domingo, 3 de janeiro de 2010

Reflexão do dia – Norberto Bobbio

“Criticar o sistema representativo da esquerda é muito difícil e também mais perigoso. Para quem acha que os homens são, em sua grande maioria, um rebanho ou manada e que não podem ser governados a não ser por um eleito do destino, como Napoleão, é muito fácil fazer anti-parlamentarismo. Mais difícil ainda para quem não quer jogar fora junto com a água suja do parlamento também o fetichismo tão delicado das liberdades civis e políticas”.


(Norberto Bobbio, no livro “O Marxismo e o Estado”, pág, 47 Edições Graal, Rio de Janeiro, 1979

Ferreira Gullar :: Esquerda, volver

DEU NA FOLHA DE S. PAULO / Ilustrada

A dificuldade de definir esquerda e direita é produto do avanço das ideias progressistas

O que é, hoje, ser de esquerda? Há algumas décadas, era ser contra o imperialismo americano, a favor da reforma agrária e de um governo socialista; para alguns, substituir a "ditadura" da burguesia pela ditadura do proletariado. Hoje, já não se fala em imperialismo americano e, com raras exceções, todo mundo é a favor da reforma agrária, que se tornou, como é no Brasil, programa de governo. O que é, então, ser de esquerda ou de direita hoje?

Acreditar em Deus já não é ser de direita, uma vez que há até padres que amaldiçoam o capitalismo e outros que abençoam o socialismo. Opor-se aos Estados Unidos é ser de esquerda, então o aiatolá Khomeini e o presidente Ahmadinejad, dirigentes de um regime teocrático, seriam de esquerda. Bush era de direita, claro, mas é possível afirmar que Obama, presidente da maior potência capitalista do planeta, é de esquerda?

E o presidente da Venezuela? Não há dúvida de que ele apoia o regime comunista cubano e que critica a três por dois os Estados Unidos, mas é para eles que vende a maior parte do petróleo que seu país produz. É verdade também que tem estatizado empresas e ameaçado os capitalistas venezuelanos. No entanto, no plano internacional, alguns de seus aliados mais importantes são aqueles mesmos aiatolás, devotos fanáticos tanto de Alá quanto do capital.De qualquer modo, à falta de melhor qualificação, pode-se dizer que Hugo Chávez é de esquerda, mas uma esquerda que, em vez de pregar a luta de classes entre a burguesia e o proletariado, explora as contradições entre os ricos e os pobres. Deve-se concluir que os programas assistencialistas, tipo o Bolsa Família, são revolucionários?

Esse deslocamento do conflito entre classes sociais é, aliás, um traço que define certa discutível esquerda latino-americana. O processo histórico mostra que, se a classe operária foi, no passado, a esperança dos revolucionários de esquerda para derrotar o capitalismo, hoje, serve como poder de barganha da elite sindical que, graças a ela, conquistou posições importantes no aparelho de Estado, tornando-se uma espécie de nova classe -os "neopelegos".

Esse fenômeno, no Brasil, alcançou sua plenitude com a ascensão do PT ao poder central do país, sob a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva -fenômeno que deve estar sendo estudado pelos cientistas políticos, enquanto eu me limito a registrá-lo, a partir do que observo no dia a dia.

A referida mudança mostrou-se claramente quando Lula, derrotado em três eleições seguidas para presidente da República, afirmou que, se fosse para perder de novo, não se candidataria mais. Até ali, ele encarnara o papel de líder operário radical, cujo único "programa" era acabar com a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas. Como o faria, nunca disse.

Aliás, é característica desse tipo de esquerda fazer crer ao povo que, como por milagre, sua simples chegada ao poder porá fim às desigualdades sociais, uma vez que elas seriam o resultado da deliberada exclusão com que os ricos (malvados, por natureza) castigam os pobres. Claro que eles sabem muito bem que elas são consequências do processo histórico, que encontram no capitalismo sua expressão atual. O desmonte do modo de produção capitalista na URSS, após a revolução de 1917, resultou em duas décadas de estagnação econômica e fome. É que, nesse terreno, não há milagres.

Lula, que jamais pretendeu fazer revolução, decidiu pôr a bola no chão e dizer a que veio.

Aderiu à política econômica de FHC, que dera certo, e prometeu respeitar as regras do jogo capitalista; assim, mesmo sem nenhum projeto para o país, ganhou as eleições.

Pouca gente acreditou que a mudança de Lula fosse para valer, mesmo quando ele escolheu para vice um empresário. Com o PT, surgira o novo pelego, que, disfarçado de revolucionário, igualou seu poder ao do empresariado e, finalmente, chegou à Presidência da República.

Mas o mito do operário redentor se manteve. Assim, Fernando Henrique Cardoso, ao passar a faixa presidencial a Lula, afirmou que se sentia orgulhoso de fazê-lo a um representante da classe operária. Mera gentileza. De fato, passava-a a um membro da elite sindical, que, para tranquilidade geral do empresariado, entretém os pobres com benesses, à custa do aumento de impostos, que todos nós pagamos.

De qualquer modo, entendo que a dificuldade de definir, hoje, esquerda e direita é consequência do avanço das ideias progressistas. Conhece alguém que se oponha à construção de uma sociedade justa? Eu não conheço. Difícil mesmo é chegar lá.

Alberto Dines :: A década das cuecas

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Estadistas prometem prosperidade, cientistas garantem a longa vida, escritores oferecem sabedoria e sacerdotes, a imortalidade. Nesta virada de ano vale tudo, lástima que os exaustos publicitários não perceberam a infinita utilidade destas peças do vestuário íntimo, de repente levadas às manchetes pelos ventos da notícia.

Cuecas, no Brasil, pudicamente designadas como roupas de baixo, são ferramentas valiosas. Sobretudo na esfera legislativa. Indispensáveis para a consumação da corrupção política, complemento do caixa dois, cofres fortes porém levíssimos, sem segredos, inexpugnáveis.

Agora o terrorista nigeriano da Al-Qaeda descobriu que cuecas podem substituir as maletas 007 e carregar mortíferos arsenais de destruição em massa. Nem James Bond ou Batman poderiam imaginar um kit terrorista tão perfeito. E – desculpem – tão paradoxal: se o prêmio pelo martírio do fanático são onze mil virgens à sua espera no paraíso, guardar o pó explosivo nas cuecas seria, digamos, desperdício.

A direita americana está exultante: desde o caso Bill Clinton–Monica Lewinsky (em meados dos anos 90) que os herdeiros da Ku Klux Klan não se animam a botar a boca no trombone com tanto gosto. Antes queriam pedir o impeachment do democrata por causa do vestido da estagiária da Casa Branca manchado pelo sêmen presidencial. Agora querem culpar Barack Obama pela ineficiência dos órgãos de segurança americanos alimentada ao longo dos últimos oito anos pelos alucinados procedimentos de George W. Bush.

Os aloprados de Osama Bin Laden conseguiram o que queriam: criar a histeria das cuecas. Tal como aconteceu em dezembro de 2001, também perto do Natal, criaram o não atentado com efeitos morais mais devastadores. O "martírio" de Richard Reid estava previsto para não consumar-se, os explosivos que levava nos tênis não deveriam detonar. Sua "tarefa" era criar o pânico mundial e, assim, condenar ao ostracismo o calçado-símbolo da modernidade ocidental. Conseguiu: agora, além de cintos e bolsas, os viajantes que vão e voltam dos EUA são gentilmente convidados a descalçar seus tênis. Logo desistirão de viajar com eles, mais uma vitória da jihad islâmica.

A não façanha do terrorista-aprendiz Umar Faruk Abdulmutallab é ainda mais diabólica, satânica: ao ser flagrado com 80 gramas do inocente pozinho branco nas cuecas o terrorista criou uma série de constrangimentos de proporções globais e ainda não devidamente avaliados: como detectar o perigoso pozinho branco no recôndito das cuecas e como diferenciá-lo do açúcar?

Na policialesca China que acaba de executar o taxista britânico que entrou no país com alguns quilos de coca refinada, o problema será gigantesco: alguém precisará cheirar e classificar o pó. Se entrar num "barato", tudo bem. Se explodir, tudo mau.

O mundo sofreu drásticas transformações por causa das letras móveis inventadas por Gutenberg, da máquina a vapor desenvolvida por James Watt, do balão dirigível de Santos Dumont e da desintegração atômica concebida por Robert Oppenheimer. Peças de roupa também produziram extraordinárias revoluções, a mais importante decretada pelas feministas quando queimaram seus sutiãs.

Seria possível um mundo sem cuecas? Eis a questão. Nossos corruptos conseguirão carregar maços de notas apenas nas meias? Ceroulas não seriam mais produtivas numa avaliação custo-benefício? Com o aquecimento global a COP-16 não deveria estabelecer o modelo samba-canção, mais arejado e devassável? E então, por despeito, o bolivariano Hugo Chávez não lançará a cueca-bolero, solta, pintada de coqueiros, absolutamente isenta de perigo? E por que este ressentimento antimasculino – calcinhas femininas não poderiam carregar igualmente as fatídicas 80 gramas de PETN?

Tudo seria possível na década inicial do século 21, marcada por tantas e tão transcendentes polarizações. Decênio encerrado, transição, idem. Hora de acordar.

» Alberto Dines é jornalista

Brasília-DF :: Luiz Carlos Azedo

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Batalha de Itararé

A crise militar às vésperas do Natal não passou de uma Batalha de Itararé, famoso episódio da Revolução de 30, que passou para a história como um confronto armado que simplesmente não ocorreu. A cidade do interior paulista havia se preparado para barrar a passagem de Getúlio Vargas rumo ao Rio de Janeiro, mas houve a deposição de Washington Luiz antes disso e os revoltosos assumiram o poder. O trem de Getúlio cruzou a cidade em clima de festa.

A criação de uma comissão especial para investigar casos de tortura e desaparecimentos ocorridos durante a ditadura militar (1964-1985) desagradou muito aos militares, mas não partiu dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica o pedido de demissão coletiva. Partiu do ministro da Defesa, Nelson Jobim, que recebeu a solidariedade dos comandantes militares. O caráter da comissão especial, segundo o texto aprovado, praticamente revoga a Lei de Anistia de 1979. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o texto em Copenhague, sem prestar atenção aos detalhes. Agora, promete revê-lo. --> --> -->com guilherme queiroz

Incongruência

Dos 15 partidos com bancadas na Câmara dos Deputados com direito a cargos de natureza especial, apenas cinco possuem número de funcionários em acordo com a cota definida. Três legendas têm mais doque prevê a norma. O DEM, por outro lado, tem sete a menos.

Gula/ Nas discussões iniciais acerca da reforma administrativa do Senado, que inclui o reajuste das carreiras da Casa, consultores levaram sua proposta pedindo piso da categoria em R$ 24.280. O valor não levou em conta as inúmeras gratificações pagas aos funcionários do Senado, o que os levaria a extrapolar o teto de salário do funcionalismo público.

Bloquinho/ A perspectiva de uma disputa polarizada entre PT e PSDB para o governo de Minas Gerais tem levado os partidos da esquerda a discutir a formação de uma aliança proporcional, deixando o PT sozinho para fazer sua bancada na Câmara dos Deputados. A coalização deve contar com PCdoB, PSB e PDT, além do PV.

Livre/ Egresso do PMDB para aderir ao PR do ex-governador Anthony Garotinho, o deputado Geraldo Pudim (RJ) é o primeiro parlamentar da leva de infiéis que trocaram de legenda, a um ano das eleições, a conseguir se livrar do risco de cassação no Tribunal de Superior Eleitoral (TSE).

Acordo


Jobim (foto) pediu demissão porque se sentiu desautorizado, uma vez que havia acordado as modificações com os ministros da Justiça, Tarso Genro, e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi. Diante da atitude de Lula, o ministro da Defesa reconsiderou a questão. Os comandantes militares simplesmente acompanharam a decisão. E fizeram um pacto de silêncio para aguardar a revisão do texto.

Regime

Paulo Vannuchi (foto), porém, resolveu manter o debate. Está demissionário. Se houver a mudança exigida por Jobim, pretende pegar o boné e ir para casa. Porém, seu argumento de que a tortura foi ato isolado de alguns integrantes das Forças Armadas contraria a verdade histórica. Nos anos de chumbo foi uma política de Estado adotada pelo regime para combater a oposição, principalmente os grupos armados. Mas, na abertura política, a tortura saiu do controle da cúpula das Forças Armadas. Por isso, a punição dos torturadores é uma revisão radical da Lei de Anistia que não poderia se restringir a eles exclusivamente. Cumpriam ordens de cima.

Fora…

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre políticas públicas de mudanças climáticas mostra que assentamentos na Amazônia Legal não atendem à legislação ambiental. Dos 2.947 existentes na região, apenas 735 tiveram suas licenças solicitadas aos órgãos responsáveis de cada estado. A situação é mais precária no Pará, campeão de desmatamento, com 10% de projetos licenciados.

… da ordem

O dado é preocupante porque aponta que o número de assentamentos na Amazônia Legal com pedidos de licenciamento já apresentados está abaixo da média nacional. Nos demais estados do país, 56% dos assentamentos acionaram os órgãos ambientais, contra 46% nos estados tocados pelo bioma amazônico.

CHARGE

Jornal do Commercio (PE)

Partido que tem uma única cara

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Lula continuará mandando na legenda mesmo depois de deixar a Presidência, no fim do ano, independentemente do resultado das urnas nas eleições presidenciais de outubro

Patrícia Aranha

Não há um PT pós-Lula. O presidente, que está no último ano de mandato, continuará dando as cartas no partido que fundou há 30 anos, mesmo que a candidata que escolheu como sua sucessora, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, não vença a eleição presidencial. Qualquer que seja o resultado, acreditam os analistas, Lula poderá estar de volta ao Planalto daqui a quatro anos. Todos os passos dados por ele em 2009 indicam que tem fôlego para tanto. O motivo é um só: não existe no partido ninguém com o carisma e a popularidade do presidente.

O partido enfrenta este ano a sua primeira eleição presidencial sem Lula como candidato, mas, se depender do Planalto, a disputa se dará como se ele ainda estivesse no páreo. É o que o governador Aécio Neves (PSDB) chamou de “armadilha da eleição plebiscitária”, quando conclamou o PSDB a não cair nela. Essa seria a primeira constatação de que Lula não tem intenção de deixar o poder, depois de descer a rampa.

O sociólogo Rudda Ricci, um ex-petista que fundou o partido em São Paulo, lembra que, por colar sua imagem à da ministra-candidata, uma eventual vitória de Dilma será creditada exclusivamente a Lula. “Se Dilma ganhar, cede a vez a Lula em 2014. Se for José Serra (PSDB) o vencedor, ele terá que disputar com Lula daqui a quatro anos. O que ouvi até de alguns ministros é que, assim que deixar o governo, Lula vai chefiar um instituto para se dedicar à África, consolidando um perfil de estadista mundial de olho no retorno a Brasília. A história do PT continuará atrelada a história do Lula pelo menos nos próximos 10 anos”, apostou.

Um dos signatários do manifesto de fundação do PT, o mineiro Wagner Benevides, também aposta na volta de Lula. “Se Dilma fizer um bom governo, Lula tem muitas chances de voltar, mas, se por um motivo qualquer, perdermos a eleição para o Serra, Lula é o melhor nome para recuperar a Presidência”, afirma.

Trator

A decisão do presidente Lula de comandar a sua própria sucessão fez estragos na democracia interna do partido. A cientista política Sandra Starling, apesar de filiada ao PT, avisa que não vai pedir votos para Dilma “Não faço parte desse PT submisso ao lulismo. Sou tão fundadora do partido quanto o presidente. Como se fosse um imperador, Lula indicou uma pessoa que o partido não conhece direito, que precisa ser apresentada à militância pelo país afora”, criticou.

A pouca vivência partidária de candidata indicada por Lula é lembrada pelo cientista político Leonardo Avritzer, da UFMG, como um fator que poderá, num eventual governo Dilma, separar ainda mais o partido do governo. “Como lideranças históricas do partido, como o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu e o ex-presidente José Genoino perderam viabilidade eleitoral depois do escândalo do mensalão, a escolha de uma candidata não identificada com o petismo parece fazer sentido. Lula, que já havia separado partido e governo no segundo mandato, parece mais interessado em preservar o lulismo. Se Dilma vencer, a separação entre estado e partido será muito maior”, avalia.

Aproximação com tucanos

O sociólogo Rudda Ricci, que está escrevendo um livro sobre o lulismo — considerado por ele como um neogetulismo, referindo-se ao potencial político eleitoral do carisma do ex-presidente Getúlio Vargas, que prevaleceu sobre o PTB — acredita que só haverá uma outra reconfiguração política, sem a volta de Lula ao Planalto, se houver aproximação entre PT e PSDB, o que já foi admitido tanto por Lula quanto pelo governador Aécio Neves (PSDB).

“Se Aécio Neves se eleger senador este ano e o Serra não vencer as eleições, há grandes chances de aproximação entre PT e PSDB no futuro. Não seria uma fusão, mas uma nova configuração política, com uma aliança entre os dois partidos que polarizam a cena há mais de 10 anos. O PSDB não paulista tem tudo para se aproximar do lulismo e teremos uma nova configuração política em que Aécio pode até ser o presidente”, arrisca.

Para ele, a aproximação será facilitada se o PT mineiro não vencer as eleições para o governo. “Para que este cenário de aproximação aconteça são muitas as variáveis. O Patrus Ananias (ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome) precisa perder a disputa interna para o Fernando Pimentel (ex-prefeito de Belo Horizonte), que é mais próximo de Aécio. Depois, o PT precisa perder o governo mineiro para o PSDB ou para um PMDB ligado a Aécio, e Serra precisa perder a disputa presidencial. Pelos cenários apresentados até agora, todas as variáveis são mais do que possíveis”, argumenta.

Matriz

Já a cientista política Rachel Meneguello, estudiosa do PT, não acredita em aproximação com o PSDB. “Não vejo uma junção possível. Os partidos têm matriz de formação distinta, têm projetos de poder distintos, agendas políticas de governo com diferenças importantes”, argumenta.

Para Meneguello, a principal herança de Lula deverá ser avaliada pelas urnas, na capacidade dele de transferir votos para a candidata do PT. Mesmo sem ser o candidato em 2010, Lula continua como referência para os filiados que devem vestir a camisa de Dilma Rousseff.

O efeito sobre o restante do eleitorado, é difícil de prever. “Para dentro do PT, a aderência entre Lula e o candidato do governo terá um caminho natural. Para o eleitor , essa aderência é potencial, mas incerta. É o que precisamos dimensionar já na campanha”, avalia. (PA)

Goethe e a chama viva da verdade

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

Composto por dois textos, Ensaios Reunidos, de Walter Benjamin, é estudo aprofundado sobre o legado do autor alemão

Marcelo Backes, Especial para O Estado

Walter Benjamin é um pensador que sabe avaliar o fio e o peso de seu instrumento crítico. Os dois textos de Ensaios Reunidos - Escritos Sobre Goethe (tradução de Sidney Camargo, Irene Aron e Monica K. Bornebusch) são bem diferentes um do outro e a sugestão é, desde já, começar pelo segundo. Intitulado Goethe, ele abre o panorama e faz um esboço geral em que o primeiro fecha o foco e disseca o particular. Goethe foi concebido entre 1926 e 1928 como texto para a Grande Enciclopédia Soviética, As Afinidades Eletivas de Goethe foi publicado em duas partes em 1924 e 1925 na revista Neue Deutsche Beiträge.

Goethe começa pela aversão de Goethe à metrópole e logo mostra ser um artigo de enciclopédia, mas com caldo. A trajetória do autor é comparada com a de outros autores fundamentais. As mudanças sociais, a perspectiva histórica e as contingências biográficas - as mulheres que marcaram sua vida, a presença de sua atividade palaciana na segunda parte do Fausto - não ficam de lado. Há constatações perspicazes como a de que a poesia alemã só se libertou da esfera da descrição, do didatismo e da narração a partir dos poemas de Goethe.

Benjamin chega a discutir as obras "científicas" do maior dos clássicos alemães, sobretudo na medida em que esclarecem pontos importantes de suas obras ficcionais e dramáticas. Goethe é comparado com Voltaire e sua relação com Schiller é dissecada, assim como seus grandes erros de apreciação - ele foi incapaz de avaliar a importância de Jean Paul, Kleist e Hölderlin. Num belo momento, Benjamin fala do ceticismo do autor diante da sede de rapidez e de riqueza do mundo moderno - a contemporaneidade autofágica teria muito a aprender - e do paralelo que este vê entre sofisticação e mediocridade.

Sobretudo no ensaio As Afinidades Eletivas de Goethe, Benjamin mostra momentos de profundidade ímpar: "O ser humano não escapa ao infortúnio que a culpa chama sobre ele." O ensaio já começa com a diferenciação teórica entre comentário (que busca o teor factual) e crítica (que busca o teor de verdade de uma obra). A verdade logo é caracterizada como "a chama viva" que "continua a arder sobre as pesadas achas do que foi e sobre a leve cinza do vivenciado".

Este primeiro ensaio pressupõe a leitura do romance e não apresenta uma descrição antecipada do enredo, mergulhando fundo no caráter simbólico e no fundamento mítico da obra. A biografia recebe a devida importância mais uma vez e As Afinidades Eletivas revelam o produto vigoroso de um indivíduo e de uma época peculiares. O crítico sabe dar valor a seu objeto, recuperando um diálogo em que Goethe respondeu a uma mulher que alegou não suportar a imoralidade do romance: "Sinto muito, é na verdade o meu melhor livro." Benjamin também percorre o caminho da crítica anterior a ele. O tom chega a ser sarcástico quando diz que o Goethe de Friedrich Gundolf é o tosco pedestal da estatueta do próprio crítico. A percepção aguçada do detalhe faz Benjamin parar no fato de provavelmente não haver, em qualquer literatura, uma narrativa da mesma extensão em que apareçam tão poucos nomes. Especulativo aqui e ali, ele chega a dizer de Goethe: "O medo é a raiz das omissões em sua vida erótica."

Benjamin discute o significado do casamento indo além das Afinidades Eletivas, cercando o assunto com a teoria de vários filósofos, a começar por Kant, para daí chegar à abordagem de Goethe. Usa também outras obras, anotações, cartas e comentários do autor, registrados por Eckermann e companhia. Traça, ainda, uma linha que leva a outras obras de Goethe e relaciona a Ottilie das Afinidades à Mignon do Wilhelm Meister e à Helena do Fausto. Ao final, resta a grande pergunta. Onde reside, na vida dos cônjuges, o passo em falso? "Na indecisão de outrora ou na infidelidade do presente?" E em que medida o empreendimento não era equivocado desde o princípio? Já passa da hora de falar um pouco do enredo, para dar fundamento ao meu e ao discurso de Benjamin.

O romance As Afinidades Eletivas é de 1809 e seria um mero interlúdio novelesco de Os Anos de Peregrinação de Wilhelm Meister, mas acabou crescendo a ponto de ganhar autonomia. Eduard e Charlotte se unem para viver livres e felizes num recanto distante depois de terem tido, ambos, casamentos convencionais. A promessa duvidosa de paz se quebra quando Eduard quer chamar até eles um velho amigo em necessidade, o capitão Otto. Charlotte se recusa a aceitar a ideia, mas depois concorda e traz sua sobrinha Ottilie para ajudar nos trabalhos de casa. Eduard se sente cada vez mais atraído por Ottilie, enquanto Otto e Charlotte se mostram decididos a não cair em tentação. A criança que nasce depois de uma noite de amor e "traição espiritual" entre os cônjuges é muito parecida com Otto e Ottilie (eis, aliás, uma chave interpretativa para um dos maiores romances brasileiros, publicado quase um século mais tarde: Dom Casmurro, de Machado de Assis). Depois disso, seguem-se uma série de catástrofes, que abandono ao prazer do leitor.

Goethe faz um estudo aprofundado do embate entre o mundo institucional do casamento e o mundo livre das paixões, entre as normas civilizatórias e a barbárie dos instintos, terminando por concluir que os esforços da razão sempre titubeiam diante da força destruidora das pulsões. Fazendo propostas ensaísticas que lembram o Freud de O Mal-Estar na Civilização, Benjamin disseca o romance e mostra mais uma vez que é um crítico com os pés no chão, mas que sabe alçar o voo ousado que leva da arte à vida.

Marcelo Backes é escritor, tradutor e ensaísta, doutor em germanística e romanística pela Universidade de Freiburg, na Alemanha, é autor de Estilhaços e maisquememória, entre outros

Janio de Freitas :: O passado pela frente

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Estamos postos diante do risco de voltar à instabilidade das instituições democráticas e a um passado sem anistia

Demitiram-se, ou ameaçaram demitir-se, ou ameaçam ainda -depende do informante da notícia, ou ondeiro-, não faz diferença para as interrogações que os comandantes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha, com a companhia do ministro Nelson Jobim, da Defesa, lançam sobre o regime democrático e o conceito otimista obtido pelo Brasil nas relações internacionais.

Duas possibilidades estão postas à nossa frente, com a recusa das chefias militares a admitir a vigência, no Plano Nacional de Direitos Humanos assinado por Lula, dos itens que podem questionar a impunidade dos crimes hediondos da repressão na ditadura. Uma delas é de que Lula recue do seu decreto e dele retire a pretendida Comissão da Verdade, além de outros itens; ou adote uma fórmula que evite a retirada explícita, mas resulte na mesma invalidade. O que restar da imagem de Lula no exterior e do conceito do Brasil será millagre, só por restar.

A outra possibilidade é de que, sem recuo ou fórmula ilusória de Lula que satisfaça os comandantes militares, os três e seu ministro demitam-se em represália. Os substitutos escolhidos para os três não aceitem, nem os novos escolhidos, por esperável solidariedade corporativa, decorrente de que a impunidade dos autores de crimes hediondos da ditadura tornou-se um princípio militar brasileiro. É o impasse. E então, o que virá, o que farão os chefes militares e seu estimulante advogado Nelson Jobim?

O impasse será a crise da democracia brasileira. Forças Armadas sem convivência com o governo e o governo sem poder de impor-se. A "solução", em qualquer de suas variadas formas, é nossa velha conhecida. Mas as Forças Armadas não aderiram às convicções democráticas? Bem, tempo para isso não faltou, no quarto de século desde que constataram a impossibilidade de dominar pela força o seu próprio país.

É verdade que a Anistia, como dizem os militares, foi entendida e aceita em sua promulgação como plena e igual para os "dois lados". Foi uma concessão dos militares e da direita civil em proveito seu, por temor aos tribunais, e aceita pela esquerda e pela demais oposição para aplacar a sua ansiedade, bem brasileira, de ver os exilados e os presos de volta ao ninho. O PMDB, Ulysses Guimarães à frente, cuidou do entendimento para aprovação da Lei da Anistia. Os militares tiveram mais dificuldade de concordância entre si do que as oposições, porque a ideia de esquerdistas em liberdade excitava o ódio de um sem-número deles. Por isso toda a protelação veio dos militares, não de maior reflexão ou condições dos oposicionistas.

Mas, como diz o lugar comum do direito, sobrevieram fatos novos. A reinstalação do regime civil aumentou o desejo e as condições de conhecer o que foi, por dentro, o exercício da repressão pelos militares. Horrores jorraram de narrativas e descobertas por anos e anos, e não cessaram ainda. E esta foi a constatação primordial: ao passo que, por ocasião da Anistia, tudo era sabido das ações contra o poder militar, aos militares foi anistiado sobretudo o que deles não era sabido.

Concluir esse conhecimento é indispensável para encerrar a herança da ditadura, embora não seja a única necessidade. No entanto estamos postos diante, não desse conhecimento terminal, mas do risco de voltar à instabilidade das instituições democráticas e, daí, a um passado sem anistia possível. Com o Brasil de volta a republiqueta.

Elio Gaspari ::Não foi o PT nem o PSDB, foram os dois

DEU EM O GLOBO

Desde 1996 a linha da melhoria da vida do andar de baixo é contínua, sem inflexões

O professor Claudio Salm investigou os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 1996 e 2002 (anos tucanos) e daí a de 2008 (anos petistas). Ele verificou que a ideia segundo a qual Nosso Guia mudou radicalmente a vida do andar de baixo nacional é propaganda desonesta. Estimando-se que no andar de baixo estejam cerca de 50 milhões de pessoas (25% da população), o que se vê nas três Pnads estudadas por Salm é uma linha de progresso contínuo, sem inflexão petista.

Em 1996, quando Fernando Henrique Cardoso tinha um ano de governo, 48,5% dos domicílios pobres tinham água encanada. Em 2002, ao fim do mandato tucano, a percentagem subiu para 59,6%. Uma diferença de 11,1 pontos percentuais. Em 2008, no mandato petista, chegou-se a 68,3% dos domicílios, com uma alta de 8,7 pontos.

Coisa parecida sucedeu com o avanço no saneamento. Durante o tucanato, os domicílios pobres com acesso à rede de esgoto chegaram a 41,4%, com uma expansão de 9,1 pontos percentuais. Nosso Guia melhorou a marca, levando-a para 52,4%, avançando 11,3 pontos.

O acesso à luz elétrica passou de 79,9% em 1996 para 90,8% em 2002. Em 2008, havia luz em 96,2% dos domicílios pobres.

Esses três indicadores refletem políticas públicas. Indo-se para itens que resultam do aumento da renda e do acesso ao crédito, o resultado é o mesmo.

Durante o tucanato, os telefones em domicílios do andar de baixo pularam de 5,1% para 28,6%. Na gestão petista, chegaram a 64,8% das casas. Geladeira? 46,9% em 1996, 66,1% em 2002 e 80,1% em 2008.

O indicador da coleta de lixo desestimula exaltações partidárias. A percentagem de domicílios pobres servidos pela coleta pulou de 36,9% em 1996 para 64,4% em 2008. Glória tucana ou petista? Nem uma nem outra. O lixo é um serviço municipal.

Nunca antes na história deste país um governante se apropriou das boas realizações alheias e nunca antes na história deste país um partido político envergonhou-se de seus êxitos junto ao andar de baixo com a soberba do tucanato.

Suely Caldas :: 'FT': mérito de Lula é continuar FHC

EU EM O ESTADO DE S. PAULO

A cotação do presidente Lula está em alta na Europa. Escolhido o "Homem do Ano" pelos jornais Le Monde (francês) e El País (espanhol), o inglês Financial Times (FT) listou-o entre as 50 personalidades que moldaram a primeira década do século 21. Ao justificar a sua escolha, o jornal britânico tratou de dividir o sucesso de Lula com seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. Sobre sua popularidade, destaca: "O que faz os brasileiros amarem Lula é a baixa inflação" - herança do Plano Real da era FHC. E lembra que, quando oposição, Lula criticou duramente as ações da política econômica do antecessor, "mas foi esperto o suficiente para mantê-las".

Faltou ao FT dizer que no Congresso, nos comícios, nas campanhas eleitorais, nos sindicatos e nas ruas Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) trabalhavam para derrubar, uma a uma, as ações de política econômica que eles trataram de preservar quando chegaram ao governo. Quem viu Lula e o PT em campanha contra as privatizações, com xingamentos agressivos, não o imaginava dois anos depois desautorizando o ex-presidente do BNDES, Carlos Lessa, a tentar reestatizar a Vale. "Não quero que meu governo passe a imagem de que somos contra e vamos desfazer as privatizações", advertiu Lula em 2003.

Mas o FT está certo em cutucar Lula naquilo que ele jamais admitiu e, pior, nega quando fala a respeito. Por mais oposição que tenha praticado antes, nenhum líder político começa a governar seu país com atitudes de ruptura com o que encontrou. "Vamos mudar tudo que está aí", prometiam Lula e companheiros. A expressão não diz nada, é oca, vazia, não especifica o que vai mudar, mas é boa de marketing popular e péssima como mensagem de governo. Deu no que deu em 2002, com o dólar beirando R$ 4 e o risco País chegando a 3 mil pontos.

"Nunca antes na história deste país", continuou Lula depois que virou presidente. Arrogante, esquece que apenas deu continuidade àquilo que herdou. Ele costuma glorificar os avanços de seu governo na área social. Realmente o Bolsa-Família é um programa social bem-sucedido, elogiado por outros governantes, pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas Lula omite que o programa foi criado no governo anterior e que a sua mais genial inventividade - a estrutura de um cadastro das famílias de alcance nacional e o cartão bancário que eliminou a secular e corrupta intermediação dos políticos - foi concebida por uma equipe de economistas, entre eles Ricardo Paes de Barros, que os petistas rotulavam de tucanos neoliberais. Na época, o Instituto da Cidadania, ligado ao PT, apresentava ao País um es-drúxulo plano para eliminar a fome, com um fundo alimentado por uma taxa cobrada em gorjetas de restaurantes. Lula podia criticar a quantia de apenas R$ 15 que FHC dispensava às famílias por filho na escola e lembrar, com justiça, que sua gestão elevou o valor e ampliou o cadastro de famílias, mas não é ético tomar a si a autoria do programa, que não lhe pertence.

Ainda na série "nunca antes na história deste país", sua única concessão foi dirigida ao ditador João Baptista Figueiredo, ao afirmar que só o general construiu mais casas do que ele, mas omite e não reconhece um fato bem mais recente vivido na democracia: é o sistema de câmbio flutuante e metas de inflação, criado na gestão Armínio Fraga no Banco Central, e com sabedoria mantido por ele e Henrique Meirelles, que mantém a inflação baixinha e garante sua popularidade.

É justo constatar que o País progrediu no governo Lula. Ele e sua equipe de petistas demoraram a aprender, tropeçaram nas Parcerias Público-Privadas, tomaram decisões erradas quando tentavam inventar - caso do programa Meu Primeiro Emprego. E levaram o País ao retrocesso político ao tolerarem, não punirem e até incentivarem a corrupção, ao lotearem cargos técnicos com apadrinhados despreparados e mal-intencionados, ao interferirem politicamente em funções do Estado que existem para servir ao cidadão, e não aos interesses do governo. Não fizeram as reformas, na política diplomática não chegaram a contar vitórias e continuam errando no plano político-institucional.

Mas é legítimo reconhecer os méritos: a economia cresceu e milhares de empregos foram criados, a área social ganhou impulso, surpreendentemente o País saiu da crise antes do esperado e a última pesquisa do IBGE sobre o Produto Interno Bruto (PIB) trouxe a boa notícia: o investimento produtivo voltou e tudo indica que de forma sustentada. O futuro, portanto, é promissor e Lula ajudou a construí-lo. Mas não só ele. Ninguém é onipotente, muito menos quem tem responsabilidade de governar e preservar o que foi feito antes. O Brasil perdeu a década de 1980 inteira, sofrendo com uma inflação absurda que emperrava o progresso, impedia investimentos, concentrava a renda. Derrubar a inflação foi o primeiro passo para reverter esse quadro e começar a construir um novo País. E isso ocorreu com o Plano Real, em 1994, em pleno ano eleitoral e apesar da oposição de Lula e do PT, que decretavam vida curta a "este plano eleitoreiro".

Argentina - Ao contrário do Brasil, superar a crise não está fácil para a Argentina. É certo que foi afastado o fantasma da moratória (e todas as suas mazelas), que rondou o governo de Cristina Kirchner até meados de 2009, mas o acesso ao crédito internacional continua fechado e ajudando a alongar os efeitos da crise. Com a economia em recessão e a receita tributária em queda, o governo ampliou sua intervenção em negócios privados para buscar dinheiro e atenuar seu déficit fiscal, mas criou ambiente de insegurança e risco jurídico que causa fuga dos investimentos e impede a economia de decolar.

Sob intervenção há três anos, ninguém acredita nos indicadores econômicos do Instituto Nacional de Estatísticas e Censo (Indec). A previsão do governo de inflação entre 6% e 7% em 2010 é ignorada pelo mercado, que espera repetir os 15% de 2009. Fazer recuar a inflação a menos de dois dígitos, conseguir abrir as portas do crédito internacional e atrair investimentos são desafios que Cristina Kirchner vai enfrentar com dificuldades em 2010.

*Suely Caldas é jornalista e professora de Comunicação da PUC-Rio

O QUE PENSA A MÍDIA

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Rubens Ricupero :: Cair na real

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Se algo ficou claro em 2009, foi que o ideal de uma efetiva governança mundial está tão longe quanto sempre esteve

Iniciado sob o signo da esperança da eleição de Obama, o ano termina com a realidade impondo de novo seus limites. O desemprego custa a baixar, apesar dos bilhões de dólares de estímulo; cada senador norte-americano exerce poder de veto para aprovar uma reforma modestíssima no sistema de saúde; o terrorismo e a guerra devoram vidas e fortunas no Afeganistão e no Paquistão; o conflito israelense-palestino se afunda no desespero; em Copenhague, diante de ameaça à civilização e à própria vida, políticos e diplomatas confirmam sua incurável mediocridade moral e humana.

Se algo ficou claro no ano de 2009, foi que o ideal de uma efetiva governança mundial está tão longe quanto sempre esteve. O fiasco de Copenhague é apenas o mais grave de uma longa série: a impossibilidade de um acordo de regulação financeira para evitar a próxima crise, a persistente incapacidade de concluir a Rodada Doha de negociações comerciais, o fracasso das tentativas de solução dos conflitos do Oriente Médio. Se a ONU (Organização das Nações Unidas) emerge da conferência sobre o clima mais arranhada do que antes, o G20 e o G2, candidatos a substituí-la, não se saíram muito melhor.

Outra coisa que se tornou clara é que, contrariando a expectativa geral, Obama se revelou um presidente voltado essencialmente para temas domésticos. Seu apetite para liderar a reforma da governança global é, na melhor das hipóteses, intermitente e mais retórico do que real. Será em parte porque a crise não lhe deixa outra escolha. Ou por estar consciente de que a retomada da liderança norte-americana passa pela reconstrução de suas bases internas: economia, coesão social, qualidade da educação, saúde, pesquisa científica, autonomia energética. No fundo, não age muito diferente da China, empenhada em cuidar da própria casa.

Nesse vácuo, os problemas mundiais evoluem com lentidão exasperadora, os insignificantes como Honduras, os graves como o comércio, até os gravíssimos como o aquecimento global.

Mesmo em assunto estratégico de interesse de segurança dos Estados Unidos, como a nuclearização do Irã, Washington estaria inclinada a "terceirizar" a solução, isto é, a transferir, de modo tácito ou explícito, a um ataque israelense a responsabilidade de romper o impasse.

A decepção com Obama nasce, sobretudo, da tendência a desaprender que a inércia caracteriza a realidade social. Fora instantes raros em que onda irresistível varre a história, os problemas maiores só avançam em meio a retrocessos e a resistências. O fim do comunismo e da Guerra Fria, os Cem Dias de Roosevelt constituem exceções. O importante é que o sentido geral do processo seja positivo. É o que se vê na reforma da saúde, na recuperação gradual da economia, no desengajamento do Afeganistão com data marcada.

Até no clima, o que conta é que China e Estados Unidos não negam mais a ameaça, apesar de que precisam avançar muito para chegar a um ponto satisfatório. Aliás, exceto nas questões iraniana e israelense-palestina, as mudanças de 2009 encaminharam os desafios principais na direção certa. Os problemas deixaram de piorar como na era Bush e começam a mudar para melhor, embora pouco e devagar. Devia-se mudar o hábito verbal de dizer que se cai na real, como se fosse uma armadilha. À verdade só se pode subir, pois ela é que nos liberta de sonhos entorpecedores, dando-nos a lucidez e a coragem para ver e resolver os problemas.

Rubens Ricupero , 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

Celso Ming :: Gastança federal

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Uma das incógnitas para avaliar o desempenho da economia brasileira em 2010 é o comportamento das despesas públicas. Ninguém sabe até que ponto a gastança praticada a partir de 2009 pode desencadear ou a inflação ou um surto de desconfiança na capacidade do governo de segurar as rédeas da economia.

A decisão de prorrogar para o final de março a redução ou até mesmo a isenção de IPI para os setores de veículos, móveis e materiais de construção não teve a ver com políticas anticíclicas nem com a necessidade de manutenção do emprego. Foram providências notoriamente eleitoreiras, tomadas num momento de forte recuperação da economia.

Como o segundo turno das eleições acontece só em novembro, parece pouco provável que, até lá, esses estímulos sejam removidos. Mas não é aí que se concentra a disparada das despesas correntes do governo federal, que cresceram em 2009 cerca de 16% (dados até novembro), num ambiente de queda da arrecadação (de 4% no ano até novembro).

Os indicadores fiscais do País pioraram em 2009. O superávit primário (sobra de arrecadação para o pagamento da dívida) baixou de 3,7% do PIB em 2008 para alguma coisa próxima de 1,0%. Pode-se observar que, ainda assim, é um superávit. O problema é que o déficit nominal (que inclui os juros da dívida pública) aumentou de 1,47% do PIB em 12 meses até novembro de 2008 para 4,14% até novembro passado. E a dívida líquida subiu de 36,3% do PIB, seu ponto mais baixo, em novembro de 2008, para 43,0% do PIB em novembro de 2009.

Mas as estatísticas sobre a dívida bruta podem impressionar negativamente bem mais do que as da dívida líquida. Ela tem tudo para passar dos 70% do PIB, nível próximo dos 73% atingidos nos dias turbulentos de 2003.

Pior ainda, o aumento das despesas públicas não foi de uma vez, como acontece com os investimentos que, geralmente, não se repetem (como, por exemplo, os feitos numa hidrelétrica). Os investimentos do governo não passaram de 1% do PIB, ou pouco mais de 5% de todos os seus gastos (dados de 2008). Estão concentrados em despesas permanentes, que podem ser consideradas uma deformação do keynesianismo: salários, aposentadorias e assistência social.

Uma das razões pelas quais esse panorama não provocou forte reação negativa dos mercados é a de que, comparados com os números de alguns países ricos (dívida pública próxima dos 100% do PIB), os do Brasil são mais confortáveis. Além disso, a blindagem de US$ 240 bilhões em reservas externas tende a desencorajar a fuga de investidores.

Dois serão os focos a serem perseguidos pelos analistas em 2010: o comportamento da arrecadação e do superávit primário. Ao longo de 2009, a receita de impostos deve ter caído algo em torno de 3,7% em termos reais (descontada a inflação). A reativação da economia tende a provocar a reação das receitas.

No entanto, o governo se vê diante da necessidade de reduzir a carga tributária para restituir um mínimo de competitividade ao produto nacional, excessivamente onerado pelo custo Brasil.

O outro item a acompanhar é a capacidade de recompor o superávit fiscal. O fim da festa depende unicamente do governo. E, em ano eleitoral, esse é um projeto difícil de ser levado adiante.

Confira

Certo ou errado? Roberto Coutinho observa que, no dia 31, esta Coluna apresentou três números diferentes para a valorização do Índice Bovespa (mercado de ações): 82,70%, 136,57% e 142,75%. E pergunta: onde está o erro?

Os três estão certos. O que muda é a medida de valor. Estão, respectivamente, em reais, em euros e em dólares.

Quando se comparam os desempenhos entre as bolsas, não é adequado apresentar cada um em sua moeda. Mas quando se compara a evolução dos preços das ações da Bovespa com outras aplicações é melhor fazê-lo em reais.

Miriam Leitão:: Os dez chineses

DEU EM O GLOBO

A China estará no centro dos acontecimentos dos próximos dez anos. Isso é certo. Mas o que isso significa? Que a economia que mais cresce no mundo passará o Japão, mas não passará os Estados Unidos. Algumas das suas contradições ficarão mais agudas. Na cena política global, a China será a força que vai se contrapor aos Estados Unidos, numa nova bipolaridade.

Em 26 anos, entre 1978 e 2004, a China multiplicou por dez seu tamanho. O Império Britânico levou 70 anos — de 1830 a 1900 — para multiplicar o seu PIB por quatro. Quem registra a comparação é o historiador Niall Ferguson em artigo no “Financial Times”. No começo da década passada a economia americana era oito vezes maior do que a chinesa e no fim da década é de apenas quatro vezes. Jim O’Neill do Goldman Sachs, que criou a ideia dos BRICs, acha que em 2027 a China passa os Estados Unidos.

Entretanto, o mistério chinês não é apenas uma questão de projeção estatística.

O país tem dilemas agudos a enfrentar na década de 10.

Será possível continuar crescendo sem mudar o sistema político ditatorial? Se for, o mundo será mais imprevisível e perigoso.

O economista Marcelo Nonnenberg, do Ipea, acha que nesta década a China vai intensificar a mudança geopolítica global. Desde o fim da Segunda Grande Guerra, os países que mais ganharam importância geopolítica estavam ligados aos Estados Unidos: o Japão e a Alemanha, não por coincidência, os derrotados da guerra.

— A ascensão da China é um caso inédito. É um país com interesses próprios na Ásia e conflitos com seus vizinhos. O crescimento da China vai incomodar cada vez mais os Estados Unidos, mas isso não significa que ela vai substituir os Estados Unidos.

Falaram isso do Japão há 20 anos e a economia japonesa vem patinando — pondera Nonnenberg.

O especialista em comércio exterior Joseph Tutundjian acha que nos anos 10 a China vai superar o Japão, depois de ter superado a Alemanha em 2007 tornandose a terceira maior economia do mundo.

— O Japão é um país sem horizontes porque é uma população com idade avançada, muita poupança e que conquistou o que queria da vida. Os chineses, por outro lado, são os capitalistas mais vorazes da atualidade.

São jovens e querem ficar ricos o mais rapidamente possível — diz.

Esse enriquecimento tem sido concentrador de renda e baseado na espantosa falta de garantias trabalhistas mínimas. Tutundjian lembra que a primeira legislação trabalhista em três décadas, implantada em 2008, transformou acordos verbais entre empregadores e empregados em contratos formais e aumentou a proteção aos trabalhadores.

Resultado: em menos de um ano 67 mil pequenos negócios desapareceram.

Parte da competitividade dos produtos chineses vem da falta de garantias individuais dos trabalhadores.

Parte vem da manipulação cambial de um sistema de paridade informal entre o yuan e o dólar. Como o dólar se desvalorizou frente a todas as outras moedas no último ano, o yuan acompanhou os passos.

Essa política cambial é um fato perturbador no comércio internacional. O assunto tem incomodado cada vez mais os países e os especialistas, o que faz com que economistas como Paul Krugman, conhecido por defender o livre comércio, defendam barreiras contra produtos chineses.

Rodrigo Maciel, secretário executivo do Conselho Empresarial Brasil-China, diz que reformas trabalhistas e tributárias iniciadas a partir de 2000 vão se aprofundar nos próximos anos encarecendo a mão-de-obra chinesa e mudando a forma de produzir, com mais tecnologia e valor agregado.

No meio de tudo isso, lembra Maciel, o país passará por uma sucessão presidencial em 2013 quando termina o mandato de Hu Jintao. O sucessor seria Xi Jinping, atual vice-presidente que seria, segundo Maciel, menos conservador e que deve incentivar maior cuidado com questões ambientais.

Há certas leis das quais mesmo uma ditadura não consegue fugir. Uma população que se torna mais rica quer maior poder político.

O crescimento econômico acelerado traz danos ambientais que se tornarão limites ao crescimento. A tecnologia torna mais difícil controlar o fluxo de informações.

É neste ambiente de maiores tensões que a China vai realizar sua ascensão para segunda potência mundial nos anos 10.

Uma das consultorias mais respeitadas quando o assunto é China é a Dragonomics.

Ela aposta num cenário em que a China cresce a 8% ao ano na década de 10. Menos do que o crescimento recente. Nonnenberg acha que o país terá que se voltar mais para o mercado interno. Tutundjian acha que o mundo não verá um Nobel de literatura ou uma tecnologia de ponta vindos da China na próxima década porque falta a ela uma educação de qualidade.

Há uma dificuldade adicional em relação à China, lembrou, em artigo, Nouriel Roubini: suas estatísticas.

De repente eles fazem uma revisão do PIB de anos anteriores totalmente inesperada que altera todas as contas. Em artigo recente, o professor Victor Shih, professor da Northwestern, diz que os empréstimos não recuperáveis podem ter chegado a 31% do PIB no ano passado, com os estímulos para sair da crise.

Opaco, autoritário, quantitativo: esse é o poder que avançará ainda mais nos anos 10. Niall Ferguson diz que pode estar acontecendo o começo do fim da ascendência ocidental, iniciada há 500 anos com o renascimento, a reforma protestante e depois o iluminismo. Pode ser, mas para isso a China precisará mais do que um multiplicador de PIB. Iluminismos nascem das luzes do pensamento livre.

Com Bruno Villas Bôas

Silvio Tendler vai filmar a vida de Sarney, mas sem "perguntas inconvenientes"

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Rodrigo Vizeu
Da Agência Folha


O presidente do Senado Federal, José Sarney (PMDB-AP), 79, deu sinal verde para o início da produção de um documentário sobre a sua vida.

O filme será dirigido pelo cineasta Silvio Tendler, que já levou às telas as biografias dos presidentes Juscelino Kubitschek (1956-1961) e João Goulart (1961-1964). Para Tendler, será "inevitável" abordar temas espinhosos da biografia do senador, mas não há intenção de acuar o entrevistado.

"Não vou fazer perguntas inconvenientes. O cinema não é obrigado a tocar nessas questões conjunturais, porque são passageiras", afirmou Tendler, que, ao mesmo tempo, promete não ser "chapa-branca" no filme. "Não é para encobrir, é para revelar", disse ele.

A Folha apurou que Sarney pediu ao cineasta, há cerca de um mês, que levasse sua história aos cinemas. A conversa ocorreu durante a gravação do depoimento do senador para o documentário que Tendler está fazendo sobre o presidente Tancredo Neves (1910-1985). Sarney -retratado em outro documentário, de 1966, por Glauber Rocha -insistiu no projeto nas últimas semanas.

Tanto o diretor quanto a assessoria do senador negam que a ideia tenha partido de Sarney.

"Estou querendo mapear a política brasileira sem preconceitos", disse o diretor.Tendler afirmou que ideologicamente se alinha mais a JK, mas que respeita Sarney.

"Fiquei fascinado com as coisas que ele sabe. É o político mais antigo do país. Vem do Maranhão e vira presidente. Em Brasília, vai conviver com reis, rainhas e presidentes", disse o diretor. Tendler disse que não vê problema em recorrer a financiamento público para fazer o documentário: "Vou entrar nos editais".

Sobre eventuais críticas a Sarney no filme, a assessoria do senador disse que as decisões cabem a Tendler, mas disse que, "se for para fazer chapa-branca, o presidente não está interessado, porque é um tiro no pé". A assessoria ressaltou, porém, que a história de Sarney tem um "saldo positivo" que "boa parte dos brasileiros não conhece".

Graziela Melo :: Brincadeira de fim da ano

Se foi o ano velho
que, de tão velho
já nem andar,
podia!

Deixou
Muita lama
confusão,
mistério!!!

Chuvas
Torrenciais
nevascas
glaciais

Muitos
no cemitério!!!

Alguma
Parca
alegria...

O ano novo
Está confuso

O que cá viu,
já pressentiu

Está quase tudo
Já fora de uso!!!

Além do mais
Muita coisa feia
Aluguel de perereca

Dinheiro na cueca
E também
dinheiro em meia!!!

O ano velho
pecou,
debochou,
mentiu, sacaneou e
cometeu abuso!!!


Rio de Janeiro, 02/01/10

Bom dia! - Escola Portatil de Música -Gilvan Filho/Descendo a Serra

sábado, 2 de janeiro de 2010

Mauro Chaves :: Acreditar

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Neste comecinho de ano, muitos arrastam seu caminhão repleto de esperanças por uma estrada esburacada de decepções. Decepção quanto à demolição de valores a que se assiste na vida pública brasileira, na qual as ambições e os interesses individuais sufocam qualquer perspectiva de engajamento em benefício real da sociedade. Decepção quanto ao desprezo ao esforço do aprendizado e ao reconhecimento do mérito, já que o que mais vale, para crescer e ter as melhores oportunidades, é ligar-se às panelas de apaniguados e manipular o tráfico de influência.
Decepção quanto à facilidade com que se diz e desdiz, se condena e se absolve, se repudia e se bajula, como se os que ouvem afirmações - ou as assistem ao vivo e em cores - não tivessem capacidade alguma de retenção, de memória e muito menos de juízo moral. Mas, apesar de tudo, o negócio é acreditar.

Acreditar que ainda existem pessoas públicas decentes neste país - e que nem tudo o que existe se vê. Acreditar que há quem se preocupe, de fato, em diminuir a dor dos que sofrem, tanto quanto em deixar o caminho, livre de inveja, para os que vencem. Acreditar que o meio político brasileiro não é apenas o espaço das ambições individuais descontroladas, o campo de caça das vantagens escusas ou o depósito de acumulação de prebendas. Acreditar que o cenário político é também um espaço de beneficio coletivo - desde que os cidadãos exijam que o seja. Que é uma alavanca de crescimento, de desenvolvimento, de enriquecimento comum - desde que os cidadãos exijam que o seja. Então, acreditar no poder de exigência da sociedade.

Acreditar que os que passaram mais de duas décadas fingindo ser o que nunca foram e, depois, usurparam a paternidade do que pretendiam destruir finalmente se mostrarão por inteiro, sem disfarces, assumindo ao menos parte da culpa pelo que deixou de ser feito. Acreditar que a responsabilidade do poder, que experimentaram, os fará recuperar alguns pedaços de sua antiga integridade, que o exercício do poder, que praticaram, poderá gerar-lhes algo que os entusiasme acima do simples desfrute - ou seja, o verdadeiro prazer de se colocar a serviço dos necessitados cidadãos contribuintes. Acreditar que cessará a cultura do despreparo, a arrogância da ignorância e o orgulho da insuficiência. Acreditar que o estrago ético que causaram não é irreversível e que os bons padrões de comportamento haverão de retornar ao espaço público. Acreditar que o Executivo recuperará a majestade da imagem de chefia de Estado e governo, que o Legislativo se desfará de suas quadrilhas e o Judiciário acabará encontrando a arca perdida de sua credibilidade. Acreditar, então - por mais difícil que isso seja - que acabará a impunidade.

Acreditar no efeito multiplicador dos pequenos ânimos que restam: de luta, de sobrevivência, de recuperação, de cura. Acreditar no impulso impossível, no salto que se dá do fundo do poço quando se pensa que nem dá mais para pular. Acreditar nas reservas vitais esquecidas, no pequeno estoque de energia espiritual que sobrou, mas que ainda é suficiente para provocar a maior das viradas. Acreditar naquela misteriosa capacidade de resistir, que nos faz rezar para que não nos testem, pois, se nos testarem, aguentamos. Acreditar contra a evidência de que não tem mais jeito, a descambada é irrefreável, o mergulho é abissal, o plano inclinado é mais liso do que pau de sebo e não segura nada - acreditar, então, que o plano é móvel, que antes do fim ele pode erguer-se, reverter o curso da queda, reequilibrar-se. Acreditar na possibilidade de inverter o curso da guerra, mesmo sentindo-se as defesas desbaratadas - mas ainda contando com um último baluarte. Acreditar na teimosia dos resistentes, dos não desistentes, dos que não desertam. Acreditar até no acaso, se a expectativa deste é o fator único de esperança de vitória.

Acreditar neste sistema chamado democracia, assentado em arraigadas convicções, de liberdades civis, de direitos humanos inalienáveis, de consciência de cidadania, de representatividade política, social e regional, de escolha eleitoral, de respeito ao pensamento plural, à divergência, à legitimidade de voto e voz das minorias e, sobretudo, de acato à livre expressão e ao sagrado direito à informação. Acreditar que a excrescência da censura não sobreviverá, apesar de tanto se nutrir da adiposa covardia cívica. Acreditar que a democracia é capaz de produzir instituições duradouras, à prova de sobas e tiranetes, destinadas a atravessar séculos e forjar civilizações, com já faz em algumas partes do mundo.

Acreditar que um certo arqueólogo interplanetário, em alguma remota era futura, descobrirá, num ponto do universo, um grande monumento: a imagem desta criatura chamada ser humano, tão dolorosamente frágil e finita quanto imensamente forte e extensa. Acreditar que nossa espécie não terá sonhado em vão com a transcendência e a imortalidade, pois esta já existe no esforço de permanência das sucessivas gerações. Acreditar, então, que, apesar da devastação que temos causado, do consumo predatório e alucinado, do irresponsável desperdício, das agressões incontroláveis que temos praticado ao planeta, ainda temos condições de nos disciplinarmos para o mantermos, mesmo meio capenga, girando em algum ponto do universo. Acreditar que nos manteremos nele - pelo menos até podermos nos transferir para algum outro, por perto.

Sim. Acima de tudo, acreditar no recomeço.

Feliz ano-novo.

Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor.

Leandro Konder::O enigma da modernidade

DEU EM IDEIAS & LIVROS / JORNAL DO BRASIL

Livro que reabilita Marx discute a política como atividade própria do homem

Na área das ciências sociais, uma das novidades mais surpreendentes é o livro “o enigma do político”, com o subtítulo “Marx contra a política moderna”, de autoria de Thamy Pogrebinschi.

A autora mergulha fundo no texto de Karl Marx e, remando sempre contra a corrente, acentua os extraordinários méritos do pensador alemão. Na nossa época atual, não é pouca coisa alguém se dedicar a explorar as qualidades do filósofo socialista.

A idéia central exposta por Pogrebinschi é a de que em Marx se desenvolve uma crítica implicável à economia, tal como ela funciona a partir do modo de produção capitalista. Mas Marx não é hostil a um reconhecimento efetivo e radicalmente crítico dos valores políticos, no plano ontológico.

Segundo a interpretação de Pogrebinschi, há uma questão que nos desafia, a qual Marx teve a lucidez de abordar, porém não resolveu completamente em que consiste o político, como dimensão da atividade própria do gênero humano.

Quando a lógica do seu pensamento o conduz a enfrentar a questão da eliminação do Estado, fica no ar a dúvida: o que ocupará o lugar do Estado? Marx está consciente de que, extinto o Estado, os seres humanos continuarão a buscar elementos institucionais necessários à existência dos indivíduos nas sociedades.

Nas condições da modernidade, a sociedade civil opõe resistência tanto ao poder do Estado como à dinâmica perversa da associação que lhes é imposta. A divergência entre Marx e os anarquistas tem sido reconhecida como um debate que se prolonga em torno do tempo histórico da revolução: a sociedade será transformada do dia para a noite ou necessitará de todo um processo para transformá-la.

A autora empreende uma minuciosa pesquisa em torno das divergências de Marx com Bakunin. Mas seu trabalho ganha maior densidade quando se ocupa das formas de organização coletiva que os seres humanos vêm adotando em seus esforços para promover as modificações necessárias.

Para chegarem ao imprescindível comunismo, os estudos de Pogrebinschi mostra que o movimento da história surge como associação (Vereinigung) e não como união (Verein).

Por meio dessas categorias, a autora sustenta que Marx, pensando a simultaneidade da permanência e da mudança, momentos, dernidadeidade.nque Marx realizou no plano te.
anca de professores que a julgou. resgatou a categoria de superação/conservação do velho Hegel e foi capaz de esclarecer alguns aspectos significativos da concepção das transformações históricas – ao que tudo indica, um tanto graduais - promovidas de acordo com uma categoria proposta pela própria autora do livro: o desvanecimento do Estado.

Em sua origem, o livro foi uma tese de doutorado, elogiada merecidamente pela banca de professores que a julgou. Houve, porém, críticas que devem ser lembradas. È difícil enfrentar o desafio de analisar a teoria marxista do Estado, mantendo-se sistematicamente à margem dos escritos de Antonio Gramsci (e isso numa banca da qual participava o filósofo Carlos Nelson Coutinho, grande conhecedor da obra do marxista italiano).

Os leitores mais experientes também sentirão falta de uma contextualização das idéias de Marx que foram sendo, em alguns momentos, retrabalhadas pelo próprio Marx. A autora brasileira teve a perspicácia de aproveitar a contribuição do jovem Marx, mas não teve a precaução de assinalar pontos importantes das mudanças que Marx realizou no plano teórico.

Há certos aspectos de nossa realidade que, na análise crítica de Pogrebinschi, são um tanto enigmáticas. Marx não os resolve, porém nos ajuda a encarar o enigma da modernidade.

* Filósofo, colunista mensal deste Ideia.
O enigma do político
Thamy Pogrebischi
Civilização Brasileira
392 páginas
R$ 44,90

Dora Vianna Vasconcellos :: Rui Facó e os pobres do campo

DEU EM GRAMSCI E O BRASIL

Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, 347p.

Nascido em 1913 em Beberibe, no Ceará, Facó ainda era jovem quando se filiou ao Partido Comunista Brasileiro. Formou-se em direito em Salvador, mas exerceu o jornalismo durante a sua breve vida. Facó faleceu em março de 1963 num desastre de avião. Cangaceiros e fanáticos foi publicado em 1963. É, portanto, uma obra póstuma escrita em meio ao debate que se fazia sobre as potencialidades revolucionárias do campesinato brasileiro. É um livro de leitura fácil e prazerosa, que apresenta uma análise histórico-descritiva do “fanatismo” e do cangaço fortemente marcada pela teoria marxista.

Em nova edição, lançada recentemente pela Editora UFRJ, Cangaceiros e fanáticos possui uma apresentação de Leonilde Servolo de Medeiros. Nela, Medeiros frisa que a leitura de Facó sobre as rebeliões do interior do país foi um forte questionamento às concepções teóricas de então. Ela considera a interpretação de Facó como um “lento processo de reconstrução de imagens socialmente instituídas sobre os trabalhadores do campo, tais como as de sujeição absoluta ao mando dos grandes proprietários, passividade, preguiça, atraso, dificuldade de organização” (Facó, 2009; p.10). Segundo ela, Facó se oporia a essa caracterização, erigindo uma imagem do homem pobre do campo como insubmisso, trabalhador e ciente das injustiças.

Já no prólogo do livro, ao advertir que “fanatismo” e “banditismo” — termos utilizados na época para classificar os movimentos de Canudos, Contestado e Juazeiro, principalmente — possuíam um teor pejorativo que retirava o conteúdo progressista e revolucionário dessas rebeliões, Facó deixa clara a posição defendida ao longo de Cangaceiros e fanáticos. A partir de uma leitura marxista, ele considera que esses movimentos foram verdadeiras tomadas de consciência das populações pobres rurais, e que o misticismo religioso expressava a rebeldia, a capacidade de organização e a insubmissão das populações sertanejas.

De modo semelhante, Facó também interpreta o cangaceirismo como movimento contestador da ordem social. Para sustentar tal posição, ele defende que o cangaceiro era diferente do capanga, espécie de matadores profissionais que dependiam econômica e socialmente dos fazendeiros e, por isso, tinham que obedecer à ordem do patrão. Os cangaceiros, ao contrário, comporiam um bando que conquistara a autonomia, ainda que relativa, do fazendeiro e do latifúndio. Portanto, o cangaceiro não seria, para ele, um assalariado, um semisservo praticante de crimes sob encomenda do patrão. Tratava-se de um homem livre que praticava crimes por conta própria; um rebelde que lutava contra a ordem dominante imposta pelo latifúndio semifeudal. O cangaceirismo, para ele, seria um meio de vida que proliferava no Nordeste, sobretudo, nas épocas de seca e de fome.

O livro divide-se em três capítulos, sendo o primeiro “O despertar dos pobres do campo”, o segundo “Canudos e conselheiros” e o último “Juazeiro e Padre Cícero”. Nesses capítulos, Rui Facó, a partir de uma leitura marxista, faz uma análise histórica dos fenômenos que ficaram conhecidos como “fanatismo” e “banditismo”, ocorridos do último cartel do século XIX e início do século XX no interior brasileiro. O autor analisa principalmente os acontecimentos de Canudos (1896-1897) e Juazeiro, duas rebeliões que, segundo ele, teriam um forte cunho religioso, mas não podem ser explicadas e entendidas somente por esse traço característico.

Para o autor, foi a luta de classes entre os homens pobres do campo e os fazendeiros a maior motivação desses movimentos; era, segundo ele, “uma luta aguerrida contra o latifúndio, contra a miséria e contra a exploração” (Facó, 2009; p. 32). Ele caracteriza Contestado (1912-1916), Caldeirão (1936-1938), Pau de Colher, Pedra Bonita e o cangaceirismo — fenômeno que se prolongou até a década de 1930 — também como expressões de conflitos no interior do país. Para Facó, o latifúndio geraria lutas de classe desde sua origem. De início, com fazendeiros tentando salvaguardar suas propriedades de ataques de índios; depois contra as incursões de posseiros; mais tarde contra cangaceiros e fanáticos; e naquele momento contra o proletário rural sem terra.

Rui Facó, em Cangaceiros e fanáticos, faz uma análise da conjuntura que propiciou os acontecimentos de Canudos e Juazeiro. Para ele, esses movimentos aconteceram num período de crise de ordem econômica, ideológica e de autoridade. Era época em que findava o Império e a escravidão era abolida. Esses acontecimentos teriam abalado os critérios de mando da sociedade brasileira, principalmente no Nordeste. Contudo, nada disso permitiu que relações de produção de tipo superior, à base do trabalho livre, surgissem. As relações no campo, principalmente no Nordeste, continuavam a ser majoritariamente servis.

Além da crise do instituto escravista, o Brasil vivia também a crise do latifúndio pré-capitalista e o arruinamento dos antigos engenhos banguês do Nordeste. Os antigos engenhos de açúcar ruíam e eram substituídos pelas usinas de açúcar, sem que acontecesse, segundo Facó, uma revolução na Zona Canavieira. Uma nova estrutura mecânica foi implantada com as usinas de açúcar, mas os arcabouços do velho latifúndio permaneceram intactos. A usina intensificou, segundo ele, o processo de monopolização da terra. A renovação técnica preservou a situação de miséria das massas sem terra e agravou a concentração de terras no Nordeste.

Deste modo, Rui Facó considera que os “cangaceiros” e “fanáticos” eram o fruto da decadência de um sistema socioeconômico que tinha o latifúndio semifeudal como nexo fundamental. Essa situação de crise teria se agravado sobremaneira quando o centro da gravidade econômica se transferiu do Nordeste para o Sul, por conta do café. O latifúndio continuaria a entravar brutalmente o crescimento das forças produtivas, a mecanização da agricultura e o crescimento das indústrias. O monopólio da terra continuava a promover uma divisão de classes sumária: o senhor de grandes extensões de terras e o homem sem terra, o semisservo.

O Nordeste, do final do século XIX e início do século XX, é caracterizado pelo autor como uma sociedade em estágio econômico seminatural, na qual o capitalismo e as cidades tinham pouca influência e repercussão sobre o latifúndio semifeudal. As relações entre usineiro e homens pobres eram semisservis, pré-capitalistas [1].

Para Facó, o latifúndio reduzia as populações do interior ao mais brutal isolamento, ao analfabetismo quase generalizado, e deixava como única forma de consciência do mundo exterior a religião ou as seitas nascidas nas próprias comunidades rurais — vertentes do catolicismo. Os homens sem terra, ao formarem grupos de cangaceiros e seitas de “fanáticos”, como ficaram conhecidos Juazeiro e Canudos, organizaram-se e rebelaram-se por uma melhor condição de vida. Esses movimentos teriam sido rebeliões inconscientes contra a servidão da gleba, contra o latifúndio. Tiveram boa dosagem de misticismo religioso — o autor não nega —, mas eram mobilizados fundamentalmente pela dinâmica da luta de classes.

Com esse argumento, Rui Facó contrariava os historiadores que exageraram o misticismo religioso dos habitantes de Canudos e Juazeiro. Atribuindo-lhes a classificação de “fanáticos”, esses estudiosos retiravam o conteúdo progressista e reformador desses fenômenos, dando-lhes um sentido pejorativo.

O autor enumera ainda como uma das causas para o “banditismo” e do “fanatismo” o fato de o latifúndio criar em seu entorno um excedente de mão de obra capaz de assegurar a quase gratuidade da força de trabalho. Isso possibilitava a imposição de relações semisservis aos pobres do campo. Deste modo, criava-se no Nordeste dos fins do século XIX e início do XX um contingente de pessoas pobres, sem bens e sem terra, nômade, que fugia da seca e não era absorvida pelo latifúndio, mas tinha algo a reivindicar, ainda que não soubesse formular claramente essa reivindicação. Segundo Facó, a reação à miséria e à fome teria vindo com a formação de grupos de cangaceiros e de seitas místicas.

Facó aponta ainda que a ruptura da estagnação no campo se iniciou com o êxodo em massa de nordestinos para a Amazônia e para o Sul, por causa do surto da borracha e do cultivo do café, respectivamente. A fuga teria sido ocasionada também pelas constantes secas do Nordeste. Para ele, a emigração era o primeiro passo na busca de outras condições de vida e permitia que os homens pobres do campo se evadissem da imobilidade multissecular em que viviam. Graças ao contato com outras formas de vida social, estes migrantes, quando retornavam ao Nordeste, voltavam diferentes, menos conformados com a vida de miséria e de fome que levavam.

Não só o monopólio da terra explicaria o cangaço e o “fanatismo”. O atraso econômico, o isolamento do interior, o imobilismo social também seriam fatores geradores do cangaço e do “fanatismo”. Por essa razão, para o autor, a penetração do capitalismo no meio rural seria de suma importância, já que possibilitaria a existência de novas relações de produção e de troca, permitindo que o semisservo saísse da estagnação do meio rural e abrindo novos caminhos para os bandos de cangaceiros e para os místicos itinerários dos beatos e conselheiros.

Deste modo, com essa argumentação, Rui Facó contrariava as explicações, como as formuladas por Euclides da Cunha, que viam o cangaço com o resultado da má eugenia, de atavismos étnicos. Contrariava também aquelas que afirmavam que as condições biológicas geravam o fenômeno do cangaço. Assim, Rui Facó explicava o cangaceirismo e o fanatismo pelas circunstâncias sociais e econômicas, pela extrema desigualdade social provocada pela grande concentração de terras, acentuada pelo débil desenvolvimento do capitalismo no interior do país, local onde se constituiriam, de acordo com a sua leitura marxista, relações de produção pré-capitalistas, semifeudais, e que era marcado pelo pouco incremento das forças produtivas.

Longe de considerá-los como criminosos, como fez a historiografia do início do século XX, Rui Facó considerou os pobres do campo envolvidos nessas rebeliões como o resultado do atraso econômico. O “banditismo” e o “fanatismo” seriam movimentos subversivos, “elementos ativos geradores de mudança social” e “contestadores da pasmaceira imposta pelo latifúndio”. Esses homens eram consequência dos choques de classe e das lutas armadas.

Seriam, assim, o prólogo de uma revolução social que estaria por vir. Segundo ele, “banditismo” e “fanatismo” eram “elementos regeneradores de uma sociedade estagnada”, preparadores de uma nova época, representando um “primeiro passo para a emancipação dos pobres do campo”.

A opinião que marca a singularidade da interpretação de Facó é a de que Canudos e Contestado foram movimentos de cunho religiosos que revelavam uma drástica separação entre religiosidade popular e a religião oficial da Igreja Católica [2]. Na sua interpretação, o “fanatismo” constituía uma ideologia de cunho místico, condizente com a condição de vida das populações rurais do final do século XIX e início do século XX, que era contrária à ideologia das classes dominantes e das camadas médias urbanas.

Assim, ao longo do livro Cangaceiros e Fanáticos, Facó defende que a seita abraçada pelos homens pobres do campo, como toda ideologia, tinha um conjunto de conceitos morais, religiosos, artísticos que traduziam suas condições materiais de vida e eram antagônicos às ideologias das classes dominantes. Ele considera que em todos os casos analisados — principalmente em Juazeiro, Canudos e em Contestado — as massas espoliadas teriam criado uma religião própria, uma espécie de consciência primária, no sentido marxista do termo, que lhes serviu de instrumento na luta por sua libertação social contra o latifúndio e contra as relações semifeudais de produção. O “fanatismo” teria sido o elemento de solidariedade grupal impulsionador de uma reação contra a ordem dominante [3]. Deste modo, a tônica da interpretação marxista do autor é dada pela crença de que essas aglomerações seriam movimentos de tipo primário que traduziam, contudo, as aspirações da população rural empobrecida em luta pela libertação do jugo do latifúndio.

Dora Vianna Vasconcellos é socióloga, mestre em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura (CPDA-UFRRJ)/ Rio de Janeiro.

Notas

[1] “Nas terras dos grandes proprietários, eles (os agregados, a gente pobre, os foreiros) não gozam de direito político algum, porque não têm opinião livre; para eles o grande proprietário é a polícia, os tribunais, a administração, numa palavra tudo; e, afora o direito e a possibilidade de os deixarem, a sorte desses infelizes em nada difere da dos servos da Idade Média”. Facó, apud Freyre, Gilberto. Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.

[2] Outro ponto de vista controverso defendido por Rui Facó é o de que a Igreja Católica desempenharia o papel de polícia ideológica no meio rural, antecipando as forças repressivas da Polícia, do governo e dos potentados rurais. Era a força que convertia, pela repressão, o protesto inconsciente e até então passivo dos “crentes” em um movimento contra a ordem das coisas existentes.

[3] Facó argumenta que, em todos os lugares onde esse fenômeno se desenvolveu, as populações rurais não só ocuparam uma determinada área de terra, mas também organizaram formas de trabalho cooperativo que contrariavam as relações servis. Esse fato comprovaria, segundo o autor, o teor revolucionário de manifestações populares como Canudos e Juazeiro.

Vannuchi: comissão favorece Forças Armadas

DEU EM O GLOBO

Secretário de Direitos Humanos volta a defender punição para militares e afirma que não há revanchismo BRASÍLIA. O secretário especial de Direitos Humanos da Presidência da República, ministro Paulo Vannuchi, disse ontem que a criação da Comissão da Verdade não é um ato contra as Forças Armadas. Em entrevista a Agência Brasil, Vannuchi defendeu a apuração de fatos ocorridos no período da ditadura militar e disse não ver motivos para divergências entre a área de direitos humanos do governo e os militares.

- Criar a Comissão da Verdade é a favor das Forças Armadas, que são formadas por oficiais militares das três armas, pessoas dedicadas à pátria, ao serviço público, com sacrifícios pessoais, das suas famílias. Esses oficiais não podem ser misturados com meia dúzia, uma dúzia ou duas dúzias de pessoas que prendiam as opositoras políticas, despiam-nas e praticavam torturas sexuais, que ocultaram cadáveres - disse Vannuchi. - É um grande equívoco e eu tenho certeza de que o ministro da Defesa (Nelson Jobim) sabe disso.

Para Vannuchi, a criação da Comissão da Verdade é uma forma de não permitir o uso das Forças Armadas para acobertar crimes contra os direitos humanos. O ministro disse ainda que os contrários à criação da comissão não leram a proposta:

- O programa não é contra a Lei da Anistia. Não se trata nem de revisão e nem de anular a lei. Está lá, no item que propõe a ação programática 23, que propõe a elaboração de um projeto de lei, até abril, instituindo uma Comissão Nacional da Verdade, nos termos definidos pela Lei da Anistia. Não há nenhum sentido revanchista.

A criação de uma comissão especial para investigar casos de tortura e desaparecimentos ocorridos durante a ditadura militar (1964-1985) está prevista em decreto que cria o Programa Nacional de Direitos Humanos, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na semana passada.

Reunião no dia 11 decidirá sobre comissão

A ideia desagradou os militares e provocou uma crise, com Jobim e os três comandantes militares entregando ao presidente Lula cartas de demissão. Para os militares, a comissão teria o objetivo de revogar a Lei de Anistia de 1979, que extinguiu crimes políticos cometidos durante a ditadura. Lula rejeitou os pedidos de demissão, alegando que não conhecia o completo teor do programa, e prometeu rever a parte do decreto que gerou o descontentamento. Ontem, Vannuchi insistiu que não se pode defender os que praticaram crime de tortura:

- É necessário terminar um processo sem revanchismo, sem retorno ao passado e de mãos estendidas para a reconciliação nacional. Mas essa reconciliação não pode representar acobertar, jogar milhares de bons cidadãos brasileiros, do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, na defesa de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade.

O ministro disse que tudo será resolvido em reunião, quando o presidente Lula retornar ao trabalho, em 11 de janeiro.

- Nesse dia estaremos juntos ouvindo as orientações do presidente - acrescentou o ministro.

Clóvis Rossi:: Sobre verdades e venenos

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Episódio de envenenamento de opositores à ditadura de Augusto Pinochet no Chile tem pista brasileira revelada

A Comissão da Verdade, proposta pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, bem que poderia começar procurando a verdade nos argumentos contra ela esgrimidos pelos comandantes militares. Não vai encontrar.

O argumento mais popular, a julgar pelo Painel do Leitor de ontem desta Folha, é o de que a proposta quer investigar os abusos de um lado (o dos militares) e ignorar os do outro (os militantes da esquerda armada). Ou é desinformação ou má-fé.

Todos os abusos da esquerda armada foram punidos. Alguns, na forma da lei. Outros, muitos, à margem da lei, por meio de assassinatos, torturas, exílio, banimento, desaparecimentos.

Já os abusos praticados pelo aparato repressivo não foram nem investigados, com pouquíssimas exceções.

Para ficar apenas no âmbito mais próprio para este espaço, o internacional, está mais do que na hora de buscar a verdade sobre a Operação Condor, o mecanismo repressivo multinacional armado pelas ditaduras militares do Cone Sul, nos anos 70/80.

Deve haver, escondido em algum arquivo bem protegido, um documento assinado por chefes militares da época anulando a soberania de cada país para que militantes da oposição às ditaduras pudessem ser caçados livremente.

Eu mesmo andei atrás desse papel, quando estava para cair a ditadura boliviana da época (começo dos 80), a primeira brecha que se abriria para ter acesso a arquivos oficiais. Um coronel, que fazia a ligação entre o candidato presidencial Hernán Siles Zuazo e as Forças Armadas, me disse que teria, sim, que haver um documento oficializando, digamos assim, a Operação Condor.

Pena que um novo golpe adiou a vitória de Siles, e perdi a pista.

Ainda nesse terreno de repressão internacional, a nova comissão poderia procurar a verdade sobre o envenenamento de opositores à ditadura de Augusto Pinochet. No domingo, o jornal espanhol "El País" fez um belo levantamento sobre a morte, por aparente envenenamento, do ex-presidente Eduardo Frei Montalva, pai de Eduardo Frei Ruiz-Tagle, também ex-presidente e hoje candidato de novo.

A investigação indica que Frei foi assassinado com três doses de mostarda sulfúrica, tálio e um fármaco não identificado.

No percurso para chegar a essa suspeita surgiu o caso de quatro militantes políticos presos em uma cadeia de segurança máxima em Santiago. Todos foram também envenenados, juntamente com quatro presos comuns, mas Ricardo Aguilera, então com 28 anos, sobreviveu.

Para encurtar a história, descobriu-se que o agente venenoso era a bactéria "clorstridium botulinum", que provoca botulismo, e chegara ao Chile "em um pacote letal enviado do Brasil por valise diplomática", segundo "El País".

Em vez de incomodar-se com uma "Comissão da Verdade" não seria mais lógico que os comandantes militares brasileiros se preocupassem com o uso do território nacional, pelo qual têm a obrigação de zelar, para um crime político?

Villas-Bôas Corrêa:: As férias de Lula e dos convidados

DEU NO JORNAL DO BRASIL

Contra fatos não há argumentos: o presidente Lula é uma das mais poderosas vocações de líder popular da história deste país. E não é provável que este século produza rival que lhe faça sombra. Nada a estranhar nas merecidas férias, com numerosos convidados nas praias paradisíacas da Base Militar de Aratu, da Bahia dos balangandãs, de Dorival Caymmi e do Senhor do Bonfim.

Os planos de descanso em local reservado, com pouca gente, não resistiram à amistosa pressão de parentes, amigos mais chegados e convidados especiais. O governador da Bahia, Jaques Wagner, é um dos penetras oficiais. Lurian, a filha de Lula, não podia faltar. A praia é imensa, espaço é o que não falta, e Lula e Marisa Letícia terão os seus momentos de privacidade. Afinal, no próximo Natal e Ano-Novo o presidente Lula será um ex-presidente sonhando com mais dois mandatos.

A ausência da candidata, ministra Dilma Rousseff, que não desgruda do presidente nas viagens domésticas da pré-campanha para os comícios nas visitas às obras do PAC e do Minha Casa Minha Vida é explicada pela cautela com a saúde.

Claro que nem tudo são flores em dois mandatos, com a agenda entupida de compromissos internacionais, pois Lula não recusa convite nem para missa de sétimo dia ou para visita a qualquer país dos cafundós da África. Mas os sinais de fadiga são desculpa mais conveniente para os escorregões presidenciais, cada vez mais frequentes, comentados em surdina por assessores, parlamentares e raros ministros.

Na véspera da viagem, na solenidade da sanção do projeto de lei que beneficia os taifeiros da Aeronáutica, Lula não apenas escolheu o mais inadequado momento como o pior tema para criticar a imprensa. E o presidente com o maior, mais sofisticado e competente sistema de publicidade no mundo, para criticar os repórteres que suportam a humilhação de cobrir o pior, mais escandaloso e desmoralizado Congresso da história deste país, virou as costas à evidência e apelou para o sofisma: “Se a gente for analisar o conjunto do trabalho produzido pelo Congresso durante o ano, vai perceber que tem muito mais coisa positiva do que negativa”.

Ora, com todo o respeito, será que o presidente não lê as manchetes dos jornais? Nem folheia as revistas? Ou não passa os olhos pelos resumos da sua competente equipe de excelentes profissionais? Será que não viu nos noticiários das redes de TV a degradante sequência do governador de Brasília, José Roberto Arruda, derreado na poltrona do seu gabinete e distribuindo pacotes de notas com as propinas milionárias de R$ 100 mil, R$ 200 mil que cada um escondia nas meias, na cueca, nos bolsos, nos sapatos e uma senhora na bolsa de confiança para o transporte dos maços de notas?

Mas este é um episódio do big boss de araque, um governador que não devia existir na cidade construída para ser a capital do Brasil. Mas, e a roubalheira com as verbas do Senado? E se remexer no lixo da Câmara, teremos um bis de arromba para o início do próximo ano parlamentar.

E que tal a sutileza da lógica presidencial: “Não fazemos distinção de que partido é o governador ou o prefeito. Você não pode deixar de dar comida a um porco porque não gosta do dono do porco”. A degringolada do governador do DF, Roberto Arruda, tocou na corda sensível do coração presidencial, inspirando esta frouxa desculpa: “A imagem não fala por si. O que fala por si é todo o processo de investigação e de apuração”.

Lula também encaixa observações sutis e generosas. No acaso de uma visita ao quartel de comando do II Exército, no Ibirapuera, onde Dilma Rousseff esteve presa e foi torturada, quando o helicóptero parou, a ministra-candidata olhou para o presidente e comentou:

“Engraçado, eu não tenho raiva. Eu vim para cá quando fui presa”.

Na cerimônia recente, em 21 de dezembro, do lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos, a ministra Dilma Rousseff, estreando o novo cabelo ainda curto, emocionou-se às lágrimas ao lembrar os dias de prisioneira: “Muitas pessoas foram presas, torturadas e mortas pelo regime militar”.

Testemunho de uma possível presidenta da República.