sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Opinião do dia - Joe Biden*

O atual presidente alimentou a escuridão americana por muito tempo. Trouxe muita raiva, muito medo, muita divisão. Aqui e agora, dou-lhe a minha palavra: se me confiarem a Presidência, recorrerei ao melhor de nós, não ao pior. Serei um aliado da luz, não das trevas. Todas as eleições são importantes. Sabemos profundamente de suas consequências. Esta é uma eleição que definirá a vida

Embora eu seja um candidato democrata, serei um presidente americano. Vou trabalhar duro por aqueles q não me apoiaram, tão duro por eles quanto por aqueles que votaram em mim. Esse é o trabalho de um presidente, representar todos nós, não apenas nossa base ou partido.

*Joe Biden, candidato à presidência da República dos Estados Unidos, em discurso na Convenção do Partido Democrata, 19/8/2020.

Fernando Gabeira - A escolha dos pobres

- O Estado de S.Paulo

Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho a ajuda emergencial

A divulgação da pesquisa com aumento da popularidade de Bolsonaro não deveria surpreender tanto. A negação da pandemia de coronavírus, para muitos de nós, parecia um fator de desgaste. Mas nem isso colou, pois 47% dos entrevistados consideram que Bolsonaro não tem culpa pelo fracasso nacional diante da pandemia.

O ponto elementar do aumento do prestígio de Bolsonaro é a ajuda emergencial. No início queria que fosse de R$ 200, mas as negociações com o Congresso acabaram elevando-a para R$ 600. Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho essa extraordinária transferência de renda, que salvou muita gente e em alguns pontos do Nordeste melhorou as condições de vida.

Isso tudo, num momento em que discutimos a democracia e seus limites, deveria ser visto com bastante calma. Em primeiro lugar, é comum em todos os estudos da democracia apontar um apoio maior ao governo em regiões que dependem da assistência oficial. Tem sido assim no Nordeste. De modo geral, é a última região onde os governos perdem força.

Os anos em que a esquerda esteve no poder deram-lhe a sensação de que estava selada entre ela e a população mais pobre uma aliança histórica irreversível. Há muita ilusão nessa ideia. Alguns críticos da esquerda afirmam que ela errou por considerar apenas o aspecto fisiológico da aliança, sem avançar na educação política. Pessoalmente, acho que errou apenas ao enfatizar as melhorias no aumento de um tipo de consumo, deixando de lado alguns avanços que seriam vitais para os pobres, como, por exemplo, o saneamento básico.

Sergio Fausto* - A aposta de Bolsonaro

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Para reeleição, presidente conecta-se aos pobres pela via do conservadorismo de base religiosa e da transferência direta de renda ampliada na esteira da pandemia

Seis meses e 100 mil mortos depois do início da pandemia, Bolsonaro segue vivo e competitivo para a disputa presidencial de 2022. Continua a manter entre 30% e 35% de apoio nas pesquisas de opinião. Mas sua base social está se deslocando: ao longo dos últimos meses, o presidente perdeu terreno nas faixas de renda e educação mais altas e ganhou espaço em setores mais pobres da população, graças ao aumento da transferência direta de renda para esses setores.

Também sua base política se alterou, com redução do peso relativo dos fiéis de primeira hora e ampliação da presença de parlamentares ligados à política tradicional. São movimentos incipientes, que mal comparando lembram os que Lula levou a cabo com maestria para sair do córner político na crise do mensalão e reeleger-se com folga dois anos depois. Eles coincidem com um recuo na escalada de confrontação contra o STF, governadores e prefeitos em que se engajou Bolsonaro a partir do início da pandemia.

Estaria em curso um processo de ajustamento do atual governo a padrões mais normais, no sentido de frequentes, na história brasileira? Não creio.

Longe de ser uma decisão estratégica, o recuo na escalada de confrontação é tático e circunstancial, provocado pelo medo decorrente de investigações que apontam para o núcleo de articulação da rede bolsonarista, no qual figuram com destaque os seus filhos. A interação entre os processos investigatórios e a dinâmica política é um jogo de vários lances, apenas iniciado. Um jogo no qual Bolsonaro jogará pesado, pois sabe o que está em jogo.

Tampouco o deslocamento da base social de apoio ao presidente é fruto de uma decisão estratégica. Foi do Congresso a proposta de triplicar o valor do programa de auxílio emergencial proposto pelo Executivo, contra a vontade do Ministério da Economia. Bolsonaro intuiu a oportunidade e agarrou-se a ela. Sem o bote salva-vidas do auxílio emergencial, sua popularidade se situaria hoje abaixo da linha d’água dos “mágicos” 30%.

Bolívar Lamounier* - Os guizos falsos da alegria

- O Estado de S.Paulo

A verdade nua e crua é que já não compreendemos o país em que vivemos

O deus Apolo concedeu à bela Cassandra o dom da profecia, mas dela não obteve a desejada recompensa sexual. O deus, então. puniu-a de uma forma devastadora. Determinou que ninguém mais daria crédito a suas profecias, que passariam a ser ouvidas como manifestações de um repetitivo e infundado pessimismo.

No século 18, ironizando a filosofia de Leibniz, Voltaire criou o Dr. Pangloss, uma Cassandra com o sinal trocado, empenhado em nos convencer de que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Na História brasileira, até o limiar da 2.ª Grande Guerra, tivemos muito mais Cassandras que Panglosses, e não por acaso. Ameno em alguns, virulento em outros, nosso cassandrismo foi elaborado por uma plêiade de brilhantes historiadores e ensaístas. Tributário da cultura ibérica, colonizado por Portugal, atrelado à monocultura, o futuro brasileiro pouco ou nada teria de promissor. Sua variante talvez mais aguda foi a formulada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1936). Para ele, o que nos condenava era nossa incapacidade de construir um Estado digno de tal nome: “A ideia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal, pairando sobre os indivíduos e presidindo seus destinos, é dificilmente inteligível para os povos da América Latina”.

No pós-guerra abrimos espaço para um panglossianismo moderado, aderindo ao “desenvolvimentismo” que começava a empolgar todo o Terceiro Mundo. Aceitamos a tese de Raimundo Faoro (Os Donos do Poder, 1958) segundo a qual a herança portuguesa não seria propriamente a inexistência de um Estado. Tínhamos um poder central poderoso, mas patrimonialista. Patrimonialismo, como sabemos, é aquele tipo de organização política em que o rei distribui todos os ativos valiosos e as melhores oportunidades de enriquecimento a seus apaniguados. Melhor que nada, quem não tem cão caça com gato. No mesmo ano, com sua celebrada Formação Econômica do Brasil, Celso Furtado robusteceu substancialmente nosso mirrado panglossianismo. Um poder central capaz de planejar a economia era do que precisávamos para implantar a industrialização substitutiva de importações, que nos conduziria à terra prometida.

José de Souza Martins* - O suspeito

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Em três casos recentes, agentes da lei claramente despreparados agiram contra a liberdade ou a vida de alguém com base em impressões subjetivas e preconceituosas

Nos últimos dias, diferentes manifestações de violação de direitos e de violência contra brasileiros desprotegidos, em diferentes lugares, indicam que aqui o Estado brasileiro vem se tornando, cada vez mais, um Estado mais excludente do que o de todas as excludências que são correntemente denunciadas. Em aparentemente inócuas ações de seus agentes e, supostamente, mas nem sempre, até em nome da lei vai se expondo o perfil de um Estado autoritário e anticidadão porque trata um grande número de pessoas como descartáveis.

Os casos são o de um jovem de 18 anos, Matheus, negro, que, num shopping do Rio, foi abordado por dois sujeitos brancos que, verificou-se depois, eram policiais militares prestando serviços a uma empresa privada de segurança. Não estavam a serviço da Polícia Militar, mas a serviço do shopping.

Matheus é entregador e ganha R$ 2 mil por mês. Fora a uma relojoaria trocar o relógio que comprara para dar de presente ao pai no Dia dos Pais. Já na loja, enquanto aguardava ser atendido, foi abordado pelos dois sujeitos, convidado a sair e na escada de serviço foi derrubado. Um dos agressores estava armado. Eles o acusavam de furto.

No Sacomã, em São Paulo, Rogério, de 19 anos, branco, trabalhador registrado, comemorava na rua de casa, com a família e amigos, seu aniversário e o Dia dos Pais. Pediu a um amigo a moto emprestada para dar uma volta no bairro. Foi seguido por dois PMs, de moto, e filmado parando a moto e caindo em seguida. Levara um tiro nas costas.

Maria Cristina Fernandes - Auxílios contaminam disputa municipal

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Prefeitos e vereadores aprovam versões semelhantes à ajuda federal e podem fazer desta eleição a mais favorável aos detentores de mandato desde a redemocratização

O bônus que o auxílio emergencial trouxe para a popularidade do presidente da República inspirou prefeitos e vereadores que disputarão as eleições de novembro a criar programas parecidos ou incrementar aqueles já existentes nos municípios. A implantação do benefício é apenas mais um de conjunto de fatores que pode fazer desta eleição a disputa mais favorável, desde a redemocratização, para aqueles que já detêm mandato no Executivo ou Legislativo.

Entre os municípios que adotaram a medida contam-se tanto aqueles que criaram o benefício por lei aprovada nas Câmaras de Vereadores com duração prevista para a pandemia, como Altamira (PA), Niterói (RJ), Serra (ES) e São Cristóvão (SE), quanto outros que aumentaram a base de beneficiários de programas já existentes, como Campinas (SP). Contam-se também aqueles com benefícios destinados a categorias profissionais específicas, como em São Paulo (SP) e Campina Grande (PB).

A criação do benefício, porém, está longe de ser pacífica nos municípios. Em Serra, por exemplo, município da Região Metropolitana de Vitória, cuja população de mais de meio milhão de habitantes supera a da capital capixaba, colocou prefeitura e Câmara em lados opostos.

Os vereadores aprovaram o benefício municipal de R$ 500 por três meses para trabalhadores informais com renda de até três salários mínimos, com previsão para atingir 42 mil famílias. O prefeito Audifax Barcelos (Rede), que ruma para concluir seu segundo mandato, barrou e os vereadores derrubaram o veto.

A prefeitura alegou que a Câmara não pode criar despesas - esta onerará os cofres municipais em R$ 63 milhões - e os vereadores rebateram com o argumento de que a emenda constitucional que estabeleceu o estado de calamidade pública no país abriga sua vigência.

Merval Pereira - Outros recados

- O Globo

O Supremo Tribunal Federal (STF) marcou de maneira expressiva, por 9 votos a 1, sua posição em defesa do Estado de Direito ao proibir o ministério da Justiça, com evidente efeito para todos os demais órgãos do governo Bolsonaro, de fazer dossiês “sobre a vida pessoal, escolhas pessoais ou políticas e práticas cívicas exercidas por opositores ao governo”, seguindo o voto da relatora, ministra Carmem Lucia.

Mas, ao mesmo tempo, o julgamento serviu para demonstrar que continuamos nos guiando por regras de compadrio e leniência, esta por parte do Procurador-Geral Augusto Aras. Os ministros que criticaram tão duramente os dossiês não aceitaram investigar o ministro da Justiça e Segurança Pública André Mendonça ´(foto) por ter mandado fazê-lo, aceitando a cândida explicação de que ele só teria começado a ser feito no dia 24 de abril, por coincidência o dia em que o ministro anterior, Sérgio Moro, pediu demissão do cargo.

Como é humanamente impossível que um dossiê iniciado num dia determinado estivesse, meses depois, tão recheado de informações, parece claro que essa explicação merece pelo menos ser investigada. Se o dossiê é obra do ex-ministro Sergio Moro, desafeto do presidente Bolsonaro, por que André Mendonça não denunciou sua existência assim que tomou conhecimento dele pela imprensa?

Se não foi ele o autor da ordem, por que não suspendeu o dossiê assim que a imprensa denunciou sua existência? Por que, considerando grave a existência de tal dossiê, ao demitir o servidor responsável Secretaria de Operações Internas (Seopi) não renegou publicamente a prática de espionagem? Por que passou dias negando sua existência, e até mesmo se recusou a entregá-lo à ministra Carmem Lucia, alegando cinicamente que ela não havia pedido, só o fazendo depois que o Congresso o pressionou?

Luiz Carlos Azedo - O esgotamento do milagre

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Os militares se retiraram em ordem para os quartéis, após a eleição de Tancredo Neveso, o, , em 1985. Agora, estão de volta ao poder, na garupa do presidente Jair Bolsonaro”

No Brasil republicano, houve dois longos ciclos de modernização do Estado e da economia, ambos em regimes ditatoriais. O primeiro, após a Revolução de 1930, que culminou no Estado Novo, durou 15 anos e se esgotou com o fim da II Guerra Mundial e a redemocratização; o segundo, após o golpe militar de 1964, resultou numa ditadura de 21 anos. Em dois momentos, porém, foi possível realizar ciclos de modernização do Estado e da economia em bases democráticas, durante os governos Juscelino Kubitschek (1956 a 1961), com seu Plano de Metas, e Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002), com o Plano Real.

Como foi a ascensão e queda do “milagre econômico” dos militares? O I Plano Nacional de Desenvolvimento, no governo do general Garrastazu Médici, idealizado pelo ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Veloso, pretendia pôr o Brasil entre as nações desenvolvidas no espaço de uma geração. Para tanto, duplicaria a renda per capita do país até 1980; elevaria o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) até 1974, com base numa taxa anual entre 8% e 10%; e elevaria a taxa de expansão do emprego até 3,2% em 1974, além de reduzir a inflação.

A meta foi ultrapassada: o crescimento do PIB, de 1967 a 1973, foi de cerca de 10,2%, e de quase 12,5% entre 1971 e 1973, diante de uma média de 7% no pós-guerra, até o início dos anos 1960. Diante do crescimento da população de 2,9% ao ano, a segunda grande meta, de aumento do PIB per capita à taxa de cerca de 6%, também foi alcançada. Entre 1967 e 1973, população aumentou de 85,1 milhões para 99,8 milhões de habitantes, o produto per capita cresceu à taxa média de 7,2%. O nível de emprego passou “de 2,8% para a ordem de 3,3% em 1973”. Outra “grande meta” era o aumento do investimento fixo bruto em 58% de 1969 para 1973. Entre 1971 e 1973, a formação bruta de capital fixo correspondeu, em média, a 21% do PIB, alcançando 22,4% em 1973. Apenas no período de 1970 a 1973, o aumento real do nível de investimento foi de 62,9% –– novamente ultrapassou a meta estabelecida em 1970.

Ricardo Noblat - Aperta o cerco ao senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um

- Blog do Noblat | Veja

Depósitos suspeitos em dinheiro vivo

O primogênito do presidente Jair Bolsonaro tem mais o que fazer em setembro do que atender à convocação do Ministério Público Federal do Rio para ser acareado com o empresário Paulo Marinho. Foi o que disseram seus advogados, e, como senador, ele tem de fato o direito de escolher dia e hora para depor.

Marinho disse que às vésperas da eleição presidencial de 2018, Flávio foi avisado por um delegado da Polícia Federal que seu assessor Fabrício Queiroz seria em breve um dos alvos de uma operação de combate à corrupção, e que o fato poderia prejudicar a candidatura do seu pai, líder das pesquisas.

Foi o próprio Flávio quem teria revelado isso à Marinho, na casa do empresário. Queiroz foi demitido no dia seguinte, bem como uma de suas filhas, funcionária do gabinete de Bolsonaro, o pai, em Brasília. Flávio admite a reunião com Marinho, mas nega o teor da conversa. Um dos dois, portanto, mente. Daí a acareação.

Dora Kramer - Bichos-preguiça

- Revista Veja

Multiplicaram-se os partidos de oposição, enquanto se reduziu o cardápio de nomes à disposição

A inexistência de oposição ativa no Brasil atinge a maioridade em outubro, quando se completam dezoito anos que o PT ganhou a Presidência da República e virou situação. De lá para cá foi se enterrando a atividade oposicionista conduzida pelos partidos e entendida como tarefa que implica a adoção de estratégias claras, táticas eficazes, consistência de discursos, nitidez de propostas e atuação assertiva de lideranças com identificação em um ou mais grupos sociais.

O que temos hoje é uma gritaria de internet de um lado, onde a agressividade assume o lugar da assertividade levando à perda de consistência, e de outro a atuação das instituições em reação a abusos de poder, coisa que não deveria, mas acaba sendo confundida com exercício de oposição. Há posicionamentos importantes de personalidades e entidades, mas sem organização partidária por trás tais manifestações resultam em dispersão de esforços.

Um resquício de vida útil no ofício saudável do contraditório ainda permaneceu enquanto vigorou a dicotomia PT-PSDB, extinta por vários motivos, entre os quais destaca-se a fadiga de material, que acabaram resultando na percepção do eleitorado de que a escolha de alguém fora do mapa da normalidade seria a solução para o país.

O exemplo de 1989, quando havia 22 candidaturas e várias de boa qualidade, mas a maioria preferiu optar pela invencionice à deriva, não foi suficiente para evitar a repetição do equívoco.

Eliane Cantanhêde - Bem feito!

- O Estado de S.Paulo

Com prisão de Steve Bannon, lá se vai o guru internacional da direita e dos Bolsonaro

Bem feito para os idiotas que doaram mais de US$ 25 milhões para construir um muro entre os Estados Unidos e o México, ou seja, entre países, pessoas, famílias, humanidade e desumanidade. Pensavam que estavam comprando cimento e tijolos, mas estavam financiando os luxos de tipos abomináveis como Steve Bannon, ex-estrategista de campanha e de governo de Donald Trump e idolatrado pelo presidente Jair Bolsonaro, seus filhos, ministros e puxa-sacos em geral.

Num mundo tão globalizado quanto desigual, é chocante que o presidente e tantas pessoas na maior potência defendam um muro para se isolar de pessoas consideradas menos gente, menos humanas. Deveriam fazer o oposto e doar para famílias, velhos e crianças viverem com dignidade, mas, em vez de contribuir com a igualdade, os doadores incautos do muro aprofundam a desigualdade: eles lá, com sua miséria e sem horizonte; nós cá, com a nossa pujança e egoísmo. Dúvida: quem vai lavar as privadas e cuidar das crianças dos doadores? Mas essa é outra história.

Entre os que fizeram papel de bobos, pode haver americanos de diferentes origens e até imigrantes... latinos. Latinos construindo muro contra latinos. Com uma curiosidade: Donald Trump tem ojeriza a imigrantes, mas é casado com uma eslovena. Logo, a ojeriza não é ao imigrante, é ao pobre, perseguido, desvalido. Branca, bonita e capaz de se imiscuir na elite, aí pode.

Bernardo Mello Franco - O guru dos impostores

- O Globo

Steve Bannon foi o principal estrategista da campanha que levou Donald Trump à Casa Branca. O ideólogo mostrou como usar as redes para disseminar ódio e desinformação. Ajudou a transformar um magnata folclórico em fenômeno eleitoral.

Trump ganhou votos com promessas mirabolantes, como a construção de um muro na fronteira entre os EUA e o México. A ideia não saiu do papel, mas ajudou Bannon a ficar mais rico. Ontem ele foi preso, acusado de desviar dinheiro de uma vaquinha virtual. Arrecadou US$ 25 milhões a pretexto de erguer a barreira contra imigrantes.

No livro “Os engenheiros do caos”, o italiano Giuliano Da Empoli conta como o propagandista transportou lições dos videogames para a política. Aoatuar na indústria de jogos eletrônicos, Bannon descobriu a existência de comunidades digitais com milhões de participantes. Seus fóruns eram terreno fértil para difundir boatos e teorias conspiratórias.

Com a ajuda de algoritmos, os ambientes foram replicados para turbinar a campanha republicana. Atraíram eleitores que se sentiam desprezados pelo sistema e excluídos do banquete da globalização. Era uma massa invisível para os políticos e os institutos de pesquisa, que apostaram na vitória de Hillary Clinton.

Bruno Boghossian – Bisbilhotagem selecionada

- Folha de S. Paulo

Presidente blinda extremistas enquanto ministério monitora policiais críticos ao Planalto

Quando o STF mandou bloquear páginas de bolsonaristas que espalhavam mensagens de ódio e defendiam um golpe de Estado, em julho, o governo se apressou para socorrer os acusados. O próprio presidente acionou o tribunal e pediu que fossem reativadas as contas dos militantes –incluindo uma extremista que usa a rede para praticar crimes.

Jair Bolsonaro mobilizou a Advocacia-Geral da União em defesa daquela tropa. Nenhum dos alvos era agente público, mas o presidente cobrou a suspensão da medida e tentou blindar o grupo que fazia um trabalho sujo a seu favor.

Esse mesmo governo moveu sua máquina para cercar um conjunto de seus críticos. A produção do dossiê do Ministério da Justiça que fichou professores e 579 policiais identificados como antifascistas foi suspensa nesta quinta (20) pelo Supremo. No julgamento, os ministros do tribunal escancararam o monitoramento de opositores de Bolsonaro.

Hélio Schwartsman - Vacina e ideologia

- Folha de S. Paulo

É por nossa conta que transformamos questões técnicas em batalhas ideológicas

Numa rara boa notícia sobre a pandemia, o Datafolha aferiu que 89% dos brasileiros pretendem vacinar-se contra a Covid-19 tão logo o fármaco esteja disponível. Esse número contrasta com o dos EUA. Pela pesquisa comparável mais recente que encontrei, a da NPR/PBS NewsHour/Marist, apenas 60% dos americanos intentam fazer o mesmo.

Igualmente interessante, no Brasil não parece haver um componente ideológico muito forte na predisposição a imunizar-se. A taxa dos que tomariam a vacina é de 86% entre os que avaliam bem o governo Bolsonaro e de 92% entre os que avaliam mal. Já nos EUA, o fator político aparece com muito mais intensidade. Tomariam a vacina 71% dos entrevistados que se identificam como democratas contra apenas 48% dos que se dizem republicanos.

Na prática, isso significa que provavelmente teremos menos dificuldade para convencer a população a imunizar-se contra a Covid-19 por aqui. Significa também, como eu já havia sugerido, que a queda na cobertura vacinal registrada no Brasil nos últimos anos tem mais a ver com preguiça/desinteresse do que com uma militância mais ativa contra a imunização, ao contrário do que se verifica em outros países.

Reinaldo Azevedo - O Congresso é bom; o governo, horrível

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro e Guedes falam asneiras, e depois cabe ao Parlamento corrigir os desatinos

Pois é... Jair Bolsonaro e Paulo Guedes fazem e falam asneiras —iguais ou desiguais, elas sempre se combinam—, e cabe ao Congresso, particularmente a Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, corrigir os desatinos. É o caso do reajuste de algumas categorias profissionais dos servidores. Às vezes, dá certo, como nesta quinta. O veto presidencial foi mantido por 316 votos a 165.

Mas Guedes não sossega. Ele já está cavando uma nova crise com a sua proposta da “PEC-Combo”, que pretende juntar tudo ao mesmo tempo agora: PEC emergencial, pacto federativo e, de aperitivo, a nova CPMF bombadona. Quem não sabe aonde vai escolhe qualquer caminho. E o Congresso que se vire.

Voltemos ao veto. Não se chega a bom lugar com dados falsos. Era mentira que “o dinheiro da Saúde seria usado para pagar servidores”. Isso é facilitação estúpida. O auxílio emergencial repõe parte do ICMS e do ISS e não sai com carimbo.

Mais: se todas as categorias excepcionadas na proposta aprovada pelo Congresso tivessem o reajuste, em todas as esferas, a conta chegaria a R$ 98 bilhões, não a R$ 130 bilhões. Mas quem disse que seria assim? É um chute. União, governadores e prefeitos agiriam como ordem unida? Aplicando o mesmo índice? Ora...

Os tais R$ 130 bilhões eram tão verdadeiros como os supostos R$ 280 bilhões que a União teria de desembolsar caso tivesse vingado o texto aprovado na Câmara no dia 13 de abril, que previa reposição a estados e municípios por seis meses, tendo como referência o arrecadado em 2019.

Rogério Furquim Werneck - Sob o teto de gastos

- O Globo / O Estado de S. Paulo

É preciso saber ir além do jogo de cena e dos esforços de manutenção das aparências

A questão não é saber se e quando Paulo Guedes sairá do governo. O que de fato importa é se houve mudança decisiva e inequívoca na forma como o Planalto percebe as possibilidades de condução da política fiscal no país. E, quanto a isso, já não há margem a dúvidas. Não há mais como alimentar ilusões sobre o real compromisso de Jair Bolsonaro com a preservação do teto de gastos.

É preciso saber ir além do jogo de cena e dos esforços de manutenção das aparências que terão lugar nas próximas semanas. E perceber, em meio ao discurso ambíguo de Bolsonaro, que a restrição de gastos passou a ser vista como um estorvo. Ao mesmo tempo que já não esconde que está explorando subterfúgios de contabilidade criativa para violá-la, o presidente declara-se disposto a patrocinar mudanças na legislação que garantam o disparo dos gatilhos requeridos para a preservação do teto.

Mas é bom lembrar que o propósito do teto e dos gatilhos é gerar desconforto. Fazer o sistema ranger. A ideia é que a compressão automática da remuneração dos servidores públicos — por redução de salários e de jornada de trabalho — e o risco de shutdown iminente da administração pública possam engendrar o senso de urgência que se faz necessário. E sirvam para dar ao Executivo, ao Congresso e ao Judiciário a convicção requerida para viabilizar formas mais racionais e sustentáveis de contenção de gastos.

Claudia Safatle - Paulo Guedes assume Pró-Brasil

- Valor Econômico

Governo pensa em desonerar folha de pagamento isentando contribuição patronal para salários até dois mínimos

O governo vai apresentar, na próxima semana, o programa Pró-Brasil - que deixou de ser uma lista de obras a serem financiadas com dinheiro do orçamento público para ser uma plano de ação com foco no emprego e na renda.

Foi em torno da iniciativa de três ministros - o chefe da Casa Civil, Walter Souza Braga Netto, do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas - que surgiu o Pró-Brasil. O plano gerou polêmica sobre o cumprimento ou não da lei do teto de gastos (fruto de uma emenda constitucional). O programa era uma fila de projetos em estágio mais avançado que teria prioridade na alocação de recursos oriundos da não aplicação da lei do teto do gasto (pela qual o gasto do ano que vem será o deste ano apenas corrigido pela inflação). Essas obras demandariam cerca de R$ 30 bilhões.

Diante da disputa pública em que se transformou a questão do teto, o presidente Jair Bolsonaro foi forçado a arbitrar e escolheu, ao menos por ora, o lado do ministro Paulo Guedes.

Tomando como fato que não se pensa mais em “furar o teto”, a área econômica do governo acabou de definir a sua estratégia de ação, que foi incorporada ao Pró-Brasil.

O programa começa com a proposta de desoneração da folha de salário das empresas, que se dará pela mudança da base tributária.

Os cálculos ainda estão sendo feitos, mas duas alternativas estão colocadas sobre a mesa: a folha de pagamentos, até um ou dois salários mínimos, será isenta do recolhimento da contribuição previdenciária patronal e, acima desse patamar, a alíquota da contribuição cairá dos atuais 20% para 10% ou para 15%.

Tudo vai depender da aprovação da Contribuição sobre Transações (uma espécie de CPMF) com alíquota de 0,2% que deverá arrecadar cerca de R$ 120 bilhões. Se, por alguma razão, a receita da contribuição for maior, mais ampla deverá ser a desoneração. A arrecadação da nova contribuição não poderá representar aumento da carga tributária. “Tem que ser zero a zero”, resumiu uma fonte envolvida nas discussões.

Vinicius Torres Freire – B0lsonaro posou de responsável fiscal

- Folha de S. Paulo

Presidente aproveitou bobagem do Senado para fazer gol político, mas gosta de um gasto

Os senadores deram uma oportunidade para Jair Bolsonaro fazer um show de responsabilidade fiscal. O presidente fez pose no noticiário e no delírio das mídias sociais. Faturou politicamente uma bobagem demagógica do Senado. Só que não se trata disso, de responsabilidade.

O Senado havia derrubado veto de Bolsonaro a um parágrafo da lei de socorro a estados e municípios. A lei proíbe reajustes de salários e outros aumentos de despesas com servidores de todo o país até o fim de 2021. O parágrafo vetado abria exceção para profissionais de saúde, de assistência social, de limpeza, de policiais etc. envolvidos no combate à pandemia.

Nesta quinta-feira (20), a Câmara validou o veto, em um dia agitado como se estivessem reconstruindo os muros da Bastilha fiscal. Sim, o reajuste não faz mesmo sentido. Sim, há cheiro de queimado na praça financeira. Desde a segunda semana de agosto, as taxas de juros de prazo mais longo voltaram a dar saltos (em julho, haviam voltado a níveis pré-pandemia). Mas quem fez a chacrinha “fura-teto” foi o próprio governo, que de resto não tem projeto organizado para nada, das contas às “reformas”.

Bolsonaro não liga muito para o tamanho da despesa a não ser que: 1) veja uma possibilidade de fazer show midiático; 2) apareça um rolo com consequências notáveis para a sua reeleição.

O presidente quer o monopólio da concessão de benefícios e favores. Diminuiu o alcance da reforma da Previdência, deu reajustes para policiais, para as Forças Armadas e bilhões para uma estatal da Marinha fazer navios. Sabota o quanto pode a reforma administrativa e avacalha emendas constitucionais de redução de despesa com servidores que seu próprio ministro da Economia manda para o Congresso.

Míriam Leitão - O veto, o governo e as contradições

- O Globo

O Senado errou e, felizmente, a Câmara corrigiu a tempo, mantendo o veto do presidente Bolsonaro à permissão de aumento de salário de certas categorias de servidores. Mas esse caso é complexo e emblemático das contradições do governo. Há um fenômeno no Brasil que poderia ser definido como sensibilidade fiscal seletiva. Atinge a equipe econômica, o próprio ministro Paulo Guedes, e principalmente o presidente Jair Bolsonaro. Guedes disse que o Senado cometeu crime contra o país. Bolsonaro declarou que não poderia governar se o veto fosse derrubado, num exagero bem conveniente. Quando o presidente cria despesas corporativas é também crime contra o país e impedimento a que se governe?

Bolsonaro é errático em matéria fiscal. Ele inicialmente não queria que houvesse proibição de reajustes a servidores federais. O ministro da Economia então incluiu esse ponto no acordo de transferência de recursos para estados e municípios para valer para toda a federação. O presidente decidiu proteger alguns. Demorou 20 dias para sancionar a lei dando tempo, assim, de aprovar aumentos de salários de policiais civis e militares do Distrito Federal, Amapá, Roraima e Rondônia, e também para votar uma reforma na carreira dos policiais federais. Os adicionais dos salários das Forças Armadas estavam fora dessa proibição de reajuste, sob o argumento de que haviam sido garantidos pela reforma da previdência dos militares.

Raul Jungmann - Forças Armadas para quê?

- Capital Político

Essa semana, em uma das incontáveis “lives” em que todos submergimos na nossa pandêmica vida atual – meio real, meio virtual -, me vi debatendo o orçamento das Forças Armadas. Quando me foi dado falar repeti, pela enésima vez, que de nada adiantava discutirmos orçamento se não sabíamos o que fazer e para que ter Forças Armadas.

Porque, é verdade, de há muito não temos ideia do que fazer com nossas Forças Armadas. Claro, não me refiro ao texto constitucional, nem aos manuais ou à tradição. Sabemos o que eles dizem. Mas não é isso a que me refiro. Não falo aqui do normativo ou do dever ser. Falo do que necessitamos ter no presente, no atual estágio de desenvolvimento do país, dos seus objetivos presentes e futuros, dos cenários e ameaças que são e/ou serão preciso conjurar, dissuadir.

Aí, estamos no deserto, mas nem sempre foi assim. Durante o Império, sobretudo no Segundo Reinado, a elite imperial tinha nas mãos tarefas de construção do Estado nacional que as fazia ter clareza sobre papel e funções das Forças Armadas de então.

Hamilton Garcia de Lima* - Democracia em transe

A democracia, como sabemos, não é "coisa nossa”, como no samba de Noel; basta uma rápida olhada retrospectiva, da Independência (1822) aos estertores do regime militar-civil (1979), como tentei fazer em artigos passados (vide Por que somos assim?, A democratização do Estado, entre outros): encaremos os fatos para superarmos os obstáculos que continuam em seu caminho.

Naturalmente, isto não significa que não possamos perseguí-la (melhor dizer almejá-la, nas atuais circunstâncias). É isto, precisamente, o que fizemos a partir de 1889, quando a República inaugurou um período de aspirações democráticas frustradas pela "distância entre intenção e gesto”, como canta Chico, ou, como explica a Sociologia Política de Simon Schwartzman , pela "falta constante de correspondência entre as instituições formais do país e sua realidade social e econômica” – a primeira nos remete ao direito, a segunda ao capitalismo periférico (dependente) –, nos legando a instabilidade política crônica cujos ecos ainda se ouvem.

Depois de três mandatos presidenciais cassados, um deles moralmente (Temer), e outra cassação por vir, talvez tenha chegado a hora de encararmos as coisas livre das ilusões partidário-personalistas de outrora, indo ao seu nó górdio, que parece estar nas escolhas feitas na última das tantas redemocratizações que tivemos, quando o problema da não correspondência, acima aludida, foi negligenciado e encarado pelo viés escapista, mais funcional aos atores que almejavam o poder, do privilegiamento da forma do sistema político ao invés de sua substância, vala dizer, a base sócio-econômica onde se assenta o edifício estatal, como assinalara Victor Nunes Leal .

Leal, aliás, ao definir o que chamava de coronelismo, acabou por descrever a essência de nossa democracia, baseada, à época, no privatismo rural como cimento de nossa modernidade: "(…) concebemos o coronelismo como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. (…) Uma forma peculiar de manifestação do poder privado, (…) em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa”, gerando "o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais” – isto sim, “coisas nossas".

Tratava-se, pensava o autor em 1947, de uma política de transição entre o "poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”. Mas, à medida de seu transcurso, a transição evoluiu para um modelo, onde os chefes partidários, controlando o poder público, direta ou indiretamente, se apropriavam de parcela dos recursos para atender a todo tipo de interesse privado: quer dos eleitores, quer dos empresários, transformados em repassadores de verbas desviadas dos serviços e obras públicas – estas últimas consistindo no investimento bruto de capital fixo, tão vital para o progresso do país.

Retrocesso evitado – Editorial | Folha de S. Paulo

Sustado pela Câmara, reajuste para os servidores seria inaceitável e desastroso

Como ocorreu com a crise global de 2008 e 2009, o choque econômico provocado pela pandemia de coronavírus dá pretexto a decisões políticas que engendram futuros desastres para as finanças públicas.

Uma coisa é admitir a necessidade de socorrer temporariamente cidadãos cuja renda foi fortemente reduzida pelo mergulho da atividade e evitar que serviços públicos colapsem. Outra, muito diferente, é sancionar tentativas oportunistas de um punhado de corporações bem posicionadas de obter vantagens duradouras com a crise.

Essa distinção aparece no embate em torno do veto do presidente Jair Bolsonaro a dispositivos da medida provisória da ajuda a estados e municípios que possibilitavam a categorias de servidores terem promoções salariais em meio à emergência, à custa da União.

Na quarta (19), 42 senadores votaram para derrubar o veto. A maioria absoluta abriu a porta para que um auxílio de R$ 60 bilhões, destinado a manter operantes as máquinas estaduais e municipais na pandemia, possa subsidiar melhorias na remuneração de servidores.

Se a Câmara tivesse seguido o mesmo caminho, policiais, militares, professores, profissionais da saúde, entre outros, desfrutariam não só da manutenção de empregos e vencimentos, na contramão do que ocorreu com dezenas de milhões no setor privado. Poderiam sair da crise ganhando mais.

Susto no Senado reflete limites do governo Bolsonaro – Editorial | O Globo

Dificuldade para manter veto a reajustes do funcionalismo resulta da articulação política sofrível

O veto do presidente ser derrubado por senadores e deputados é parte do jogo democrático. O governo Bolsonaro, contudo, não tem como se esquivar da responsabilidade por derrotas acumuladas nos embates com o Congresso. Bolsonaro é recordista em Medidas Provisórias rejeitadas ou caducas no primeiro ano de governo — até hoje, das com tramitação encerrada, 55% não foram aprovadas. Nos últimos 20 anos, foi o presidente com mais decretos e MPs questionados no STF. A última derrota ocorreu quarta-feira, quando 42 senadores tentaram derrubar seu veto a reajustes salariais ao funcionalismo até o final de 2021. Graças à costura do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, evitou-se o pior. Mesmo assim, o Brasil ficou perto de ter de amargar uma conta de R$ 130 bilhões, numa crise fiscal dramática.

O veto era parte do acordo para o Tesouro conceder R$ 125 bilhões de fôlego a estados e prefeituras endividados, atingidos pela crise da pandemia (R$ 60 bilhões em auxílio). O custo da derrota equivaleria, portanto, à cifra do socorro. Quer dizer: para políticos ficarem de bem com o funcionalismo, custaria o dobro ao contribuinte. Apesar do que disse depois da derrota, Bolsonaro nunca manifestou convicção nas questões fiscais. Foi o então líder do governo na Câmara, deputado Vitor Hugo, quem apresentou a lista das categorias com direito a aumento, como pedido do próprio Bolsonaro — um leque que incluía policiais legislativos, professores, militares, peritos, profissionais de limpeza, da agropecuária e da segurança... tudo a pretexto do combate à Covid-19. Bolsonaro ainda atrasou a promulgação do pacote para dar tempo a um aumento a policiais estaduais.

Brasil fica para trás na corrida pela produtividade – Editorial | Valor Econômico

É urgente elevar a qualidade da educação em todos os níveis, sem a qual a produtividade seguirá decadente

O Brasil perde há um bom tempo a corrida pela competitividade global. A América Latina, em cujo desempenho tem um peso determinante, tem hoje a mesma proporção entre seu PIB per capita e o dos Estados Unidos que tinha em 1990 - 25%. Outros países convergiram mais rapidamente para o nível americano, não só os países do Sudeste Asiático como os ex-países comunistas do Leste e do centro da Europa, constata estudo de técnicos do FMI. Eles se debruçaram sobre a questão de porque os ex-comunistas, mesmo tendo taxas menores de investimento que alguns países latino-americanos, como o México, os ultrapassaram. A resposta, segundo o estudo, tem menos a ver com a taxa de investimentos e mais com a produtividade total dos fatores, medida geral que envolve quanto cresce a produção da riqueza nacional com a mesma quantidade de insumos, a saber, capital e trabalho, em determinado período de tempo.

“A América Latina é mais pobre não por causa do investimento, mas pelo baixo nível de capital humano e produtividade”, conclui o estudo. E, em uma lição que serve perfeitamente para o Brasil, que não é mencionado no estudo, mas nas tabelas, os técnicos do FMI dizem que “governos que focam apenas em investimentos deveriam olhar a questão de outra perspectiva”.

Prudência com a volta às aulas – Editorial | O Estado de S. Paulo

Se a volta às aulas coloca em risco a saúde da população, o prefeito de São Paulo tem o dever de adiá-las. Governar exige que sejam tomadas as decisões necessárias

Diante das evidências científicas disponíveis, é acertada a decisão da Prefeitura de São Paulo de adiar a volta às aulas. De acordo com as orientações do governo estadual, as escolas públicas e privadas da cidade poderiam retornar às atividades presenciais no dia 8 de setembro. No entanto, a administração municipal entendeu ser temerário reabrir as instituições de ensino no próximo mês. “Retomar as aulas nesse momento, para a Prefeitura de São Paulo, significaria a ampliação do número de casos, a ampliação em consequência do número de internações e do número de óbitos”, disse o prefeito Bruno Covas. Num momento em que políticas públicas são motivadas por achismos e populismos, é alvissareiro que a Prefeitura se baseie na medicina. Sempre, mas especialmente numa pandemia, a ciência é elemento necessário na identificação e realização do interesse público.

Para tomar a decisão sobre as aulas presenciais, a Prefeitura realizou inquérito sorológico com 6 mil estudantes entre 4 e 14 anos da rede municipal. O estudo identificou que 16,1% dos jovens testados têm anticorpos para o novo coronavírus. Além disso, do total dos jovens avaliados, 64,4% são assintomáticos para a covid-19. Tais porcentuais revelam que eventual reabertura das escolas no próximo dia 8 de setembro representaria um risco muito alto de disseminação do novo coronavírus. Ou seja, muito do esforço que se tem feito desde março com o isolamento social poderia ser perdido, com sérios riscos para toda a população.

Paes compara Crivella a Witzel e nega acordo com Doria para 2022

Por Cristian Klein | Valor Econômico

RIO - Diante da possibilidade de maior engajamento do grupo político do presidente Jair Bolsonaro na campanha à reeleição de Marcelo Crivella (Republicanos), o ex-prefeito do Rio Eduardo Paes (DEM) aposta numa estratégia com dois pilares: evitar a nacionalização da corrida municipal e vincular seu sucessor no cargo ao governador Wilson Witzel (PSC), alvo de um impeachment e de um inquérito que investiga megaescândalo de corrupção na área da saúde.

“O Crivella é a versão 2020 do Wilson Witzel. Totalmente ‘fake’. O eleitor do Bolsonaro não cai mais na conversa de melhor amigo dele, que o Witzel conseguiu vender em 2018”, afirma Paes, que perdeu a eleição a governador há dois anos para o então desconhecido ex-juiz.

Paes tem sido visto pelo Palácio do Planalto como uma ameaça aos planos de reeleição do próprio presidente, em 2022. O receio de Bolsonaro é que o ex-prefeito, caso retome o posto, dê palanque no Rio ao governador de São Paulo João Doria (PSDB). Ex-tucano, Paes pertence ao DEM, aliado histórico do partido comandado por Doria e cujo maior expoente é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, defensor de projeto alternativo a Bolsonaro.

Música | Maria Bethânia, Nana Caymmi, Dori Caymmi e Moreno Veloso - "Maricotinha"

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Boitempo

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Opinião do dia – Barack Obama*

"Donald Trump não cresceu no cargo porque ele não consegue.

São 170 mil americanos mortos. Milhões de empregos perdidos. Nossos piores impulsos soltos, nossa orgulhosa reputação ao redor do mundo diminuída drasticamente e nossa democracia e nossas instituições ameaçadas como nunca antes. Eu estou pedindo a vocês que acreditem em sua capacidade, que abracem sua responsabilidade como cidadãos, para garantir que os princípios básicos da nossa democracia perdurem. Porque é isso que está em jogo agora: nossa democracia.

*Discurso na Convenção do Partido Democrata dos Estados Unidos, 19/8/2020

Merval Pereira - Os vários Bolsonaros

- O Globo

Não, não vou falar sobre os três zeros de Bolsonaro, como o Ascânio Seleme define muito bem seus filhos, nem sobre as mudanças políticas do presidente, que o Ruy Castro comparou às nuvens da antiga metáfora mineira. Vou falar da capacidade camaleônica, beirando a sociopatia, de Bolsonaro, num espaço de uma semana, abordar o mesmo assunto para públicos diferentes, com enfoques diferentes.

No dia 12, depois que houve uma debandada do ministério da Economia de alguns assessores importantes, como os secretários de desestatização e o da desburocratização, Bolsonaro, imbuído da “liturgia do cargo”, reuniu os presidentes da Câmara e do Senado (foto), diversos ministros e lideranças políticas do governo para solenemente declarar-se a favor da manutenção do teto de gastos e do equilíbrio fiscal.

Na live do dia seguinte, já mais à vontade na roupa e no linguajar, Bolsonaro dirigiu-se a seu público cativo. E tratou de dizer que o debate interno sobre o teto de gastos existe: “A ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema? Na pandemia, temos a PEC [proposta de emenda à Constituição] de guerra, nós já furamos o teto em mais ou menos R$ 700 bilhões".

Bernardo Mello Franco - O cheiro do autoritarismo

- O Globo

O procurador-geral da República menosprezou o dossiê que fichou professores e policiais antifascistas. O relatório secreto do Ministério da Justiça listou três acadêmicos e 579 agentes de segurança pública. “Parece ter havido um alarme falso, talvez um exagero”, desdenhou Augusto Aras.

No julgamento de ontem, o chefe do Ministério Público voltou a se comportar como advogado do governo. Segundo Aras, ninguém foi prejudicado ou teve a privacidade invadida. Assim, o Supremo Tribunal Federal não teria motivo para se dedicar ao assunto.

“Relatórios de inteligência são comuns e rotineiros”, comentou o procurador, que foi indicado ao cargo pelo presidente Jair Bolsonaro. Só faltou exigir que os espionados pedissem desculpa pela espionagem de que foram vítimas.

“A fala do Aras é absurda. Eu fui prejudicado, sofri uma exposição grotesca”, diz Paulo Sérgio Pinheiro, que comandou a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos no governo FH. “Trabalho na ONU há 25 anos e de repente fui citado, no meu país, como alguém capaz de praticar atos criminosos”, protesta.

Ricardo Noblat - Dossiê sobre servidores antifascistas é um desrespeito às leis

- Blog do Noblat | Veja

Se parece espionagem política, espionagem é

A ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, olhou o bicho e concluiu: se tem tromba de elefante, orelhas de abano de elefante, presa de elefante, altura, e caminha como um elefante, só pode ser um elefante. E assim condenou o uso do aparelho do Estado para espionar servidores públicos contrários ao governo.

“No Direito Constitucional, o uso ou abuso da máquina estatal para a colheita de informações de servidores com postura contrária ao governo caracteriza desvio de finalidade”, disse a ministra no seu voto. A sessão do tribunal foi interrompida e será retomada hoje com o voto dos demais ministros.

Em julgamento, a questão suscitada por um dossiê produzido pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça sobre 579 servidores públicos e três professores que se declararam antifascistas. Ser antifascista ou fascista não é crime. Por que então investigar os antifascistas e deixar os fascistas em paz?

Arapongagem é crime. É coisa da época da ditadura militar de 64 que criou o Serviço Nacional de Informações, extinto pelo presidente Fernando Collor em 1992. O atual Sistema Brasileiro de Inteligência conta com 42 órgãos de coleta de informações. O presidente Jair Bolsonaro quer usá-los ao seu gosto.

Na semana passada, ao julgar outra ação, o Supremo decidiu que isso não é possível. E estabeleceu limites para o acesso e a troca de informações entre os órgãos e a presidência da República. Bolsonaro queria centralizar as informações na Agência Brasileira de Informações comandada por um delegado amigo seu. Não pode.

O ministro André Mendonça, da Justiça, não rebateu a existência do dossiê nas explicações que ofereceu ao Supremo, disse apenas que tomou conhecimento dele pela imprensa. A ser verdade, admitiu desconhecer o que se passa no quintal do seu ministério. Talvez por isso tenha mandado embora o militar autor do dossiê.

O episódio serve para mostrar que Mendonça se alinha com seu chefe no costume de atravessar a rua para pisar em casca de banana. Não só ele. Augusto Aras, mais advogado de Bolsonaro do que Procurador-Geral da República, chamou o dossiê sobre os antifascistas de relatório que “antecipa riscos”. Quais? A quem?

A propósito: como chamar um governo que, vira e mexe, afronta o Estado de Direito?

William Waack - Rumo ou deriva?

- O Estado de S.Paulo

A excepcionalidade se parece à normalidade

Os brilhantes almirantes junto a Jair Bolsonaro podiam explicar ao capitão do Exército que um azimute constante em relação a um obstáculo (outro navio, por exemplo, que também está se movendo) vai dar em colisão. O presidente quer gastar para manter a popularidade, e está encantado com as vozes (do ministro do Desenvolvimento Regional, mas não só) que lhe dizem que estaria unindo o útil (reeleger-se) ao agradável (fazer o bem para pessoas ainda mais necessitadas

O obstáculo é o formidável rochedo fiscal, que está aumentando de tamanho. À medida que 2021 se aproxima, fica próximo do irresistível esse canto da sereia de que a excepcionalidade atual imposta pela calamidade pública podia ser esticada um pouquinho mais, só um pouquinho mais, só para algumas obras já orçadas, já iniciadas, necessárias até por razões humanitárias (como levar água para o Nordeste, por exemplo).

Sim, esse argumento procede, tem sólidos fundamentos num país miserável no qual metade da população nem esgoto tem. Sim, as circunstâncias da dupla crise de saúde e economia obrigam a mudar os cálculos (políticos, sobretudo), alteram prioridades (como reforma do Estado ou privatizações) e impõem gastar sem olhar para o fundo do cofre. Afinal, não é o que uma Angela Merkel está fazendo? Deixem os economistas debatendo entre si se esse “novo normal” jogou por terra tudo o que aprenderam na vida acadêmica, pautada ou não pela ortodoxia.

Marcos Guterman* - País enfrenta superabundância de passado não resolvido

- O Estado de S.Paulo

A Nova República vem passando pelo maior questionamento de seus 35 anos de história

Os muitos excessos do presente no Brasil, desde as eleições de 2018, são sintomas do que podemos chamar de superabundância de passado não resolvido. A polarização aparentemente insuperável que tem dominado o discurso político se dá em alguma medida porque o País parece ter sido incapaz de se entender não só a respeito da ditadura militar, mas também em relação à própria redemocratização.

Como toda tentativa de repetição da História, há na aventura bolsonarista, nostálgica do regime militar, um tanto de farsa. O próprio presidente Jair Bolsonaro não foi exatamente um exemplo de bom militar e seria preciso um grande esforço para vê-lo como líder de uma retomada dos ideais que moveram os generais que governaram o Brasil entre 1964 e 1985. Em tempos de pós-verdade, contudo, essa falha biográfica de Bolsonaro não tem a menor importância. A rigor, serve, ao contrário, para acrescentar-lhe traços de romântica marginalidade.

Segundo essa farsa, Bolsonaro, quando foi preso pelo Exército em 1985 por insubordinação, ao reclamar publicamente dos salários da tropa, na verdade estava sendo punido por enfrentar uma instituição que a seus olhos, como aos de muitos de seus eleitores, estava traindo o espírito da “revolução” de 1964. Foi como líder sindical de oficiais de baixa patente que Bolsonaro afinou seu discurso contra os militares que pouco antes haviam aceitado voltar aos quartéis e devolver o poder aos civis. Em certa medida, portanto, estamos de volta não a 1964, mas a 1985, ano do restabelecimento do regime civil e democrático.

Luiz Carlos Azedo - A modernização autoritária

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Cingapura virou uma referência em desenvolvimento em todos os quadrantes, da Europa à América Latina, da África à Ásia. Muitos sonham com a longevidade do poder de Lee Yew”

Ao contrário do que muitos imaginam, o paradigma do projeto comunista da China não é o velho livro vermelho com as ideias de Mao Zedong, é o pensamento modernizador de Xi Jinping e o modelo de Cingapura, estudado na nova escola de quadros do Partido Comunista chinês. Fundada há 86 anos numa caverna da província de Jiangxi, o complexo da academia hoje ocupa centenas de hectares junto ao Palácio de Verão de Pequim e abriga 1,5 mil alunos. Em 2018, a escola se fundiu com a Academia Chinesa de Governo para incorporar um novo objetivo: “investigar e disseminar o pensamento de Xi sobre o socialismo com caraterísticas chinesas para uma nova era”.

A grande preocupação dos dirigentes chineses continua sendo vencer a desigualdade social na China de hoje, uma contradição com as teses históricas do PCCh. Centenas de milhões de chineses saíram da pobreza nas últimas décadas, mas as grandes fortunas acumuladas na economia de mercado coexistem com salários baixíssimos e condições de vida precárias, em muitas regiões do país. O medo dos comunistas é que o avanço tecnológico e as vertiginosas mudanças possam afastar os jovens do regime. O massacre de Tiananmen, de 1989, e a Revolução Cultural (1966-1976) são temas proibidos nos currículos da escola de quadros, vértice de um sistema com 2,5 mil centros distribuídos por todo o país. Onde Cingapura entra nessa história?

Com seus arranha-céus, jatinhos particulares e carros de luxo, a cidade-estado, apesar de ter apenas 5,6 milhões de habitantes — contra 1,393 bilhão da China —, é o quarto país mais rico do mundo em poder de compra de seus habitantes, superado por Catar, Luxemburgo e Macau. Tornou-se um dos principais centros financeiros do Oriente, com número crescente de milionários e o custo de vida mais alto do mundo. Há 50 anos, porém, era apenas uma ilha pobre e sem recursos naturais, uma ex-colônia britânica que se separou da Malásia em 1965, sob a liderança de Lee Kuan Yew, cofundador do Partido da Ação Popular (PAP, na sigla em inglês), que governa o país desde 1959. Lee foi primeiro-ministro de Cingapura por 31 anos, vencendo sete eleições, até deixar o poder em 1985. Vem daí o paradigma político que interessa aos chineses: o regime de partido dominante, hoje comandado por Lee Hsien Loong, seu filho mais velho.

Bruno Boghossian – O banquete do centrão

- Folha de S. Paulo

Apesar de servir banquete aos partidos, presidente leva um baile atrás do outro no Congresso

Antes de oferecer banquetes aos líderes do centrão, Bolsonaro gostava de culpar o Congresso pela incompetência de seu governo. Em março, quando a pandemia do coronavírus já estava nas ruas, ele reclamava da demora dos parlamentares em aprovar a ampliação do prazo das carteiras de habilitação, um objeto de obsessão presidencial.

“Até um simples projeto, mais simples impossível, como passar a validade da carteira de cinco para dez anos, está há seis meses lá dentro e não vai para frente!”, queixou-se.

Desde então, Bolsonaro e seus auxiliares pararam de chamar os políticos de patifes e chantagistas. Abriram a máquina pública a novas indicações partidárias e serviram chá para seus novos amigos no Planalto. A carteira de motorista, no entanto, continua com a mesma validade.

O governo pagou pelo apoio dos partidos, mas continua levando um baile atrás do outro no Congresso. Na terça-feira (18), o Senado decidiu retirar de pauta o projeto de estimação de Bolsonaro para mudar o Código de Trânsito. Votaram contra o governo até parlamentares do PSD, que já ganhou um ministério, e do MDB, que namora o Planalto.

Maria Hermínia Tavares* - Os dilemas da reforma

- Folha de S. Paulo

A reforma administrativa não pode ser apenas acerto fiscal que subordine, de qualquer maneira, o diâmetro da esfera pública aos recursos disponíveis

A Covid-19 teria efeito ainda mais devastador se a população brasileira não contasse com o SUS. A crise econômica, trazida pela virose, teria arrastado à miséria um número muito maior de famílias caso o auxílio emergencial não chegasse com rapidez a 65 milhões de pessoas. Nada disso é trivial —antes, são exemplos notáveis de capacidades estatais desenvolvidas nos últimos 30 anos.

Elas não podem ser esquecidas quando a reforma administrativa volta à agenda política. Poucos duvidam de que a reforma seja necessária: há ineficiências a superar e privilégios a combater. Ninguém imagina que a mudança seja fácil, dados os interesses contrariados que mobiliza e os limites fiscais que a enquadram.

Mas a reforma administrativa não pode ser apenas acerto fiscal que subordine, de qualquer maneira, o diâmetro da esfera pública aos recursos disponíveis, de forma a permitir investimentos igualmente importantes. Refletirá, inevitavelmente, uma ideia de poder público.

Fernando Schüler* - Mande a reforma, presidente

- Folha de S. Paulo

Governo sabe que a reforma não rende votos, mas ela é sua melhor chance de deixar um legado

O documento lançado por um grupo de economistas, no início da semana, defendendo o teto de gastos e propondo “rebaixar o piso”, ou seja, reformas capazes de preservar e aprimorar o edifício de estabilização fiscal construído pelo país nos últimos anos, deveria ser lido e relido, em Brasília.

O argumento diz que, dada a atual trajetória fiscal, a preservação do teto de gastos é insustentável. O gasto obrigatório sobe a uma taxa superior à inflação, e tornará inviável o custeio da máquina pública logo ali adiante.

O mercado já precifica o problema. O sistema político é mais lento e aprecia um exercício de autoengano. Governo à frente. É pura ilusão pensar em um programa robusto de transferência de renda e uma agenda crível de investimento público sem encarar os temas difíceis do ajuste fiscal.

O problema é o governo se decidir a enviar ao Congresso a reforma administrativa. O tema está maduro. A pandemia escancarou a desigualdade entre o mundo protegido do alto funcionalismo público e o universo precário do emprego privado, que pagou sozinho a conta da debacle econômica.