Valor Econômico
Relator se fia na excepcionalidade dos fatos
e Dino, na normalidade do julgamento
O primeiro dia de pronunciamentos dos
ministros no julgamento da trama golpista foi do clímax de um voto
didático e indignado do ministro relator, que se firmou na excepcionalidade
do que estava em jogo naquele tribunal e no país, à bola colocada no chão pelo
ministro Flávio Dino,
o mais próximo de Alexandre
de Moraes, que registrou um julgamento baseado nas regras
vigentes e nas provas nos autos que não é excepcional nem diferente daqueles
que ocorrem país afora. Excepcionais são pressões e ameaças que não seriam
objeto do julgamento.
Seja porque pretenda se insurgir contra o movimento em curso no Congresso para anular as decisões da Corte com uma anistia, seja porque queira circunscrever os poderes do Judiciário (“o direito penal não é o caminho idôneo para resolver todos os problemas da humanidade”), Dino surpreendeu num voto que, com um quarto da duração daquele do relator, pareceu mostrar que Moraes será respaldado num julgamento que é crucial, mas não se pode pretender tirar dele as respostas para o conflito político do país.
Entre um e outro, a Embaixada dos EUA no
Brasil reproduziu nota da Casa Branca com “medidas cabíveis” contra o relator,
a porta-voz, Karoline Leavitt, disse haver disposição do presidente Donald
Trump em usar seu poderio “militar e econômico” contra qualquer país que
atentar contra a liberdade de expressão e um incêndio, que levantou uma fumaça
preta no horizonte da capital federal, queimou 10 banheiros químicos a menos de
dois quilômetros do STF. Nenhum dos fatos alterou a rotina do julgamento que
será retomado nesta quarta, às 9h.
Ao longo de cinco horas, Moraes respaldou
todas as imputações da Procuradoria-Geral da República no âmbito da ação penal
2668 acrescentando a liderança da organização criminosa ao ex-presidente Jair
Bolsonaro. Em seu voto, o ministro delineou uma linha de continuidade entre 13
atos preparatórios e o 8 de janeiro de 2023 para desmontar a tese da defesa que
busca dissociar os réus da invasão dos três Poderes. Entre os atos, exibidos em
slides, num esforço de didatismo, estão a “live” de julho de 2021, a reunião
dos embaixadores, a camuflagem do relatório das Forças Armadas sobre as
eleições, a blitz da Polícia Rodoviária Federal nas eleições, a bomba no
aeroporto de Brasília, o plano “punhal verde-amarelo” e a reunião com
comandantes militares.
Não economizou na indignação ao comentar as
questões preliminares apresentadas pela defesa. Rejeitou a condição de “juiz
samambaia”, que configuraria a conduta preconizada pelos advogados que o
criticaram por fazer mais perguntas do que o PGR, Paulo Gonet, aos réus e
testemunhas e disse que “só o desconhecimento ou a má-fé” podem ter levado à
interpretação (dos advogados e do ministro Luiz Fux) de que houve oito delações
e não, como disse, oito depoimentos da mesma delação.
O tom de indignação de Moraes também ficou
patente ao reportar as anotações de Alexandre Ramagem, em questionamento sobre
as urnas eletrônicas, dirigidas ao ex-presidente: “Não é a mensagem de um
delinquente do PCC para outro. Mas de um diretor da Abin para o então
presidente da República”. E, finalmente, foi sob a mesma toada que descreveu a
reunião com embaixadores, em julho de 2021, com questionamento da lisura das
urnas eletrônicas, como “um dos momentos de maior entreguismo nacional”.
A rejeição das liminares levou o ministro
Luiz Fux a fazer uma questão de ordem aos seis minutos do voto do relator, no
primeiro dos “atos preparatórios” do previsível embate. Ele ressaltou que se
debruçará sobre as preliminares rejeitadas pelo relator, observação que pareceu
desnecessárias aos operadores do direito senão para reiterar sua discordância.
Depois de Dino pedir um aparte para que o relator pudesse beber água, Fux
também o aparteou para lembrar que haviam combinado interditar as interrupções.
O presidente da Primeira Turma, Cristiano Zanin, rebateu: “O relator permitiu o
aparte”. Fux respondeu: “Mas eu não permitirei”. Dino, por fim, concluiu:
“Tranquilizo o senhor de que não pedirei aparte a vossa excelência, pode dormir
em paz”.
O clima tenso entre Moraes e Fux prosseguiu
com a reprodução, pelo relator, da ameaça de Jair Bolsonaro ao ministro que, à
época, ocupava a presidência do STF: “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou
esse Poder pode sofrer aquilo que não queremos”. Ao mencionar o mesmo episódio,
Dino usou outro tom. Perguntou se Fux, ao seu lado, havia dormido, “ou melhor,
ficado acordado”, na noite do dia 7 de setembro de 2021, quando Brasília foi
ameaçada por barricadas. Valeu-se do episódio para rebater a tese da defesa de
que não houve violência ou grave ameaça, condições para o crime de abolição do
Estado democrático de direito e golpe de Estado de que são acusados os réus.
“Não há registro de manifestante que tenha rompido cerco policial com flores.
Foi com confrontação física que tentaram chegar à vizinhança do ministro Fux,
insone, no STF”.
Dino respaldou Moraes na defesa de que os
dois crimes não são excludentes e as penas devem ser acumuladas, defendeu-o nas
preliminares sobre a ausência de monopólio do Ministério Público na
investigação (“Não é por que o juiz faz perguntas que o sistema acusatório está
sendo violado”, disse) e negou que tenha havido delações que se anularam, mas
divergiu do relator em relação a três réus: o ex-diretor da Abin, Alexandre
Ramagem, o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e o
ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno.
Dino os enquadrou na mesma categoria: sua
participação nos atos golpistas aconteceu mas não no mesmo grau de relevância
dos demais, seja por que tenham estado distantes dos atos do segundo semestre,
seja porque, no caso de Paulo Sérgio, tenha havido tentativa de se demover o
ex-presidente. Apesar de sinalizar a suavização de suas penas, Dino não amaciou
em relação à dosimetria como um todo. Citou as penas para crimes contra o
patrimônio, que ficam aquém — mas não muito — daquelas dos crimes contra o
Estado de direito, para dizer que o legislador foi razoável porque não existe
propriedade sem democracia.
Dino fez uma brincadeira sobre o movimento
antigetulista de 1932, que Moraes, como os paulistas, chama de “revolução”, deu
uma pincelada no apelo religioso dos golpistas (“não acamparam na porta das
igrejas, mas dos quartéis”) e foi do julgamento do mensalão à recusa ao habeas
corpus ao atual presidente da República para dizer que não se deve acatar o
árbitro apenas quando ele marca a favor de seu time. Votou para proteger a
democracia. Disse que não estava ali para dar recado, mas deu.
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