quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Moraes incita indignação e Dino coloca a bola no chão. Por Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Relator se fia na excepcionalidade dos fatos e Dino, na normalidade do julgamento

O primeiro dia de pronunciamentos dos ministros no julgamento da trama golpista foi do clímax de um voto didático e indignado do ministro relator, que se firmou na excepcionalidade do que estava em jogo naquele tribunal e no país, à bola colocada no chão pelo ministro Flávio Dino, o mais próximo de Alexandre de Moraes, que registrou um julgamento baseado nas regras vigentes e nas provas nos autos que não é excepcional nem diferente daqueles que ocorrem país afora. Excepcionais são pressões e ameaças que não seriam objeto do julgamento.

Seja porque pretenda se insurgir contra o movimento em curso no Congresso para anular as decisões da Corte com uma anistia, seja porque queira circunscrever os poderes do Judiciário (“o direito penal não é o caminho idôneo para resolver todos os problemas da humanidade”), Dino surpreendeu num voto que, com um quarto da duração daquele do relator, pareceu mostrar que Moraes será respaldado num julgamento que é crucial, mas não se pode pretender tirar dele as respostas para o conflito político do país.

Entre um e outro, a Embaixada dos EUA no Brasil reproduziu nota da Casa Branca com “medidas cabíveis” contra o relator, a porta-voz, Karoline Leavitt, disse haver disposição do presidente Donald Trump em usar seu poderio “militar e econômico” contra qualquer país que atentar contra a liberdade de expressão e um incêndio, que levantou uma fumaça preta no horizonte da capital federal, queimou 10 banheiros químicos a menos de dois quilômetros do STF. Nenhum dos fatos alterou a rotina do julgamento que será retomado nesta quarta, às 9h.

Ao longo de cinco horas, Moraes respaldou todas as imputações da Procuradoria-Geral da República no âmbito da ação penal 2668 acrescentando a liderança da organização criminosa ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Em seu voto, o ministro delineou uma linha de continuidade entre 13 atos preparatórios e o 8 de janeiro de 2023 para desmontar a tese da defesa que busca dissociar os réus da invasão dos três Poderes. Entre os atos, exibidos em slides, num esforço de didatismo, estão a “live” de julho de 2021, a reunião dos embaixadores, a camuflagem do relatório das Forças Armadas sobre as eleições, a blitz da Polícia Rodoviária Federal nas eleições, a bomba no aeroporto de Brasília, o plano “punhal verde-amarelo” e a reunião com comandantes militares.

Não economizou na indignação ao comentar as questões preliminares apresentadas pela defesa. Rejeitou a condição de “juiz samambaia”, que configuraria a conduta preconizada pelos advogados que o criticaram por fazer mais perguntas do que o PGR, Paulo Gonet, aos réus e testemunhas e disse que “só o desconhecimento ou a má-fé” podem ter levado à interpretação (dos advogados e do ministro Luiz Fux) de que houve oito delações e não, como disse, oito depoimentos da mesma delação.

O tom de indignação de Moraes também ficou patente ao reportar as anotações de Alexandre Ramagem, em questionamento sobre as urnas eletrônicas, dirigidas ao ex-presidente: “Não é a mensagem de um delinquente do PCC para outro. Mas de um diretor da Abin para o então presidente da República”. E, finalmente, foi sob a mesma toada que descreveu a reunião com embaixadores, em julho de 2021, com questionamento da lisura das urnas eletrônicas, como “um dos momentos de maior entreguismo nacional”.

A rejeição das liminares levou o ministro Luiz Fux a fazer uma questão de ordem aos seis minutos do voto do relator, no primeiro dos “atos preparatórios” do previsível embate. Ele ressaltou que se debruçará sobre as preliminares rejeitadas pelo relator, observação que pareceu desnecessárias aos operadores do direito senão para reiterar sua discordância. Depois de Dino pedir um aparte para que o relator pudesse beber água, Fux também o aparteou para lembrar que haviam combinado interditar as interrupções. O presidente da Primeira Turma, Cristiano Zanin, rebateu: “O relator permitiu o aparte”. Fux respondeu: “Mas eu não permitirei”. Dino, por fim, concluiu: “Tranquilizo o senhor de que não pedirei aparte a vossa excelência, pode dormir em paz”.

O clima tenso entre Moraes e Fux prosseguiu com a reprodução, pelo relator, da ameaça de Jair Bolsonaro ao ministro que, à época, ocupava a presidência do STF: “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder pode sofrer aquilo que não queremos”. Ao mencionar o mesmo episódio, Dino usou outro tom. Perguntou se Fux, ao seu lado, havia dormido, “ou melhor, ficado acordado”, na noite do dia 7 de setembro de 2021, quando Brasília foi ameaçada por barricadas. Valeu-se do episódio para rebater a tese da defesa de que não houve violência ou grave ameaça, condições para o crime de abolição do Estado democrático de direito e golpe de Estado de que são acusados os réus. “Não há registro de manifestante que tenha rompido cerco policial com flores. Foi com confrontação física que tentaram chegar à vizinhança do ministro Fux, insone, no STF”.

Dino respaldou Moraes na defesa de que os dois crimes não são excludentes e as penas devem ser acumuladas, defendeu-o nas preliminares sobre a ausência de monopólio do Ministério Público na investigação (“Não é por que o juiz faz perguntas que o sistema acusatório está sendo violado”, disse) e negou que tenha havido delações que se anularam, mas divergiu do relator em relação a três réus: o ex-diretor da Abin, Alexandre Ramagem, o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno.

Dino os enquadrou na mesma categoria: sua participação nos atos golpistas aconteceu mas não no mesmo grau de relevância dos demais, seja por que tenham estado distantes dos atos do segundo semestre, seja porque, no caso de Paulo Sérgio, tenha havido tentativa de se demover o ex-presidente. Apesar de sinalizar a suavização de suas penas, Dino não amaciou em relação à dosimetria como um todo. Citou as penas para crimes contra o patrimônio, que ficam aquém — mas não muito — daquelas dos crimes contra o Estado de direito, para dizer que o legislador foi razoável porque não existe propriedade sem democracia.

Dino fez uma brincadeira sobre o movimento antigetulista de 1932, que Moraes, como os paulistas, chama de “revolução”, deu uma pincelada no apelo religioso dos golpistas (“não acamparam na porta das igrejas, mas dos quartéis”) e foi do julgamento do mensalão à recusa ao habeas corpus ao atual presidente da República para dizer que não se deve acatar o árbitro apenas quando ele marca a favor de seu time. Votou para proteger a democracia. Disse que não estava ali para dar recado, mas deu.

Ministro Flávio Dino — Foto: Gustavo Moreno/STF

 

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