí não dá.

Jornal do Brasil: O senhor escreve: ser comunista não é repetir, no século 21, propostas e juízos formulados por Marx no século 19. E o que significa ser comunista hoje?

Leandro Konder: Se conservo a concepção marxista do homem e da História, sou comunista. Posso discordar de Marx em vários pontos, mas o fundamental é que ele está me dando a concepção do homem e da história. A concepção do homem é ser o mesmo sujeito que se faz nas circunstâncias que lhe são impostas. Nasci no Brasil, sou um homem do século 20, sobrevivente no século 21, então essa concepção do homem me ajuda a não adotar esquemas explicativos baseados numa relação de causa e efeito. A concepção da história é a ação, a práxis, a atividade construtiva do homem. O homem transforma a realidade e se transforma.

Jornal do Brasil: O comunismo entrou muito cedo em sua vida. O senhor conta que, de início, lhe parecia uma estranha religião. Mas percebia os comunistas reunidos em torno do seu pai como “seres humanos iguais aos outros”.

Leandro Konder: As crianças enxergam coisas que os adultos não vêem. Os comunistas eram, no fundo, muito parecidos com os não-comunistas. Então havia certa relatividade do conceito. Essa relatividade não era aceita pelo sistema, vivíamos numa sociedade que funcionava com um sistema intolerante. Os comunistas eram perseguidos, presos, espancados.Os partidos comunistas hoje existem legalmente e participam do jogo eleitoral. Ninguém vai gritar: “Prendam os comunistas!”. Exceto os malucos da direita, que são bem mais malucos do que os da esquerda.

Jornal do Brasil: Isso criou um grande estigma.

Leandro Konder: O anticomunista continua com vitalidade maior do que o comunista. A direita mantém um núcleo anticomunista que está vivo, que exer2ce uma influência enorme, muito maior do que a esquerda.

Jornal do Brasil: A que se deve essa diferença?

Leandro Konder: A direita é pragmática. Tem um órgão de grande sensibilidade, a carteira, que acusa a diminuição dos lucros. Quando acusa, toma medidas práticas para acabar com isso. E, em geral, culpa os comunistas.

Jornal do Brasil: No livro o senhor expõe a sua doença e descreve as limitações. Não teve receio da exposição?

Leandro Konder: A partir de um certo nível de participação na vida coletiva, temos de abrir mão de algumas situações nas quais tendemos a nos proteger demais da publicidade. Não podemos nos limitar a sermos políticos na esfera política e defender a intimidade na outra esfera. O intelectual tem de estar exposto, discutir seus males e os da sociedade. Eu me coloco diante dessa necessidade de expor esse mal, que é a doença.

Serra: “Torço para que o pior da crise tenha passado”


Entrevista: José Serra
Maria Isabel Hammes e Sebastião Ribeiro
DEU NO ZERO HORA (RS)


Considerado um dos maiores vencedores das eleições de 2008 por conta da conquista da prefeitura paulistana pelo seu afilhado político Gilberto Kassab (DEM), o governador de São Paulo, José Serra, parece avesso a análises políticas.

Em entrevista telefônica concedida a Zero Hora, o principal nome do PSDB para a sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não fez cerimônia para cortar a conversa quando o assunto foi a eleição de 2010. Questionado sobre a possibilidade de concorrer, deu uma guinada na entrevista.

– Você sabe que fizemos um programa aqui muito interessante para professores? – esquivou-se, referindo-se ao financiamento para que docentes paulistas comprem laptops.

Economista formado pela Universidade do Chile e com mestrado e doutorado nos Estados Unidos, o governador paulista brincou que está de férias da profissão, e se esforçou para se apresentar como administrador eficiente e desenvolvimentista. Não deixou, no entanto, de estabelecer o contraponto à atual política econômica do governo federal.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Zero Hora – O governo federal tem apresentado uma série de medidas para dar liquidez e destravar o crédito, como liberar R$ 4 bilhões para financiar a compra de veículos. As medidas foram suficientes ou o crédito ainda está empoçado?

José Serra – O crédito está empoçado, sem dúvida. Aí tem de usar as instituições públicas: Banco do Brasil, Nossa Caixa. Com a taxa de juros do Brasil, é muito mais fácil pegar o dinheiro e, em vez de emprestar, aplicar em juros. Temos a maior taxa de juros do mundo. Aliás, é o único país com uma taxa assim, porque todos os outros países baixaram no meio da crise, e o Brasil, não.

ZH
– O senhor teria feito diferente?

Serra – Teria diminuído (a taxa de juros).

ZH – O Brasil não estaria em pior situação sem as medidas apresentadas pelo governo?

Serra – São bem-intencionadas, mas tem de se ficar mais em cima e atuar mais diretamente.

ZH – O senhor é um estudioso da crise de 29. Há comparação entre aquela crise e a atual?

Serra – A crise de 29 se prolongou por uma década. Não sei se a atual terá essa profundidade. Isso ninguém sabe, a incerteza é muito grande. No Brasil, a crise impactou por escassez de crédito e também por causa da política anterior do Banco Central de juros siderais e taxa de câmbio arrochada. Os exportadores começaram a perder dinheiro e foram criados mecanismos de compensação. Então, o exportador começou a antecipar receita de exportação com empréstimo. Digamos: vendo o produto e vou receber em fevereiro. Pego dólar hoje, troco por reais e aplico na maior taxa de juros do mundo. E, no final do processo, quando vou comprar dólar para pagar a quem emprestou, compro um dólar mais barato por causa da sobrevalorização. Esse esquema eliminou o cálculo econômico da transação, que envolve produção, custo, produtividade. Criou um esquema de especulação, ou melhor, financeiro com o beneplácito do BC. No momento em que, em vez de ganhar dinheiro vendendo, você ganha especulando, pode cometer exageros. Mas isso foi conseqüência da política errada do Banco Central.

ZH – O Banco Central acertou em ter uma política dura que possibilitou o aumento das reservas e, com isso, deixou o Brasil em posição mais confortável?

Serra – Bom, mas as reservas, se não tivesse arrocho cambial, seriam até mais elevadas. Porque já estamos com déficit em conta corrente. O Brasil conseguiu o milagre de produzir déficit de conta corrente no balanço de pagamentos com alta de preços dos nossos produtos de exportação. Isso é uma façanha mundial, um caso para se fazer tese de mestrado. Como um país gera déficit comercial tendo alta dos preços dos seus produtos?

ZH – Analistas já dizem que o pior da crise passou. O senhor concorda?

Serra – Não sei. Torço para que o pior da crise tenha passado. Agora, acho que aqui dentro temos de fazer o máximo para manter linhas de crédito, manter investimentos públicos, que é o que estamos fazendo no Estado. E ajudar na mobilização do crédito. A intenção do Ministério da Fazenda é a melhor possível, e a gente tem de ajudar e colaborar.

ZH – Economistas dizem que com eleição de Barack Obama nos Estados Unidos, agora que já se sabe o programa dele, isso pode ajudar a debelar a crise.

Serra – Tomara. Espero que estejam certos. A mudança de presidente em si não resolve. Tomara que venha um programa econômico mais consistente. Na campanha, Obama não apresentou nenhuma idéia nova a esse respeito. Nem o candidato derrotado John McCain.

ZH – Muitos especialistas consideram que os efeitos da crise são para o ano que vem. E o senhor?

Serra – Também acho que efeitos da desaceleração vão ser sentidos a partir do primeiro trimestre do ano que vem. Mas não tenho acompanhado as projeções do PIB (Produto Interno Bruto). Porque prever PIB a gente faz quando é obrigado a fazer. Como estou de férias da profissão de economista (risos), fazer previsão é sempre muito incômodo. Vai ter desaceleração, mas o tamanho eu espero que seja pequeno.

ZH – O senhor lançou um programa para estimular compra de tratores. Como pode ser importante para o Rio Grande do Sul?

Serra – Metade da produção nacional de tratores vem do Rio Grande. Nesse programa, combinamos com a Anfavea (Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores) um desconto médio de 20% nos equipamentos por conta da quantidade. A exigência é ter um índice de nacionalização de 60%. A Nossa Caixa vai colocar R$ 400 milhões para crédito. A taxa de juros vai ser subsidiada pelo Estado. Demanda (para compra de máquinas) tem, o que não tem é crédito.

ZH – Como o senhor avalia a série de medidas apresentada pelo governo para destravar o crédito?

Serra – Nós (Estado de São Paulo) vamos apresentar um programa para veículos, semana que vem, pela Nossa Caixa. Não posso dizer ainda o montante, mas vai ser grande, substancial.

ZH – O governo Lula está com alta aprovação popular, mas ainda não tinha enfrentado crise econômica. Isso muda alguma coisa no cenário para a eleição de 2010?

Serra – Não vou analisar isso.

ZH – Mas a vitória do prefeito Gilberto Kassab (DEM) à prefeitura de São Paulo não lhe fortalece?

Serra – Foi uma vitória dele, porque fez uma boa gestão. Houve uma aprovação da gestão, que uma parte foi minha, porque fui prefeito por 15 meses e, de alguma maneira, delineamos o programa de governo, embora Kassab tenha feito inovações, ampliações. Ele foi eleito por causa disso, não por causa de 2010. Agora, acho que é um pouco cedo para dar volta nisso (no tema da eleição). Não para a imprensa. Agora, quero me concentrar no governo e nas coisas que estamos fazendo. Você sabe que fizemos um programa aqui muito interessante para professores? É assim: todas as professoras que quiserem se inscrevem para comprar laptop. Negociamos com produtores desconto que chega a 38%, a Nossa Caixa financia a professora, e ela paga no máximo R$ 60 por mês, com juro zero.

ZH
– Como o senhor tem acompanhado daí o governo da Yeda Crusius?

Serra – Tudo que sei é que Yeda faz excelente administração na área econômico-financeira.

ZH – Mas tem dificuldade de conseguir apoio político e popular.

Serra – Política é outro departamento, mas acho que pouco a pouco vai avançando.

Palco eleitoral antecipado

Tiago Pariz
DEU NO ESTADO DE MINAS


OPOSIÇÃO

Adversários do presidente Lula mudam estratégia e apostam num discurso propositivo para criticar maneira como a administração petista conduz o país diante das turbulências na economia mundial


Brasília – A oposição pega carona na crise financeira internacional para tirar proveito político mirando a sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. PSDB, PPS e DEM abrem caminho para se encontrar no palco eleitoral antecipado e apresentar um discurso alternativo ao vendido pelos emissários do lulo-petismo. E esperam com isso mais votos em 2010.

Não é por acaso que o governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB), tem vindo a público para criticar a maneira como o governo federal lida com as turbulências econômicas, propondo um choque de gestão. A oposição adotou o discurso da necessidade de corte de gastos e controle das finanças públicas como alternativa para enfrentar as incertezas internacionais.

“É preciso uma agenda que responda de forma eficiente aos desafios da crise internacional, principalmente com o que tem a ver com emprego e salário dos brasileiros”, disse o líder do PSDB na Câmara, deputado José Aníbal (SP).

A oposição, ao se tornar propositiva, quer retirar das costas as críticas de que aposta no “quanto pior melhor”. Como a estratégia de exagerar os defeitos do governo do presidente Lula para ganhar votos tem se mostrado ineficaz, o discurso foi abrandado e tornado maleável aos ouvidos do eleitor.

“A crise é grave e vai ter conseqüências negativas. E o Brasil pode reduzir essas conseqüências negativas. Vamos municiando o governo com instrumentos necessários. Mas o governo tem que fazer a sua parte limitando a gastança”, sustentou José Aníbal.

Debate


Coincidência ou não, a oposição tem sido chamada para discutir com integrantes do governo as principais iniciativas de combate à crise, como a medida provisória que dava mais poderes ao Banco Central e a MP nº 443, que autoriza o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal a adquirirem instituições financeiras em dificuldades.

O líder do PPS, Fernando Coruja (SC), afirmou que o espaço só foi conquistado com insistentes pedidos de audiências com o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e com o ministro da Fazenda, Guido Mantega. “O governo não nos chamou, nós que fomos atrás dele. Percebemos que era preciso nos reunir e dar uma visão pro-ativa para ajudar o país a sair da crise”, afirmou o líder do PPS.

A brecha política criada com as incertezas animou tanto os adversários do Palácio do Planalto que, agora, eles querem manter, na Câmara, o debate monotemático sobre a crise. “A principal pauta é a crise. Todos os outros assuntos, como reforma tributária, estão em segundo plano”, afirmou Coruja. Nesse rol, nem a proposta de emenda constitucional que altera o rito de tramitação das MPs é prioritária.

O líder do governo na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS), ironizou os opositores. “O José Aníbal quer paralisar o Congresso Nacional em torno da crise. Não quer votar mais nada, nem a expansão das universidades”, disse o petista, citando o projeto de lei que cria 8,4 mil cargos ao Ministério da Educação, a maioria para beneficiar universidades federais. “Os tucanos gostam dessa visão de combater a crise cortando gasto, diminuir o estado. Queremos intensificar o papel anticíclico das medidas para limitar os efeitos da crise”, disse Fontana.

Querendo ou não, essa é a primeira vez que a oposição conseguiu apresentar um discurso diferente e não se mostrar perdida no debate com o governo, como ficou evidente na eleição de 2006, quando Lula disputou com Geraldo Alckmin (PSDB). Naquele momento, os tucanos ficaram na defensiva e não conseguiram se desvencilhar da pecha de “privatistas”. Agora, pelo menos, amplificam as idéias que defendiam quando eram governo.

PT discute antecipar lançamento de Dilma

Luiza Damé
DEU EM O GLOBO

Berzoini diz que podem surgir outros nomes

BRASÍLIA. Reunido ontem-ontem durante todo o dia, o Diretório Nacional do PT começou a discutir a oportunidade de antecipar o lançamento da candidatura da chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, à sucessão presidencial. Embora dirigentes do partido tenham defendido a necessidade de anunciar logo a candidatura de Dilma, o presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini (SP), ponderou que a legenda não pode impedir o lançamento de outros nomes:

- É natural que o debate seja feito. O nome mais óbvio é o da ministra Dilma. É o nome do presidente Lula; tem uma boa relação com o PT; tem postura, compromisso com o governo, compromisso com o PT e disponibilidade para o debate. Ninguém é contra a candidatura da ministra, mas não podemos democraticamente excluir outra candidatura.

O PT decidiu manter as eleições internas - para a escolha das novas direções nacional, estaduais e municipais do partido - em 22 de novembro de 2009, numa vitória do grupo de Berzoini. Setores do partido defendiam a antecipação do Processo de Eleição Direta (PED). Um grupo menor pregou o adiamento para 2011, para não haver coincidência com o debate da sucessão de Lula. Oficialmente, o candidato do partido será decidido apenas no congresso. Também foi convocado o 4º Congresso Nacional do PT para fevereiro de 2010.

O líder do governo na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS), é um dos que defendem que o PT deve decidir o mais rapidamente possível seu candidato para facilitar as negociações com os aliados.

- Para o PT dialogar com seus aliados, é importante definir sua candidatura. Nosso adversário está 99% definido - disse Fontana, citando o governador de São Paulo, José Serra, potencial candidato do PSDB.

Para Fontana, aliado de Dilma, a sucessão, está "na boca do povo" e os militantes petistas cobram uma definição, já que esta será a primeira eleição presidencial que Lula não disputará:

- O PT tem que acelerar (a decisão), sem se afobar.

O partido analisou o resultado das eleições municipais e concluiu que é preciso se reaproximar da classe média - eleitorado tradicional do PT, que se afastou do partido em cidades como Porto Alegre e São Paulo.

O realismo de José Dirceu


Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


O PT deve ter consciência de que a sucessão começou e a legenda hoje, em qualquer cenário, luta para chegar ao segundo turno

Ninguém ganha eleição de véspera, por maior que seja o favoritismo. O governador paulista José Serra (PSDB-SP) sabe disso. Mantém a liderança nas pesquisas e tem o fascínio de quem já exerce a expectativa do poder, mas a eleição está longe ainda e muita água correrá por baixo da ponte. É melhor ter cautela com o “já ganhou”.

Os tucanos

Serra é o primeiro na fila de candidatos ao Palácio do Planalto. Perdeu a eleição para Lula em 2002 e reconstrói, pedra por pedra, o caminho rumo à Praça dos Três Poderes. Primeiro como prefeito de São Paulo, depois como governador paulista. Foi o grande vitorioso nas eleições passadas, quando atropelou o candidato tucano Geraldo Alckmin, com quem dividia a liderança do PSDB, e conseguiu viabilizar a reeleição do prefeito Gilberto Kassab, consolidando sua aliança com o DEM. Agora, se finge de morto e tenta construir pontes junto ao presidente Lula, como nessa operação de venda da Nossa Caixa para o Banco do Brasil. Sinaliza que não pretende fazer um governo de ajuste de contas com os petistas como gostariam tucanos e alguns de seus aliados. Economista, o perfil de Serra parece talhado para comandar o país numa situação de crise econômica mundial.

O problema de Serra se chama Aécio Neves, o governador mineiro que encerra a gestão com altos índices de popularidade. A vitória do prefeito Márcio Lacerda (PSB) em Belo Horizonte, graças ao apoio de Aécio e do prefeito Fernando Pimentel, aponta uma política de alianças de sinal trocado para o PSDB. Aécio propõe uma reaproximação entre tucanos e petistas numa espécie de ponto futuro, no qual faria um governo “pós-Lula”. Aécio encarna o sonho da elite mineira de voltar ao centro do poder político, frustrado duas vezes com as mortes de Juscelino Kubitschek, num desastre de automóvel , ainda nos tempos da ditadura militar; e de Tancredo Neves, avô do governador mineiro, que foi eleito no colégio eleitoral que pôs um ponto final ao regime autoritário e faleceu antes da posse. O governador de Minas é um candidato viável eleitoralmente, mas sem legenda para concorrer. Tem que escolher entre sair do PSDB ou desistir da candidatura à Presidência em 2010.

Os petistas

Outro pólo da sucessão de 2010 é o PT, que tem o poder mas não dispõe de um candidato competitivo, nem aceita apoiar um aliado. A candidatura da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, inventada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, até agora não decolou. Entre os aliados do governo no Congresso, a avaliação é a de que Dilma é uma candidata para perder. Com o apoio de Lula, porém, ela tem plenas condições de consolidar sua candidatura no PT. Isso ocorre porque a ex-ministra do Turismo Marta Suplicy foi derrotada nas eleições para a prefeitura de São Paulo. O ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci (PT-SP) também está fora do jogo por causa do processo no qual é acusado de violar o sigilo bancário de um caseiro. Para as lideranças petistas, principalmente paulistas, ambos seriam melhor opção do que Dilma, cujo carro-chefe de campanha andará mais devagar por causa da crise econômica mundial: o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

As outras alternativas são improváveis devido à cultura petista. A primeira seria mudar radicalmente o jogo e investir na candidatura do ex-ministro da Integração Nacional Ciro Gomes (PSB), que se mantém como um nome competitivo eleitoralmente, mas está cada vez mais isolado na base governista e nunca foi aceito pelo PT. A segunda, buscar uma aproximação com Aécio Neves, nos termos propostos pelo prefeito Fernando Pimentel, de Belo Horizonte. Quando a cúpula do PMDB investe na filiação de Aécio, como fizeram o presidente da legenda, deputado Michel Temer (PMDB-SP), e o líder da bancada na Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), sonha com o melhor dos mundos: manter a legenda no governo durante a campanha de 2010, consolidar a aliança com o PT e indicar o candidato a sucessor de Lula. O problema é que ninguém confia no PMDB, nem mesmo Aécio.

Vítima de suas idiossincrasias e longe do poder, o ex-deputado cassado José Dirceu parecer ser o primeiro líder petista a cair na real. Para ele, o PT deve ter consciência de que a sucessão começou e a legenda hoje, em qualquer cenário, luta para chegar ao segundo turno. “Esse já é o quadro real — um cenário com quatro candidaturas ao Palácio do Planalto: a do PT, provavelmente a ministra-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Dilma Rousseff; a do PMDB, Aécio Neves; a do PSDB, José Serra; e, por fim, a do PSB, o deputado Ciro Gomes (CE). Sem falar na hipótese de uma chapa tucana Serra-Aécio, com um candidato do DEM a governador de São Paulo. Há, ainda, a possibilidade real de uma aliança Aécio-PSB com o deputado Ciro Gomes de candidato a vice-presidente”, prevê Dirceu em seu blog.

O mundo em festa


Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Irrelevante determinar quem rotulou o século 20 como o Século Americano, muito menos sua exata duração. O que importa é a inclusão da jornada que se encerrou na madrugada de 5 de Novembro de 2008 como uma das horas estelares da história da humanidade.

A revolução pelo voto que elegeu Barack Hussein Obama como primeiro presidente negro dos EUA não é um capítulo exclusivo da história americana. É a materialização de uma longa luta contra a tirania cujo início pode remontar a Platão e confunde-se com a própria história da civilização ocidental.

Instrumentado pelo eleitor americano este foi um fenômeno mundial, primeira conquista política da era da globalização até agora circunscrita à esfera econômica. A explosão de alegria foi cósmica, vibraram (e certamente ainda vibram) todos os discriminados, todos os marginalizados, todos os silenciados e todos aqueles que embora autorizados a comparecer às urnas sabem que as suas vontades e seus votos são invariavelmente manipulados e pervertidos.

Doravante tudo será possível, todos os sonhos de mudança estão autorizados, todas as esperanças passam a ser tangíveis -- desde que exibidas e transcorridas no território da democracia genuína. Foi sepultada a multissecular mentira de que os fins justificam os meios, desmascarada a grande balela de que alguns iluminados têm o poder de falar por todos.

Gigantescas as dificuldades aguardam Barack Hussein Obama. As expectativas que criou e continua a produzir incessantemente levarão muito tempo para serem atendidas. Ele acaba de conquistar o emprego mais difícil do mercado de trabalho mundial. Seus primeiros cem ou mil dias podem ser decepcionantes e até amargos. Os demônios e fantasmas soltos há tanto tempo são resistentes, impregnaram profundamente nossa forma de viver, não basta controlá-los apenas, será preciso rever o funcionamento deste rolo compressor barulhento que retirou do homem moderno a sua ferramenta mais preciosa: a capacidade de cogitar, escolher.

Os "realistas" já começaram a cobrar, cansaram-se do simbolismo e da retórica, querem medidas concretas, soluções instantâneas, bolsas em disparada e mercados novamente excitados. No Brasil já há quem diga que se a vitória de Obama não se converter imediatamente no fim dos subsídios agrícolas (sobretudo aos produtores de etanol), ela será decorativa, inútil.

Besteira: esta nova fase da revolução americana precisa ser acompanhada por revoluções regionais, espontâneas, concomitantes, complementares, sobretudo em paragens onde a demagogia impede verdadeiras mudanças e inovações.

O simbolismo e a retórica sequer completaram uma semana, ainda têm muito a oferecer, o seu potencial de convocação e mobilização está praticamente intocado. O discurso em que John McCain admitiu a derrota - peça política da maior importância - ainda não foi devidamente examinado, digerido e apreendido. Nele embute-se um dos conceitos basilares do processo democrático: não há vencidos, todos participam, todos são vencedores. Por mais pesado que tenha sido o embate.

A era dos extremismos (que na realidade é a era dos revanchismos) só poderá ser encerrada quando tornar-se cristalina e palpável a plataforma pós-racial, pós-ideológica e pós-fanática que escancarou as portas da Casa Branca a um candidato negro. É possível que estejamos fabricando simultaneamente um novo Renascimento, um novo humanismo, um novo iluminismo e um novo romantismo, para isso é indispensável vivenciar, desfrutar e gozar todos os aspectos e desdobramentos de um momento tão grandioso e significativo.

Quando, em 8 de Maio de 1945, acabou a catástrofe européia, mal houve tempo para saudar a paz. A guerra fria já ensaiava os seus primeiros passos. Desta vez, é importante inebriar-se. Faz sentido perceber que tudo faz sentido, tem jeito, solução.

Este é um raro momento nos últimos 100 anos em que os niilistas estão cabisbaixos e acabrunhados. É preciso aproveitá-lo plenamente.

» Alberto Dines é jornalista

Erro de avaliação


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. O presidente eleito Barack Obama deve participar do jantar de encerramento da reunião do G-20 no próximo sábado, convocado pelo presidente George Bush para discutir a crise internacional. Essa reunião está sendo considerada pelo governo brasileiro como o primeiro passo para a ampliação do grupo decisório internacional que hoje é restrito ao G-8, formado pelos países desenvolvidos - Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Canadá - e mais a Rússia. Do grupo de nações emergentes convidadas para a reunião, formado por Brasil, Arábia Saudita, África do Sul, Argentina, Austrália, China, Coréia do Sul, Índia, Indonésia, México e Turquia, sairão os novos integrantes do fórum internacional ampliado que a crise econômica que assola o mundo está tornando inevitável.

Um passo também considerado mais provável hoje do que antes é a reformulação dos organismos multilaterais, como o FMI, o Banco Mundial e até mesmo o Conselho de Segurança da ONU.

O Brasil, que já contava com uma maior aceitação por parte do atual governo dos Estados Unidos para sua pretensão de ter um assento permanente no Conselho, terá que testar a tendência do futuro governo de Barack Obama.

Pelo menos em princípio, a futura administração será mais favorável à ampliação desses organismos internacionais, dentro de uma ótica multipolar que, na prática, já se impõe com a nova realidade de uma crise nascida dentro dos Estados Unidos e que se espalhou pelo mundo.

As questões diplomáticas mais delicadas, como a divisão geopolítica de poder, podem ter uma solução facilitada diante da necessidade de se obter avanços concretos em curto espaço de tempo.

O grupo formado por Brasil, Alemanha, Índia e Japão se coloca como a melhor alternativa de representatividade regional para o Conselho da ONU, acrescido do apoio dos países africanos, que teriam um representante na África do Sul.

Mas mesmo esse grupo é objeto de contestação de outros países: a China veta a entrada do Japão, o Paquistão não aceita a Índia, países europeus contestam a representatividade da Alemanha, o Egito quer ser o representante africano e, na própria região onde o Brasil é líder natural, Argentina e México não nos aceitam como representante automático.

Para reforçar a liderança regional de maneira inconteste, o Brasil precisaria, na ótica de observadores internacionais, impor-se na América do Sul, onde está sendo contestado cada vez mais por supostos aliados como Evo Morales, na Bolívia; Correa, no Equador; os Kirchner, na Argentina, e outros que tais, todos submetidos à influência ideológica e financeira de Hugo Chávez, da Venezuela.

O Brasil não estaria usando sua força política para controlar as tendências autoritárias desses líderes. Embora a diplomacia brasileira se recuse a aceitar esse tipo de crítica, há indicações de que setores da diplomacia americana entendem que Lula, defendendo a tese de que só se mantendo próximo pode negociar com esses países, na verdade está mesmo é cercado por governos autoritários, sem conseguir controlar a situação.

Evo Morales e Chávez, que estimulam o confronto permanente, inclusive com os Estados Unidos, seriam o contrário de Lula, conciliador e representante de uma esquerda moderna. O presidente eleito Barack Obama já definiu a Venezuela como um dos "estados bandidos", juntamente com o Irã, e o Brasil vai precisar se posicionar se quiser exercer um papel de destaque na mediação da futura administração americana com a América do Sul.

Lula, por sua vez, comentou em sua recente visita a Cuba que Obama mostrará a que realmente veio de acordo com a atitude que tomar em relação ao embargo econômico à ilha. E não foi por acaso que exortou o futuro presidente americano a acabar com o bloqueio econômico ao país do ditador Fidel.

Por enquanto, a posição brasileira tem sido a de defender a tese de que a América do Sul, diferentemente de outros continentes como África e Ásia, só tem governos eleitos democraticamente, embora haja diferenças de tensão, e alguns países sejam mais polarizados politicamente que outros.

Com relação à Venezuela, a posição do governo brasileiro nas conversas diplomáticas tem sido a de atribuir a tensão à oposição, que tentou tirar Chávez do poder através de um golpe.

A abordagem diplomática brasileira chega a ressaltar que mesmo nos Estados Unidos, exemplo de democracia, houve uma situação tão polarizada politicamente no século XIX que culminou em uma guerra civil.

A exclusão das minorias dos benefícios do desenvolvimento, os indígenas no caso da Bolívia, e a classe trabalhadora no Brasil, é que fez com que surgissem na região esses governos populares, na ótica da diplomacia brasileira.

Mas temos na América do Sul mecanismos de diálogo que previnem os conflitos armados, e os presidentes da região têm a capacidade hoje de conversar pessoalmente, muitas vezes em reuniões marcadas de improviso, para resolver conflitos.

A futura política do governo Obama para a América Latina pode assumir uma faceta menos belicosa no combate ao narcotráfico e ao terrorismo na Colômbia e no México, segundo informações de analistas próximos à nova administração. Substituindo as armas por incentivos econômicos para o desenvolvimento daqueles países, seria reduzida a tensão política na região.

Mas, ao assumir a tese de que a vitória de Obama tem o mesmo significado que a ascensão dos governos de esquerda na América Latina nos últimos anos, e, mais que isso, ao alimentar expectativas de que um governo de Obama terá tendências de esquerda, os governantes sul-americanos, inclusive Lula, podem estar cometendo um grave erro de avaliação política.