Folha de S. Paulo
No processo de Bolsonaro, o Brasil que
sentencia os golpistas diz que nem tudo é objeto de negociação
Jair Bolsonaro não é Josef K., por mais que Trump e a ultradireita brasileira tentem exibi-lo como o personagem de Kafka esmagado por um Estado judicial tão perverso quanto inescrutável. O processo de Bolsonaro e da sua quadrilha de conspiradores merece o "P" maiúsculo por outra razão: o adjetivo "histórico", hoje desmoralizado por uso excessivo, aplica-se legitimamente a ele. O Brasil que sentencia os golpistas está dizendo que nem tudo é objeto de negociação.
Os EUA fugiram ao dever de condenar Trump
pela sua tentativa de golpe de Estado. O fruto disso não é o retorno do
golpista à Casa Branca, algo que deriva das políticas essencialmente da
obsessão identitária do Partido Democrata, mas a erosão geral das instituições
que sustentam a democracia americana. O Brasil segue caminho diverso,
submetendo o ex-presidente e uma malta de altos oficiais militares ao império
da lei. Nesse passo, rompe-se a tradição da conciliação por cima que, ao longo
da República, premiou tantos inimigos da ordem democrática.
Nosso Processo é uma obra imperfeita. Num
tribunal mais cuidadoso com o decoro legal, juízes não pronunciariam discurso
políticos retumbantes que antecipam seus votos. Um tribunal menos ativista
ajustaria seu regimento interno às circunstâncias históricas, julgando os réus
no pleno de 11 ministros. Um tribunal mais atento ao futuro constrangeria o
relator a se declarar impedido, pois ninguém deve ocupar simultaneamente os
lugares de magistrado e vítima potencial.
Nenhum dos deslizes do Processo autoriza a utilização
do adjetivo "kafkiano". Os réus beneficiaram-se de amplo direito à
defesa. São múltiplas, incontestáveis, provas de que foram deflagrados atos
preparatórios para um golpe destinado a anular o resultado das eleições e
abolir o Estado de Direito. Infelizmente, porém, cada um desses deslizes
oferecerá pretextos para operações judiciais e políticas destinadas a anular as
sentenças.
O chefe golpista nada aprendeu, como
evidencia sua conspiração com uma potência estrangeira para interromper o
Processo. O novo crime, que causa danos econômicos a toda a sociedade
brasileira, tende a produzir uma involuntária consequência positiva. Antes da
interferência imperial de Trump, cogitava-se no STF poupar
Bolsonaro da prisão em regime fechado, condenando-o a uma mansão com vista para
o lago. Depois da sanção tarifária e da aplicação da Lei Magnitsky, tudo indica
que desmoronou o ensaio de subordinar a lei às conveniências dos "homens
bons".
O Brasil nunca teve a coragem de julgar os
responsáveis pelas violações de direitos humanos durante a ditadura
militar, mas agora escolhe rejeitar a via dos acertos espúrios entre
elites. O resultado mais relevante do Processo será ensinar às Forças Armadas
que a política é território exclusivo dos cidadãos sem armas.
Os governadores da direita e o centrão
ensaiam firmar um intercâmbio com Bolsonaro. O ex-presidente apoiaria a candidatura
de Tarcísio de Freitas, em troca de futuro indulto presidencial. O pacto
indecente, que expõe a fragilidade do compromisso da direita com a democracia,
desvia a conclusão do Processo para a esfera política. Na prática, as sentenças
judiciais só serão confirmadas após as eleições presidenciais de 2026 – e
apenas na hipótese de derrota do governador paulista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário