sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Em meio à deriva da democracia. Por Alberto Aggio*

FAP -Política Democrática, nº 59

Uma severa deriva democrática assola o mundo, o que coloca sérios questionamentos sobre a sustentação e permanência dos regimes democráticos, mesmo os mais consolidados. Se há décadas a questão democrática era fator essencial de legitimação do nexo entre liberdade, expansão dos direitos e desenvolvimento econômico, nos dias que correm tal legitimação parece não ser capaz de se sustentar como antes.

É um momento de claro sofrimento para a cultura política democrática. Simultaneamente avoluma-se a sensação de que o que dava sustentação à própria ideia de Ocidente – entendido como um valor universal produzido pela hegemonia democrática em contexto de avanço econômico – começa perigosamente a perder sua energia histórica. O que passou a acontecer depois do retorno ao poder de Donald Trump nos EUA espanta o mundo por se afastar intencionalmente dos valores que sustentavam a legitimação histórica da mais longeva democracia do Ocidente. 

Sob Trump, os EUA abandonam a função hegemônica que desempenharam na maior parte do século XX. Por outro lado, seu maior contendor, a China, instalou-se no cenário geopolítico mundial por meio de uma agressiva estratégia econômica, ultrapassando definitivamente as anteriores visões territorialistas. Expressão de uma autocracia política até o momento irremovível, a China se apresenta, cultural e politicamente, como um polo questionador do nexo que, até agora, deu sustentação às democracias ocidentais.

Uma mirada histórica, mesmo que superficial, indica uma alteração substancial no panorama mundial. Desde o final da década de 1980, a democracia era um fim a ser almejado e conquistado – um valor universal, como se dizia à época. Nos dias que correm, a extrema direita foi capaz de hegemonizar o centro do espaço político, reduzindo a democracia a um simples “meio” de convivência. No discurso da extrema direita, caso os Estados democráticos permaneçam acionando cada vez mais mecanismos regulatórios, globais ou mesmo nacionais, visando civilizar a vida humana sobre o planeta, a democracia simplesmente pode ser descartada, com maior ou menor violência, com maior ou menor velocidade. É a isso que, nos textos dos mais conceituados cientistas políticos, se qualifica como processos de “erosão democrática”. 

O Brasil sempre buscou um lugar no mundo conectando-se ao projeto moderno de transformações que o Ocidente assumiu a cada momento da História, como foi nossa adesão/tradução ao liberalismo, ao industrialismo e, por último, ao americanismo. A adesão a esses “modelos” nunca foi assumida como importação passiva ou mimetismo, importando disputas políticas reais entre as elites que buscavam impor sua direção à reestruturação das estratégias de desenvolvimento do país. 

 Está claro que as elites políticas brasileiras perderam o chão. A sensação de deriva da hora presente assume traços dramáticos como os que vemos nos embates que a atual polarização política carrega consigo e que acabou escalando com as iniciativas agressivas de Trump contra a democracia brasileira. Mas o problema é mais grave e enseja riscos significativos, especialmente pelo fato de que nem os EUA de Trump nem a China de Xi Jimping deixam de expressar uma sedutora adesão a um redivivo nacionalismo que há poucos anos era visto como uma opção anacrônica, desprovida de horizonte histórico.

Tudo parece estar suspenso no ar porque nossas elites políticas não possuem ou não se associam mais a nenhum projeto que esteja positivamente vinculado ao que há de mais avançado no mundo. O projeto globalista de FHC foi exitoso em seu tempo, mas ficou para trás em função da mudança do cenário mundial, especialmente em virtude da emergência da China ao impactar os termos da globalização em curso no final do século XX. Lula e o PT combateram externa e internamente esse projeto, deslocando-se para a contraposição entre o Sul “pobre” e o Norte “rico”. Estabeleceu essa clivagem sustentando uma abordagem puramente mercantil das relações internacionais em meio a uma época que, como nunca antes, demanda unificação do gênero humano e a paz. Como é sabido, essa estratégia redundou nos BRICS que, a despeito de êxitos parciais, articula países que buscam estruturar sua sustentação autônoma, mas que, pontificados por Rússia e China – duas autocracias modelares – não têm capacidade de formular uma visão cosmopolita que contemple o Brasil como civiltà democrática. 

Diante desse cenário mundial, resta-nos poucas alternativas. Uma política de defesa da democracia, com postura e tom equilibrados, supõe tanto a exclusão de alinhamentos automáticos quanto protagonismos açodados. Com autonomia, a Nação demanda das nossas elites políticas um novo projeto articulado em três eixos fundamentais: uma 

democracia política, social e culturalmente legitimada, uma economia expansiva de mercado, pensada como expressão de um “capitalismo popular” de médios e pequenos empreendedores, e um cosmopolitismo progressista sinalizador do nosso lugar no mundo, ou seja, de um povo inventivo e aberto a todo gênero humano.

O filosofo italiano Marcello Mustè, discutindo a relação entre cosmopolitismo e nacionalismo, num artigo publicado recentemente na revista Política Democrática n. 57  afirmou que há uma tarefa preliminar para os que buscam compreender e transformar o mundo em que vivemos. Para Mustè, é preciso “elaborar uma ‘leitura’ da ordem mundial, ‘traduzi-la’ na linguagem própria da sua nação e contribuir ativamente para a formação de uma ordem internacional de qualidade superior”. A proposição não se reduz ao nacional uma vez que nessa perspectiva, o nacionalismo não é mais do que “uma política que se funda unicamente na especificidade de uma situação nacional”. 

No interior do argumento que estamos aqui desenvolvendo, mobilizar e instrumentalizar o nacionalismo (“o Brasil é dos brasileiros”), almejando êxito eleitoral futuro, por mais justo que seja como peça de resistência a Trump, é a evidência de que não se compreendeu que a questão democrática é o centro da luta política global, não apenas no Brasil. 

Ganhar a próxima eleição presidencial somente terá função histórica de resistência, elevando o Brasil como protagonista de uma nova ordem global, com a afirmação da centralidade da questão democrática. Encerrar-se num discurso de cunho nacionalista não nos livrará do problema e apenas ensejará uma efêmera ilusão, entorpecida pelos números que possivelmente sairão das urnas – na melhor das hipóteses.

*Graduado, mestre e doutor em História Social pela FFLCH-USP, tornou-se Livre-Docente em História da América em 1999. Desde 2009, é Professor Titular da UNESP, campus de Franca. Realizou pós-doutorado na Universidade de Valência (Espanha) e foi professor visitante em Santiago do Chile, Santiago de Compostela e Roma3 (Itália). Atua nas áreas de História Política e História da América Latina contemporânea.

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