Folha de S. Paulo
Julgamento inédito cria mártir político para
radicais, mas de utilidade discutível no médio prazo
Para surpresa de ninguém, Cármen Lúcia selou
o destino de Jair
Bolsonaro (PL) no julgamento da trama golpista, tornando o
capitão reformado do Exército o
primeiro ex-presidente condenado por uma tentativa de manter-se
no poder.
Como isso era dado como certo e a despeito
das esperanças ventiladas pelo bolsonarismo com o voto do
ministro Luiz Fux absolvendo o líder na véspera, os olhos se
voltam para a eleição presidencial de 2026.
Bolsonaro estaria fora do pleito de qualquer
forma por estar inelegível, mas livre iria influenciar os rumos da oposição na
disputa presumida com o presidente Lula (PT).
Após passada a fase de recursos, tudo indica que Bolsonaro deverá ficar fora de circulação por muito tempo. Se é verdade que no Brasil o crime é comandado de dentro da cadeia, a coisa é um pouco diversa na política.
A comparação com os 580
dias de Lula no xadrez da Polícia Federal é inepta, pois o
petista é voz única no seu campo político. Suas ordens expressas aos emissários
do partido durante a prisão foram cumpridas integralmente.
Não se espera a mesma ordem unida nas hostes
que orbitaram Bolsonaro durante seu governo, particularmente o centrão que o salvou
de um impeachment justamente depois da cena mostrada no telão do Supremo
por Alexandre de
Moraes, a conclamação
golpista do 7 de Setembro em 2021.
É típico de novos regimes usar efígies de
seus fundadores caídos. Stálin levou isso ao paroxismo, sendo até enterrado ao
lado do pai da União Soviética, Lênin —depois viria a ser rebaixado, ganhando
um local de honra, mas mais modesto, na muralha do Kremlin.
Agora, Bolsonaro é essa figura. O centrão já
abriu suas cartas, endossando a unção de Tarcísio de
Freitas (Republicanos-SP) como o nome da direita para 2026.
Atores mais comedidos, como o PSD de Gilberto Kassab e o multifacetado MDB,
apenas observam.
A questão é a dificuldade do emprego do ativo
eleitoral que ainda é Bolsonaro. Mártir para os seguidores mais extremos, o
ex-presidente já vê a luta por seu espólio começando em casa, no caso nos Estados
Unidos, com a cruzada do filho Eduardo para punir o Brasil pela
condenação do pai.
Os Valdemares
do centrão contam com a implosão desse campo, dado o
voluntarismo e a inabilidade que lhes são inerentes. Só que esse erro foi
cometido em 2021, quando Ciro Nogueira (PP) chegou à Casa
Civil com ares de
primeiro-ministro, só para poder se considerar sortudo de não
ter sido envolvido na trama que levará Bolsonaro à cadeia.
A toxicidade
de Bolsonaro é notória, e cada voto que o apoio explícito dele
dá a um candidato é acompanhado de uma rejeição automática nas franjas
centristas que levaram Lula de volta à Presidência em 2022.
É uma equação de difícil trato, que se adensa com a
recente bolsonarização mais explícita de Tarcísio. Se ele foi
sincero no ataque a Moraes e no apoio à anistia, pagará um preço. Se fingiu,
igualmente.
Cabe então observar como navegam os outros
barcos na armada da direita, particularmente a novidade Ratinho Jr.
(PSD-PR), que afastou-se taticamente das embarcações mais histriônicas do
grupo.
Se é lícito crer que no Brasil até o passado
é incerto, assertiva que teria sido feita por Pedro Malan e cujo exemplo
acabado é a volta de Lula ao poder, o caminho para Bolsonaro está bastante
bloqueado, ao menos no médio prazo.
Como mostrou o Datafolha enquanto Cármen lia
seu voto e grelhava a atuação de Fux, Lula vem se
recuperando lentamente do tombo de aprovação sofrido no começo
do ano, aparentemente com a mãozinha da campanha Eduardo-Trump contra o país e
Moraes.
Com a faca e o queijo fiscais na mão, é certo
que tem tudo para crescer até o pleito, que é bom lembrar que está bem
distante.
Assim, restará saber o que a história reserva
ao primeiro presidente condenado por golpe: se ele seguirá vivo como um ímã
eleitoral ou se irá tornar-se um fardo para aqueles dispostos a carregar seu
estandarte. No contexto de hoje, a segunda hipótese parece prevalente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário